sábado, 31 de março de 2018

A completa realização

A completa realização de P'ang Yün


A completa realização de P'ang Yün

Rogel Samuel


Primeiramente o texto tece o tempo. Não existe. O passado não existe, é passado. Não tente lembrar o passado. Deixo-o onde está. Onde (não) está.
O presente não é tangível. Passa rápido. Ao tocá-lo já é outro, já não é.
Quanto ao futuro... que futuro? Qual futuro? Ainda nada sabemos dele. Não é pensável, antes.
Não tente julgar, não avalie as coisas que vierem aos olhos: não existe ordem a ser mantida nem sujeira a ser limpa.
O dharma não tem vida (nem não vida).
A realização está completa.
Assim é o poema:

“A realização última

P'ang Yün


O passado já é passado
Não tente recuperar.

O presente não fica
Não tente tocá-lo.

Momento a momento
O futuro não veio
Não pense nisto
Antes.

Tudo que vem ao olho,
Deixe que seja
Não há nenhuma ordem
A ser mantida,
Não há nenhuma sujeira
A ser limpa.

Com a mente realmente vazia
Penetrado, o dharma
Não tem nenhuma vida.

Quando puder estar assim,
Você completou
A realização última.

P'ang Yün”.

quinta-feira, 29 de março de 2018

A PAIXÃO

A PAIXÃO

A PAIXÃO

Rogel Samuel

Eu sei: sei que o leitor e a leitora já ouviu "A paixão segundo São Mateus" de  Bach. Não sei se na mesma gravação que ouço agora, Deutsche Grammophon 419789-2, conduzida por Karajan, com a Filarmônica de Berlin e Gundula Janowitz etc.,  coro da Ópera de Berlin, em 1972. Não sei. Que dizer? A massa sonora desaba a dramaticidade de uma catástrofe. Que mais? Karajan explorou os "Ah!" - alongando "aa", estupefatos, de puro horror, perdurando-os até o limite do insuportável da dor. O ouvinte pode gritar: "Pare!" E o duplo coro: "Venha, irmãs, compartilhem com as minhas lágrimas" - na  expressão funda em que o coração se despedaça. "Veja-O". "Veja-O" - se ouve a Mãe dizer, a apontar o filho, petrificada, horrorizada, vendo o amado filho, ali, no alto da sua compaixão, a caminho do sacrifício, a caminho do Gólgota, a caminho do Lugar da Caveira. E as flautas choram, os fagotes e violinos gemem, o órgão acorda, o coro, gigantesco, se engasga porque o mundo inteiro está em ruínas, o Universo estremece estarrecido - o que foi aquilo? Que é aquilo que vemos? Oh, que horror!  São ondas largas, são ondas largas. "Veja-O, o torturado". (Mas riam dele, e despojavam-no de suas vestes, cuspiam nele e, tomando o caniço com que se apoiava, davam com ele na cabeça, obrigando-o a beber vinho com fel). Mas Ela, a Nossa Própria Mãe!,  nos exclama: "Veja a sua doçura!" Veja com que doçura ele vai a caminho da dor. Não há, neste tema, talvez o maior de todos os temas - do sacrifício, da tortura, da loucura, da violência, da nossa crueldade — maior realismo do que esse: "Estais vendo? Estais todos vendo o que vejo? [pergunta a Mãe]. É ele! Veja a sua doçura a caminho do calvário!"  E a massa do diáfano coro infantil, saído não se sabe de onde, talvez das profundezas das nossas próprias mentes, as crianças celestes, as mais puras crianças celestes, uma surpresa de Bach, que entra com vozes vindas de um céu distante onde pequeninos anjos horrorizados e não acreditando naquilo a que estavam assistindo, com o que estávamos todos assistindo, o mais santo dos homens levado ao sacrifício brutal... Bach usou e abusou de sua engenhoca, da sua capacidade de, num malabarismo barroco, nos enredar, nos torcer como serpente estranguladora de suas malucas idéias musicais, hipnotizando, sufocando até às lágrimas. Na realidade, esta é música perigosa, faz muito mal, depois de ouvi-la nos sentimos mal, pode até matar-nos. São certas voltas e fugas das vozes mais puramente estarrecidas daquelas crianças celestes do coro infantil que gritam nos nossos ouvidos, que gritam para nós, dentro de nós, para que ouçamos nós, para que nunca nos esqueçamos nós: "Ó Deus, como ele está sereno a caminho da cruz" - "Como está paciente!" "Ainda que cruelmente torturado..." ... de seus olhos saem a sua grande e máxima compaixão...". A música passa por sobre nossa sensibilidade como um tanque de guerra. E Bach trabalha com a gigantesca massa de sonoridades impressionantes, quando o texto da antiga liturgia luterana nos diz (não sem ironia): Tende piedade de nós, ó Jesus! Nós vos imploramos, ó Jesus, tende piedade de nós! - Isso dito na hora mesma em que ele está a caminho da morte! E todo coberto de sangue! Tende piedade de nós, vós que caminhais para a morte, enquanto carregais sobre os ombros o instrumento da tortura! Vós que estais sendo levado à mais terrível dor, ao supremo de todos os nossos erros, tende piedade de nós! De nós que vos condenamos à Morte! Tende piedade de nós!
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O TEXTO DO ORATÓRIO ESTÁ EM:

