sábado, 27 de janeiro de 2018

AS FLORES VESTIDAS DE BRANCO

AS FLORES VESTIDAS DE BRANCO


ROGEL SAMUEL



Na rua sou abordado. A mulher que me pede dinheiro. Geralmente nunca paro, nessas ocasiões.
Eu vinha de um concerto. A Filarmônica do Rio de Janeiro, de Florentino Dias, que melhorou muito. Concerto pela paz, com distribuição de muitas
flores brancas por moças vestidas de branco, como castas noivas e com a presença do cônsul americano e de sua família. Encontrei meu amigo C. no foyer. Conversamos sobre política e música. Falamos sobre Menininha Lobo, uma grande pianista brasileira. Digo: Cassar sempre me lembra os anos sessenta. O Congresso é o contrário das ditaduras. Ele não me
compreende e se irrita, acha que defendo Jader. Vejo que nossa conversa se torna cada vez mais ácida e rapidamente me despeço, pois o concerto vai começar. O começo foi fraco, a Abertura "Salvador Rosa", de Carlos Gomes. Depois a orquestra foi ficando maior, foi "esquentando", e no fim apresentou uma Quinta Sinfonia de Tchaikovsky que emocionou. Conheço a
orquestra desde o tempo do falecido amigo Nathanael Caixeiro. "Nata", violinista da orquestra, professor de filosofia e história, e tradutor.
Traduzia de várias línguas. Tinha coleção de violinos. Mas era pobre, morava mal. O apartamento dava para um viaduto horrível, o Paulo de Frontin. Eu o conheci em Campo Grande, quando professor do Estado. Logo
encontramos um ponto de apoio nas nossas conversas: a música. Nata também pintava, e muito bem. Assinava ironicamente "Petit-grand", porque era baixinho. Teve morte antológica. Um domingo cedo foi levar o cão
para passear. Depois, como sempre fazia, ia praticar o violino, sentado na cama. Sua mulher foi fazer um café. Quando voltou, ele estava morto, segurava o violino e o arco, braços abertos na cama. Sou abordado na rua
por mulher diferente, não exatamente mendiga, vestida de classe média baixa, uma viúva, ou abandonada pelo marido. Noto que suas mão tremem, pálidas. A rua deserta, me pede dinheiro, envergonhada de pedir. "Tenho de comprar comida pra minha casa", ela diz, e abre dois sacos plásticos de supermercado, onde posso ver bananas. "Não tenho mais dinheiro", diz ela, e começa a chorar. Parece doente. Suas lágrimas eram reais. Ela sofria. Via-se a pedir dinheiro e sofria. Soluçava para dentro, por sua desgraça. Os sinos, à distância, tocam. A desgraça, a fome. Lembrei-me
de que, na Sala Cecília Meireles, tocou-se a "Valsa das Flores". Das flores brancas, alvas, puras, castas. Meu pensamento fugia, voava pelo espaço. Uma menina passou, sorrindo. Era como se estivesse vestida de
branco. Sorriu. Sento-me no bar e me ponho a ler Alfonsina Storni:

Tu me queres alva,
me queres de espuma,
me queres de nácar,
que seja açucena
mais casta que todas.
De perfume suave;
corola fechada.
Nem raio de lua
filtrado me toque.
Nem a margarida
seja minha irmã.
Tu me queres nívea,
Tu me queres branca,
tu me queres casta.

Tu, que as taças todas
já tiveste à mão.
Os lábios corados
de frutos e mel.
Tu, que no banquete
coberto de pâmpanos,
as carnes gastaste
festejando a Baco.
Tu, que nos jardins
escuros do engano,
lascivo e vermelho
correste no abismo.

Ó tu, que o esqueleto,
não sei por que graça
ou por que milagre
conservas intacto,
só me queres branca,
(que Deus te perdoe!)
só me queres casta,
(que Deus te perdoe!)
só me queres alva.

Foge para o bosque,
vai para a montanha,
purifica a boca,
vive na humildade.
Segura com as mãos
a terra orvalhada.
Alimenta o corpo
de raiz amarga.