http://historiadosamantes.blogspot.com.br/search/label/A%20PAIX%C3%83O%20SEGUNDO%20S%C3%83O%20MATEUS


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Hino ao fazer

Rogel Samuel: Hino ao trabalho




Rogel Samuel: Hino ao fazer

FOTO XIXARO

Bilac escreveu um dos mais belos hinos ao trabalho, desde o trabalho pré-histórico operador do fogo, construtor da primeira casa, o que começou a lavrar, o lavrador o ferreiro o coveiro... costureiro, o escritor, marinheiro, cantor, eletricista, aviador, o socialista, o homem da esperança.... O trabalho é aquela atividade, aquela mercadoria valiosíssima, que visa a um determinado fim (O capital, I, 1). Atividade essa que opõe o homem à natureza e revela sua capacidade de gerar valor, seja pela força de trabalho humano fisiológico simples, seja pelo trabalho abstrato intelectual e artístico. Todo trabalho é um dispêndio de cérebro para criar riqueza, com músculo, nervos, mãos. Produzir é em si gerar uma mercadoria, um valor. O trabalho construiu o mundo, ou com operários manuais, mecânicos, ou com cantores, pianistas, escritores e poetas. Nós somos que fizemos.


Benedicite!

Bendito o que, na terra, o fogo fez, e o tecto;
E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo;
E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjeto,
Fez, aos beijos do sol, o ouro brotar do trigo;

E o que o ferro forjou; e o piedoso arquiteto
Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;
E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto;
E que deu uma esmola ao primeiro mendigo;

E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano;
E o que inventou o canto; e o que criou a lira;
E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano...

Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,
Descobriu a Esperança, a divina mentira,
Dando ao homem o dom de suportar o mundo!

quarta-feira, 28 de março de 2018

estrada clara

estrada clara


rogel samuel


depois de alguns novos passos
cheguei aquela estrada amada
simples, reta, clara, nada
impedia ao reino me levava

estrada clara

e os sóis e as madrugadas
pelos vales verdes e azuis
de repente me abriam

doce esplendor desse mundo
posso passar sem mais nada
vejo belas paisagens

entrada clara

depois de alguns passos
cheguei à estrada amada

estrada ao nada

segunda-feira, 26 de março de 2018

pássaro

pássaro
meus dedos de aço
passam na plumagem
luminoso pássaro
imerso na paisagem
em minha cor e casa
e ponho-o no meu lago
um pincel usado
pinço-o com cuidado
ramagem extraordinária
forma de uma flor
ou como um piano
como um belo plano
bebo seu licor
e forço a sua entrada
dou-lhe vida e cor
ROGEL SAMUEL

domingo, 25 de março de 2018

O INFERNO DE DANTE, CANTO UM

O INFERNO DE DANTE, CANTO UM

ROGEL SAMUEL


Leiamos o início da «Comédia»:

A meio do caminho desta vida 
achei-me a errar por uma selva escura, 
longe da boa via, então perdida.
Ah! Mostrar qual a vi é empresa dura, 
essa selva selvagem, densa e forte, 
que ao relembrá-la a mente se tortura!
Ela era amarga, quase como a morte! 
Para falar do bem que ali achei,
de outras coisas direi, de vária sorte,
que se passaram. Como entrei, não sei; 
era cheio de sono àquele instante 
em que da estrada real me desviei.

Assim começa o Poema. A tradução é a mais bela tradução, a de Cristiano Martins (Belo Horizonte, Villa Rica, 1991). 
O meio da vida, 35 anos, dizem (valho-me das notas do tradutor). A selva seriam os vícios, os erros. O «bem», achado ali, seria Virgílio e o Paraíso. A Floresta apavora, era a Morte. Mas o poema promete contar a viagem, a grande viagem, na selva da vida, do Inferno. 
Que significa o sono? 
Talvez a desatenção, o descuido, o entregar-se aos prazeres dos sentidos, desatento, esquecido. 
Mas tem um componente político importante: a desatenção política, o erro político, que a vida de Dante sempre nos revela. A política é a selva selvagem. E escura.

Chegando ao pé de uma colina, adiante, 
lá onde a triste landa era acabada,
que me enchera de horror o peito arfante,
olhei para o alto e vi iluminada
a sua encosta aos raios do planeta
que a todos mostra o rumo em cada estrada.

Mas o Poeta prossegue. Consegue ver alguma coisa aos primeiros raios do sol. A landa é um descampado. Palavra rara. Ele vê a encosta iluminada pelos raios do sol. E seu medo, pela luz, diminui. Mas pouco. E ele olha para trás, como um náufrago olha, vê a escuridão. E repousa. Volta a andar. Tateando. Passo a passo:

Um pouco a onda do medo foi quieta 
que de meu peito no imo se agitara 
durante a noite de aflição secreta.
E como aquele a quem já o sopro para, 
saindo da água à praia apetecida, 
volta-se, fita o pélago, e repara
- assim, a alma em torpor, naquela lida, 
voltei-me a remirar, atrás, o passo
de que jamais saiu alguém com vida.
Depois de repousar por breve espaço, 
fui trilhando a ladeira, ampla e deserta, 
bem devagar, tateando a cada passo.

Mas o que era, até ali, bom e calmo, se dissolve: na visão do animal selvagem, terrível - a pantera, que significa a luxúria, ou a cidade de Florença. 

Quase ao começo da subida aberta, 
eis vi uma pantera, ágil, fremente, 
de pele marchetada recoberta.
Do rosto sempre se me punha à frente, 
a tal ponto o caminho me impedindo, 
que eu tinha que recuar constantemente.

Era no amanhecer. 
E depois também aparece um leão, simbolizando a soberba, a violência:

Era o instante em que a aurora ia surgindo, 
e o sol subia, ao lado das estrelas
que o seguem desde que o poder infindo
tirou do nada tantas coisas belas; 
do animal a vivaz coloração 
fez-me pensar, ansioso por revê-las,
na alta manhã, na plácida estação;
mas não sem que eu tornasse ao desalento 
ante a súbita vista de um leão.
Parecia, raivoso, a juba ao vento, 
vir contra mim, de jeito tão nefando, 
que até o ar se crispava, num lamento.

E mais. Mais. Aparece a loba, que representa a Avareza. Ou a Inveja. Principalmente a Inveja Avarenta.

Seguiu-se magra loba, demonstrando 
à pele os ossos, e que à ira incontida 
a muita gente andou exterminando.
Veio-me um senso tal de despedida 
ante a aparência rábida da fera, 
que perdi a esperança da subida.
Como quem a acrescer seus bens se esmera, 
mas se lhe chega o tempo da ruína
só pensa nisso, e chora, e desespera
- assim eu me sentia ante a assassina, 
que, vindo contra mim, me foi forçando 
de volta aonde ó sol nunca ilumina.

«Rábido», raivoso, irado, o animal o obriga a recuar para as regiões sombrias, talvez da noite, talvez a Morte. O impedimento. 

Enquanto eu tropeçava, e ia tombando, 
algo enxerguei que se movia perto,
a um tufo silencioso semelhando.
Ao ver aquele vulto no deserto,
"Piedade!", eu lhe gritei, "ouve os meus ais, 
sejas tu uma sombra ou homem certo!"