Bebe a água das rochas,
dorme sobre a geada,
renova os tecidos
com salitre e água.
Conversa com os pássaros,
lava-te na aurora.
E já quando as carnes
ao corpo te voltem,
e quando hajas posto
nas carnes a alma
que, pelas alcovas
ficou enredada.
Então, homem puro,
pretende-me nívea,
pretende-me branca,
pretende-me casta.
(Trad. de Oswaldo Orico)

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Carlos Castelo Branco na Academia Brasileira

Carlos Castelo Branco na Academia Brasileira



Carlos Castelo Branco na Academia Brasileira

Rogel samuel


Leio em "Os dias esquecidos" de Ascendino Leite que num dia quentíssimo do Rio de Janeiro
- fazia 43 graus, disse Ascendino - Carlos Castelo Branco foi eleito para a ABL.

Era o dia 4 de novembro de 1983.

Carlos Castelo Branco teve 21 votos, Mário Quintana derrotado 17 votos.

Quintana concorreu três vezes, sempre derrotado.

Carlos Castelo Branco sucedeu a R. Magalhães Júnior.

Entrevistado, Quintana disse:

- Não fui eleito, mas estou em boa companhia, como a de Monteiro Lobato, que tentou duas
vezes.

Ascendino, sempre ácido, chamou o poeta Quintana de "desmunhecado", o que não sei o que quis dizer. E "meio amargo".

Ascendino lembra que a Academia recusou Jorge de Lima 3 ou 4 vezes. "Vergonha irreparável",
diz.

Acontece que Jorge de Lima era meio "louco". Louco de genialidade. Contam que ela entrava em delírio, subia na mesa. Dizem que seu psiquiatra foi quem o aconselhou a escrever "Invenção de Orfeu", como terapia. Aquele psiquiatra merecia uma homenagem nacional.

Carlos Castelo Branco declarou que tinha sido eleito por seu jornalismo.

- "Minha obra literária é escassa e remota".

Mas Carlos Castelo Branco era um extraordinário escritor.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O quarteto

O quarteto



O quarteto

Rogel Samuel

Eles conversavam e tocavam pela noite a dentro naquela casa, em Manaus, que reunia três a quatro senhores para tocar. Um era meu pai, um comerciante francês, outro um padre velho alemão, um terceiro era um músico manauara, pai do poeta Luiz Bacellar, e mais outro de que não me lembro. Tocavam para si mesmos, não para um público. O francês no piano ou no violino, o alemão com o violino, o amazonense na viola. Não me lembro se alguém tocava violoncelo. Tocavam trios ou quartetos de Beethoven. Tocavam bem. Como o teto da casa velha era muito alto, a acústica da sala era muito boa. A casa velha tinha um teto muito alto, e uns desenhos inscritos, umas pinturas onde a sonoridade das arcadas se infiltravam. A sala era muito boa. Eles conversavam e tocavam Beethoven pela noite a dentro. Em plena selva amazônica, tocavam Beethoven. Ensaiavam juntos, argumentavam, e às vezes punham algum disco da RCA VICTOR para comparar alguma passagem difícil. Beethoven era ouvido ali, e talvez algum
desconhecido que passasse pela rua àquela hora se perguntasse o que eram aqueles sublimes sons na cidade de Manaus da década de 40.

A palavra pesada

A palavra pesada



A palavra pesada

Rogel Samuel

Bilac era intelectual e emocionalmente inquieto, instável, liricamente ansioso, tanto que o titulo de seu livro é “Alma Inquieta”, onde se lê que a palavra não consegue exprimir a sua inquietude, aquilo que ele nem diz nem escreve, porque não encontra a apropriada voz ou não consegue, pois a palavra inútil não responde ao turbilhão fervente do que está só em pensamento – o pensamento, o sentimento é evanescente, leve, para a palavra pesada, fria, espessa, de pedra, uma laje, um sepulcro a palavra inútil, a palavra abafada, sem o perfume sutil que revoa e ilumina com a luz que refulge da idéia - pois quem vai conseguir moldar a expressão de tudo? quem vai conseguir colocar o risco do céu na mão da terra? quem vai dar apropriada voz à ira e ao asco e ao desespero e à fé e às confissões de amor que não saem à luz do dia?