Só então aparece Virgílio. «Na verdade, és meu mestre e meu autor», diz o Poeta, diz para o seu Modelo Poético, seu Mestre Virgílio. Dante é salvo pelos seus pecados, pela poesia, pela literatura, pois Virgílio lhe diz: «"Convém fazeres uma nova viagem», uma nova Poesia. Pois a Inveja é sua Ruína, que diz Virgílio:

A fera hedionda, que te pôs clamando, 
não franqueia a ninguém a sua estrada, 
e a quem encontra nela vai matando.
De natureza crua e depravada, 
alimento nenhum pode saciá-la; 
quanto mais come é mais esfomeada.

E o Poeta Virgílio se oferece como Guia Literário, pois Dante, para sair daquela posição, vai atravessar o Inferno. Para sair de um infortúnio, temos de mergulhar fundo na dor, no seu agravamento.

...................te guiarei quanto antes 
pelos fundos desvãos do sítio eterno,
onde ouvirás os gritos lancinantes,
e verás os espíritos dolentes
que nova morte choram, pior que a dantes.

Depois o Purgatório:

Verás também aqueles que contentes 
no fogo estão, porque inda esperam ir 
juntar-se um dia às venturosas gentes.

E outro Guia, a amada Beatriz, conduzirá Dante pelo Paraíso. Virgílio, romano e pagão, não poderia entrar ali. Beatriz é a Musa perfeita, o tema modelar da poesia lírica. O amor é o Paraíso. Beatriz é «alma melhor que a minha». Eu disse: "Poeta, rogo-te, afinal, ... me conduzas...»

Moveu-se, então, e o acompanhei de perto.

sábado, 24 de março de 2018

PEDRO CALMON

PEDRO CALMON








PEDRO CALMON

Rogel Samuel

No salão da Biblioteca da Faculdade de Letras. Há mesas espalhadas, algumas poltronas. Eu prefiro as mesas. O ambiente não é completamente silencioso. De um lado, o escritório da Polícia Federal, com quem partilhamos o prédio. Do outro, algumas salas de aulas, no primeiro andar. Os "tiras" não olham para nós (era antes da ditadura militar), mas nossos colegas conversam alto. Até mesmo Ivete, diretora da Biblioteca, tagarela. Mas sentíamo-nos em casa. Ali se passaram fatos dignos de nota.
Estava tentando concentrar-me na leitura quando pressenti que alguém me observava, por trás, de pé:
- Menino - disse-me a voz aguda, aflautada, afrancesada daquele senhor bem vestido e empinado. "Menino, o que você está lendo?"
Era o Reitor Pedro Calmon. Eu era menino (tinha uns 19 anos, cara de criança, franzino, magro e assustado). Me levantei. Depois de alguma conversa, ordenou: "Venha comigo". Perguntou de onde eu era, se vivia sozinho no Rio de Janeiro, que viesse almoçar em sua casa, onde encontraria melhor alimentação. Deu-me cartão de visitas (que nunca usei). Indagou se eu sentia falta de meus pais, que recorresse a ele no caso de necessidade ou doença. "Tenha-me como seu pai", me disse.
Levou-me até a Academia de Letras, onde ia reunir-se. Lá, mostrou-me a Biblioteca, apresentou-me. "É uma Biblioteca de alta indagação", falou.
Durante a greve dos estudantes, Pedro Calmon nos recebeu no seu gabinete. Pequeno demais para cabermos todos lá. Sala repleta de obras de arte, caríssimas, pessoais, de sua propriedade. Na parede, um gigantesco painel de espelhos. Dizem que quando saiu da Reitoria, deixou várias obras. Valiosíssimas. Ele era assim, generoso e rico. Rico sob todos os aspectos, não apenas material. Grande advogado (Direito Naval, me parece), escritor, historiador, orador. Tudo nele era magnífico. Como o título. Tomava o automóvel da reitoria apenas para atravessar a rua. Ia almoçar no Iate Clube todos os dias, em frente. Nunca entrava numa loja, para fazer compras: o alfaiate, ou vendedor, vinham à sua casa. Dizem que toda força vinha da esposa, D. Hermínia, que conheci, pois era seu vizinho na Rua Santa Clara, em Copacabana. "Pedro, você tem escrito? Pedro, você deve ir. Pedro, para quem você está telefonando? Pedro, e seu novo livro, como está?" Ela cobrava, puxava o marido. Conseguiu que fosse Ministro, Catedrático de Direito, Reitor. Conseguiu que representassem o Brasil na coroação da Rainha Elizabeth. Já muito idoso, obrigou-o a participar de congresso na Europa. Ele era membro da maioria das grandes academias européias, recebera a maioria das comendas e condecorações. Sua "História do Brasil" tem 7 volumes. Respeitava-o a esquerda, que o citava. Mas ele era assim: aparecia, a pé, sem segurança, sozinho, no meio de uma passeata, no centro de uma assembléia de alunos. Circulava entre nós. E, apesar de tudo, sentíamos que era um dos nossos, que estava do nosso lado. Admitia críticas até grosseiras de frente, a que reagia com firmeza, mas nunca revelava ódio. Resistiu, o quanto pôde, ao cerco. Proibiu o Exército de entrar na Universidade, pondo-se no portão, com a famosa frase: "Aqui só se entra com vestibular!"
Seu vocabulário, mesmo no cotidiano, era requintado, especial, encantador, sublime. Ele encarnava a figura perfeita do "homem de letras". Na elegância do vestir, do andar, na dignidade gestual, no sorriso, no aristocrático porém simpático olhar. Impulsivo, arrebatado, emocional. Um dia, vindo em seu automóvel (sempre com chofer) na Cinelândia, a caminho do Instituto Histórico, viu um policial espancando um garoto.
"Pare o carro!" - grita para o chofer - e precipitou-se para o guarda aos berros: "Não faça isso! Não faça isso! Ele é apenas uma criança!"
Eu vi (claramente visto, e não creio que a vista me enganava, ali estava Tônia Carreiro e outros) durante uma das passeatas estudantis, na Avenida Rio Branco, sob estrondosas vaias, Pedro Calmon tentando fazer parar a passeata, e em prantos, chorando verdadeiramente, gritava: "Parem! Não provoquem! Não vamos radicalizar a crise". Tinha ele razão?
Quando morreu, nenhum jornal noticiou. Ou melhor, só o obituário. Eu senti a dor. Senti que morria algo ali, algo de nossa geração, algo meu. Era reacionário? Talvez até mais do que isto: ele era um aristocrata. Mas ninguém mais cortês, mais afável, mais bondoso, mais interessado nos outros. No bem-estar dos outros. Os presidentes militares jantavam em sua casa, ele era a própria elite em pessoa. Mas era uma pessoa boa. Que importa mais?

A última taça de champanhe

A última taça de champanhe







A última taça de champanhe

Rogel Samuel

- Quem descobriu o avião Air France foi um avião da TAM, me diz aquele amigo.

Todos os que viajam já o fizeram pela companhia francesa. Temos até um Flying Blue com bastante milhas. Gosto da Air France. Uma das primeiras cortesias que fazem a bordo e oferecer uma taça de champanhe. Certa vez viajei ao lado de uma freira que bebeu até cair, de lado, profundamente bêbada. Embebedar-se a bordo é muito produtivo. Principalmente agora, quando as aeronaves deixam as luzes acesas a noite toda, talvez com medo de ladrões, assédios e outras. Não, não consigo dormir com luz acesa. E já não bebo.

Porém já estive dentro de um avião em chamas. Acreditem. Não me lembro a companhia. Depois que a aeronave levantou vôo olhei pela janela e a turbina estava em chamas. Regressamos para a pista e tivemos que trocar de avião "por motivos técnicos". Talvez somente eu, dentre os passageiros, soube o que acontecera.

Mas sempre me senti seguro em vôo. E já fiz vôos longos com para a Austrália (2 vezes) e para Katmandu (3 vezes). Mas estou velho, sinto-me velho, cansado. Não sei se voltarei a viajar.

Para, como foi o caso, tomar a última taça de champanhe.

quinta-feira, 22 de março de 2018

À TARDE RELEIO BACELLAR


À TARDE RELEIO BACELLAR

ROGEL SAMUEL


A tarde chuvosa. Tarde escura, fria. Lembro-me, leio um soneto de Bacellar. ”Porta para o quintal”:  

Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.
As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando
quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...