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
- Ardes, sangras, pregada a' tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...


O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e dano, refulgia e voava.


Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?


E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

O mundo é uma interpretação

O mundo é uma interpretação















O mundo é uma interpretação



Rogel Samuel



"Observa o mundo de outro modo. Muda o teu olhar sobre as coisas", disse Dugpa Rinpochê.

Qual outro modo de ver o mundo? Ele nada diz. Mas sugere.

Sim. Sugere que o mundo é tal como o vemos. Ou seja, o mundo pode mudar se mudamos a maneira de vê-lo. Mudo o olhar, mudo o mundo. O mundo não é, então, algo fixo, um ser-aí final.

O mundo é uma interpretação.



Alceu Amoroso Lima escrevia uma linha no fim do dia. Só uma linha, num caderno especial, registrava um resumo do que acontecera no dia, uma retrospectiva do dia. Dizia que todo escritor deveria rabiscar um texto todos os dias, para exercitar-se. "Nenhum dia sem uma linha". Ele também redigia uma carta diariamente para a filha monja reclusa, naquela sua ilegível e apressada letra, o texto na ortografia antiga. Todos os dias uma carta sobre seu dia, sua vida cotidiana e espiritual. Todos os dias um resumo de sua vida. Uma retrospectiva das horas.

Alguns monges budistas tibetanos recomendavam que, no fim do dia, antes de dormir, deveríamos meditar sobre o que fizemos no dia colocando bolas pretas e brancas numa caixa - as pretas para nossas ações más, as brancas para nossas boas ações. Assim faríamos um balanço do dia. Num diário também. Exprimiriam nossas promessas? Composição na soma do tempo.
A vida é mesmo um sonho, uma visão de um mágico show. Triste ou bela, sólida ou frágil, "a vida leva-a o vento", escreveu poeta João de Deus (1830-1896), no seu "Campo de flores":

A vida é o dia de hoje,
a vida é ai que mal soa,
a vida é sombra que foge,
a vida é nuvem que voa;
a vida é sonho tão leve
que se desfaz como a neve
e como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
mais leve que o pensamento,
a vida leva-a o vento,
a vida é folha que cai!
A vida é flor na corrente,
a vida é sopro suave,
a vida é estrela cadente,
voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
onda que o vento nos mares
uma após outra lançou,
a vida – pena caída
da asa de ave ferida -
de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou!

POR ISSO VAMOS COMEMORAR AGORA!

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

A fome é um não

A fome é um não




A fome é um não


Rogel Samuel


O mundo está com fome. A fome no mundo aumenta.

Leio que a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) prevê que o número de famintos no mundo chegará ao recorde de 1 bilhão e 20 milhões de pessoas. Um em cada seis seres humanos está passando fome.

Há uma perversa combinação da crise econômica com a elevação do preço dos alimentos.
Jacques Diouf, da FAO, disse que a crise alimentar vai por em risco a paz e a segurança mundial.

642 milhões vivem na Ásia e 265 milhões na África subsaariana.

"A fome não é um produto da superpopulação: a fome já existia em massa antes do fenômeno da explosão demográfica do após-guerra. Apenas esta fome que dizimava as populações do Terceiro Mundo era escamoteada, era abafada era escondida. Não se falava do assunto que era vergonhoso: a fome era tabu" escreveu há muitos anos Josué de Castro.

Escreveu Cassiano Ricardo:

"A fome é um não.

A fome ri. A fome é a morte ainda viva.
Ambulante".

Vejo os rostos cadavéricos da fome africana e asiática. A máscara da fome. No coro das máscaras. A face ossuda, angulada. Não é preciso perguntar: 'você me conhece'.

"A face do sub-vivo é dialética. Gera pontas de faca sob a pele" diz Cassiano Ricardo.


A máscara da fome é um feroz atestado. Uma em cada seis pessoas passa fome, no mundo.

A fome ri. A fome esculpe, cinzela as suas criaturas (ou caricaturas?)

- A fome é um Não.

Um não que não aceita explicação.