 (Frauta de barro)

O que se pode ver, neste poema?
O primeiro verso pede sol: “Bem haja o sol e a brisa neste canto!“
“Bem haja”, aqui, significaria “seria bom”.
O poeta está preso, preso em casa pela chuva (como morava mal nosso poeta, num humilde quarto alugado no centro da cidade, atrás do Colégio Estadual, onde estudei). Chove muito, o poeta não sai. O quintal é imaginário. Quintal da infância. Quintal do passado. O “embalo” da cadeira marca a cadência das ondas do embalo do tempo, das ondas do tempo, do tempo passado, do tempo perdido. Quebranto da realidade, depressão, solidão (o poeta era solteiro, solitário), o morno quadro do passado do bairró dos Mocós, onde passou a infância.
O embalo bambo, frouxo, indeciso, vacilante  de quebranto que dedilha descortina sua maestria poética: em... ba... bam.. bo... bran... – a cadeira macia do tempo, a cadeira elétrica de quem vive, a cadeira de quem sentado espera o sonho a morte o porvir.
Mas os sanhaçus brincam, pulam, cantam. O sanhaçus existem. Cor de amianto, cor do saputi. A árvore da vida, árvore mágica. Árvore mágica da vida. Onde as aranhas tecem o fio do destino como parcas. Da vida.
Trapeira janela sobre o telhado. Fios de prata, fios do destino. Da vida, da morte.
Depois vem o episódio das telhas.
Luiz Bacellar era um poeta de Manaus, e esta era a cidade das telhas, das chuvas, das soleiras.
Mas Bacellar morreu, Manaus não é mais a mesma.
Sem Bacellar a cidade morre, apaga, muda.
Ele era o profeta da sua cidade. Seu grande cantor, seu artista máximo. Ninguém soube cantar aquela cidade como ele.
As telhas, velhas comadres, vão conversando. Coisas de calhas de lata, coisas de chuva. Só Bacellar deu alma àquelas velhas casas. Sem ele, as casas perderam suas almas, suas significações. Depois da morte de minha mãe e da morte de Bacellar não mais voltei a Manaus. Pouca coisa sobrou ali, além dos beirais das casas que sobraram. O mundo morre, as casas morrem, morrem as cidades. E os bairros. Por exemplo, para mim, Copacabana morreu. Alguma coisa desapareceu ali. Não sei o que foi.
Mas o poeta está nu, suas roupas ficaram no passado, nos varais do passado, nos navios de vela dos varais.

Oh, sim, preciso urgentemente reler Luiz Bacellar... A Bíblia desse nosso canto. “Frauta de barro”, cujo prefácio da 6ª edição escrevi.
Já se vão tantos anos...

quarta-feira, 21 de março de 2018

A NOITE SOBRE A NOITE

A NOITE SOBRE A NOITE


A NOITE SOBRE A NOITE


Rogel Samuel

                Toda vez que se lê o poema se tem dele outro sentido, diferente lógica.
O texto se abre para todos os lados dos pontos cardeais, e tudo, cada leitor pode ler-se ali, ver-se ali, ir por ali para um ponto desconhecido.
É o poema 'Pedra e água', de Murillo Mendes:

Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus  talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.
 
O mar, a escuridão, esta fome de amor,
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra
               
Ora, o que é esta 'mulher sem fim'?
                Será a mulher sempre e infinitamente amada? Ou a mãe natureza eternamente produtiva e úbere de vida renovável, abundante, cascatarante e oceânica, que em ondas se inunda no infinito universo de seus múltiplos seres coloridos de flores frutos sabores novos e eternamente renascidos, renovados sempre porque sempre morrendo, multiplicando-se no tempo e na atemporalidade, no espaço largo e no espaço tão amplo quanto o sem-fim do começo das estrelas,  na escuridão luminosa do Universo?
Ou é a mulher básica e buscada, retratada na memória, a mulher futura ou possível, a que vive dentro de nós mesmos como o Outro Obscuro e Insaciável, aquela que não existe no mundo externo, porque no externo não está mais do que no aquém do objeto, do lado de cá, no amante e não no amado?
Que mulher é essa que é sem fim, e portanto sem começo, que tudo o que termina começou um dia, e se não tem término não nasceu, é a não-nascida, a que não é ainda porque não está lá, nem ainda virá, se virá, a ser, a aparecer, a crescer.
                Oh amada infinita, quem és? Onde estás? Em que céu ou em que terra tu te encontras? Por quem és, responde, acontece, mostra-me o mapa e o rosto da rota a via de acesso para a tua realidade, infinita amada?
                Esta mulher sem fim não será aquela de uma única noite, mas a que sobreviverá a todas as noites, nas noites insaciadas sobre outras noites, aquelas que se sobrepõem, sem o espaço intermediário de um dia, aquela escuridão noturna que nunca amanhece, que nem termina, nem se esgota senão em si mesmo e se renova e se refaz e não se retira nunca?
Ela é a musa, o motivo do poeta, o amor em pessoa, a onda do mar, a fonte do ser, a oriunda matriz, o ventre da fecundidade, o abrigo da maternidade nunca perdida, o leito da vida e da morte, o refrigério do cansaço e da proteção, a criadora e a mãe que socorre.
                'Essa mulher sem fim, e a noite sobre a noite'- só, em si, é uma incógnita esclarecedora de todas as nossas vicissitudes e vivências, de todas as nossas lástimas e alegrias, das sexuais às espirituais porque também são gozosas.
                Oh, Amada imortal! Oh, Pátria de meu espírito e de minha inspiração!
                Por isso me calo.
                Por isso fico apenas no primeiro verso.
                Porque mesmo me esgoto no primeiro verso.
                Porque daqui não passo, daqui não posso.
                Sim, essa mulher é a fome de Deus, a fome de amor, a fome, o amor. Morrer é mergulhar no fundo do seu ser e no mar de sua absorção, na escuridão de sua benfazeja fosforescência e nas profundezas de suas instabilidades, nas suas carícias e idas, superfícies e sedas, nas redes, máscaras e laços dos seus cabelos e tranças, seus sonhos e necessidades.
                Somos todos descendentes dessa mulher sem fim, dessa maternidade original e nunca esquecida, dessa raiz funda no coração de nossa matéria e de nossa sensibilidade, de nome familiar em solidão,
                Caminhamos a passos largos nesses rumos, navegamos nas vagas desse mar e nas vagas  desse trafegar oceânico pelos descaminhos de nossas aspirações e esquecimentos.
                Essa mãe é a família e a natural beleza da nossa moldura e mito, pátria e lar.
                Oh, espuma do mar eternamente e a pedra.

terça-feira, 20 de março de 2018

A 3ª REIMPRESSÃO DA 6ª EDIÇÃO

EM TODAS AS LIVRARIAS DO PAÍS A 3ª REIMPRESSÃO DA 6ª EDIÇÃO AGORA VENDENDO BEM...

segunda-feira, 19 de março de 2018

O mundo da literatura esquecida

O mundo da literatura esquecida







O mundo da literatura esquecida

Rogel Samuel

Acabo de ver que quase não há nada sobre Magvinier de Castro na web. Nem o meu antigo site aparece, onde eu o coloquei. Meu "Site do escritor" foi o primeiro a colocar na web autores amazonenses antigos, como Magvinier de Castro. Seu melhor livro - verdadeira obra-prima - é "Amazonia panteísta", com capa de Moacyr Andrade.

Antonio Mavignier de Castro nasceu no Ceará, no dia 21 de novembro de 1895, fez curso primário em Belém. Com nove anos de idade, em companhia da tia, seguiu para a França até concluir o Curso de Bacharel em Ciências e Letras. Regressando ao Brasil, entrou para a redação do jornal “A Época”, em Manaus. Em 1916, foi nomeado chefe de revisão do Diário Oficial do Estado do Amazonas. Foi repórter do jornal “O Tempo” e no “Jornal do Comércio”, de Manaus. Como Promotor Público, atuou nas Comarcas de Eirunepé, Tefé e Manacapuru, deixando-as para ser nomeado Prefeito de Moura, no interior do Amazonas. Foi professor de Francês na Escola de Comércio “Solon de Lucena”. Escreveu “Síntese Histórica e Sentimental da Evoluçao de Manaus” e
“Amazónia Panteísta”. Era membro da Academia Amazonense de Letras, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e sócio correspondente da Academia de Letras do Ceará.