(Cassiano).

sábado, 20 de janeiro de 2018

As águas do jardim

As águas do jardim





As águas do jardim

Rogel Samuel


Omar Khayyam lastima as rosas o Irã as as xícaras de sete anéis o lugar desconhecido para onde todos se foram. Jamshyd é a mitológica figura do grande Pai iraniano, o quarto rei da sua dinastia, e aparece nas escrituras de Zoroastro. Jamshyd é a tradição, o herói nacional, o modelar, o mítico, a reserva a imagem.

Que sobrou? que ficou? Restou o jardim antigo e sua videira e suas águas que passam como o tempo passa a história e suas lendas e o velho Irã e suas mais belas tradições...


O Irã realmente se foi com todas suas Rosas,
E a Xícara de sete anéis de Jamshyd para onde ninguém sabe;
Mas ainda a Videira seus frutos de rubi antigos oferta,
E ainda há um Jardim com suas taças de Água.

Versão inglesa de Edward FitzGerald, Língua original Persian/Farsi, Trad. R. Samuel

quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

O anel de brilhante

O anel de brilhante


Rogel Samuel

Ela ganhou um anel de brilhante. Quando ficou noiva. Era um anel com um solitário. Aquele anel acompanhou-a a vida inteira. Quando ficou velha, passou o anel para sua neta mais velha, no dia do casamento desta. – “Entregue para sua neta, no dia do casamento dela”, recomendou. Amélia, a neta, recebeu o anel somente quando sua avó estava para morrer. – “Deixe-o para sua neta”, disse-lhe a avó. Maria Antônia, neta de Amélia, deixou por herança o anel para sua neta, que o deixou para sua neta, e depois o anel foi passando, de neta em neta, por um longo período de tempo. Todas morreram, umas bem velhas, outras nem tanto. Mas o anel permaneceu vivo, inteiro e brilhante. O anel é eterno. Ficará até o final dos tempos, e ninguém saberá das vidas que ele acompanhou.
A cadeia foi quebrada por um naufrágio.
Hoje o anel repousa no fundo do mar.
Dizem que olhando, com uma boa lupa, é possível ver o rosto de todas as mulheres que o usaram.

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

SOMOS O QUE PENSAMOS

Dhammapada: "Somos o que pensamos, o que pensamos assim o somos". 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

há fotografias como punhais

há fotografias como punhais







há fotografias como punhais

Rogel Samuel


Para ela fotografias há que são punhais, poemas tamém, os poemas todos já foram escritos, reescritos, ela só faz este pedaço do oficio, o oficio das trevas, das argilas, dos pedaços de argila, impressos na chuvas, nos ventos, nas folhas noviças, o pai, a mãe ja partiram, e se foram numa voragem de passado remoto, a moça feia de varíola nunca amada que na taberna de Vladivostoque se ofereceu a Joseph Kessel, como pouca gente sabe, daquela guerra, deste verso, quase desconhecida guerra, mas ela lá esteve, e trouxe o verso, e por isso os outros versos todos já foram escritos, são chagas, são punhais crescendo bem como fogo, porque tudo é um problema insolúvel...

há fotografias como punhais. e poemas também.

todos os poemas que escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao ofício das trevas
de os revelar em pedaços de argila

neles todos estão impressos a chuva e o vento
e as folhas noviças dos séculos e
meu pai e minha mãe que já partiram
esvoaçando num passado remoto

e também a rapariga feia e bela desfigurada pela varíola
que nunca fora amada porque não era bela
e que numa noite na taberna de Vladivostoque
se ofereceu derradeiramente a Joseph Kessel

talvez pouca gente saiba deste verso
que nunca terá sido dito deste modo
e foi acontecido durante a guerra sino-japonesa

quase ninguém esteve lá para o ver

mas eu estive. trouxe -o comigo.
é exactamente por esta razão que os meus poemas

já foram todos escritos.

são como chagas alastrando e crescendo em searas de fogo

estando entre a terra e as estrelas.

sei apesar de tudo porque li Juan Gelman
que cada lágrima é um problema insolúvel







MARIA AZENHA
A chuva nos espelhos