Ele era um escritor forte, à moda antiga, naquele estilo que chamo de "art nouveau", como Euclides da Cunha, Eça, Rui Barbosa, Coelho Neto, os escritores impressionistas, imitadores dos franceses. Até mesmo Barthes escrevia assim. Eu os imitei no meu pobre "O amante das amazonas".

Transcrevo um capítulo de "Amazônia panteísta":

"Orfeu das selvas amazônicas"


“Leucolepia arada modulatrix”... Na classificação dos milhares de pássaros existentes nas selvas, nos campos e nos montes de todos os continentes, talvez nenhuma especificativa se ajuste melhor que a do uirapuru amazônico. Até a terminologia tupi interpreto a vulgaridade que o torna conhecido - “uirú”, (boca) e “purú”, (ruidosa, cantora).

É na quietude balsâmica das manhãs luminosas, antes do sol atingir o zênite, que, invariàvelmente, na copa de uma árvore altíssima da terra firme, um gorjeio harmonioso se foz ouvir em escala crescente de acordes enleantes, de sonidos puríssimos, tal um conjunto inefável de notas metálicas e cristalinas vibradas ao mesmo tempo, num misto aproximado de arpejo eólio e avena pastoril, cuja gama de sublimada consonância nenhum instrumento musical, por mais sonoroso, pode imitar.

Então, como que atraídos pela suave melodia, ora evanescente, ora altissonante, centenas de pássaros revoam transpondo os recessos florestais. Suas asas não tatalam e nenhum pipilo lhes sai da garganta. Crer-se-ia que temendo profanar a serenidade panteística do momento, êles se aproximam silenciosos do minúsculo orfeu plumiliforme, e, pousados a seu redor, vão matizando os ramos com as suas plumagens azuis, citrinas, purpúreas, brancas e negras.

Terminada a fantasia de côres esvoaçantes com a quietude embevecida dos alígeros ouvintes, o gorjeador faz pausa, voeja para empoleirar-se na ramagem de outra árvore, seguido triunfalmente pela profusão de penas deslumbrantes que lembram a policromia de um fogo de artifício caindo na penumbra do matagal silente.

Na sucessão dêsses rápidos intervalos, é possível, de relance, vislumbrar a tonalidade barrosa do corpo do pequeno virtuose ornitológico. Quem jamais ouviu as modulações do mago passarinho, dificilmente acreditará no estranho fascínio que a sua harmonia exerce sobre os sêres alados e, também, na extraordinária influência que ela desperta em nosso espírito.

Excluída a prodigiosa propriedade do canto inimitável, pouco se sabe dos hábitos do “Leucolepia arada modulatrix”. Jamais um exemplar de qualquer idade resistiu ao cativeiro. Pacientes observações, entretanto, revelaram que êle é insetívoro, nunca se alimentando com gramíneas ou frutos silvestres. A plumagem do casal é uniforme, —côr de argila escura, mais carregada que a do vulgaríssimo ‘joão-de-barro”. Não possuem, ambos, os soberbos reflexos metálicos vistos nas asas dos rouxinóis do Rio Negro; não lhes ornam as cabeças penachos carmezins como os dos “galos-de-campina”, e suas gorjeiras não ostentam as cintos douradas que refulgem no peito dos “japiins”. Em compensação, quando êles nidificam, no período nupcial, a capacidade vocal se lhes desenvolve de modo tão imprevisto que a melodia patética do gorjeio adquire, dentro do místico recolhimento da natureza, surpreendente motivo de elevação hierática, somente comparável aos temas poéticos que nos levam aos paroxismos da emotividade, como quando ouvimos, sublimadas, a execução suave, espiritualística, das extasiantes músicas sacras.
(De “Amazônia Panteísta’)

domingo, 18 de março de 2018

as palavras pressentem

as palavras pressentem

sim, amigo,
as palavras pressentem
o que se vai dizer...
às vezes fogem,
se escondem
às vezes gritam,
se irritam,
e dizem
estamos aqui
aqui
estamos

ROGEL SAMUEL