sexta-feira, 31 de março de 2017

EM TODAS AS LIVRARIAS DO BRASIL

EM TODAS AS LIVRARIAS DO BRASIL...SE NÃO TIVER, PEÇA (EDITORA VOZES)... APESAR DA CRISE CONTINUA VENDENDO BEM... (Depois das 14 edições do "Manual de teoria literária", este "Novo Manual" de Teoria Literária é o livro ideal para quem gosta de ler.- 6ª EDIÇÃO REIMPRESSA)...

quinta-feira, 30 de março de 2017

Depois de procelosa tempestade



Depois de procelosa tempestade

Rogel Samuel

O Rio amanhece melhor, hoje. O sol, a luz. Pelo menos pela manhã. Como escreveu Camões:

DESPOIS de procelosa tempestade,
Nocturna sombra e sibilante vento,
Traz a manhã serena claridade,
Esperança de porto e salvamento;
Aparta o Sol a negra escuridade,
Removendo o temor ao pensamento

Esses poucos versos revelam a maestria. “Procelosa” tem os “ó” do espanto, e “tempestade” os relâmpagos do caos celestial. Noturna é escuridão no tom urrr, assim como sombra, palavra sombria e escura. Sibilante sibila sons do vento forte...

Trata-se de Camões, meu adorado poeta máximo.

Vale!

quarta-feira, 29 de março de 2017

A boa poesia

A boa poesia
Rogel Samuel
Estamos no Brasil, mas não conseguimos almoçar no Bar Brasil, tão cheio. Nenhuma mesa. Fomos ao Nova Capela, aonde não íamos desde os anos 70. O mundo não passou, nesses lugares centenários. Nós, sim. Não mais encontramos o Válter e outros mortos. Nem os poetas daquela época. A poesia que naquela época se publicava em papel mimeógrafo. Alguns faziam um verdadeiro livrinho no mimeógrafo. Mas a poesia era boa. Tinha o sabor de algo proibido e revolucionário. A poesia dos excluídos, marginais e malditos. A boa poesia.

segunda-feira, 27 de março de 2017

O GAROTO DO AEROPORTO

O GAROTO DO AEROPORTO


ROGEL SAMUEL

No tempo em que eu trabalhava no Aeroporto de Pampulha, em Belo Horizonte, chamou-me atenção um garoto que todos os dias encontrava sentado no terraço do primeiro andar olhando fixo o horizonte à espera dos aeroplanos que chegavam e que vinham daquela direção do nascente. 
E me recordo da primeira vez que o vi pois tive de afastá-lo da entrada e passagem da porta de nosso escritório, onde se colocara ele, sentado a olhar. 
Depois disso notei que diariamente no fim da tarde estava ele sempre ali, olhos perdidos no fim do horizonte, a boca semi-aberta, o ar enigmático. 
Não era louco o rapaz (penso), nem era de todo triste, como garoto-problema. Talvez mais um garoto-propaganda de sua solidão e espera. 
Teria uns 17 anos e parecia comum a todos os outros da sua classe média média brasileira: no tênis de certa marca, na meia soquete, na bermuda e camiseta, na mochila em que trazia não sei o quê como se viesse do colégio. 
O corpo forte como todos de sua idade de amantes dos esportes e do sol: as pernas e os braços sólidos contrastavam com o ar sonhador e poético, mas respiravam saúde e beleza. Também os cabelos cortados muito rentes e muito baixos, o deixavam quase careca.
O que salientava nele, porém, era a imobilidade e concentração. 
E também notei-lhe nos olhos muito negros, sim, porque quando algum vôo despontava no longínquo horizonte os olhos negros ficavam mais profundos e hipnotizados, extáticos, escuros, bem negros, que como que cuspiam certas faíscas luminosas de um brilho mais psicológico, mais subjetivo do que real, que eu não sabia nem sei interpretar bem, como estivessem impregnados do vôo a vir a chegar a pousar a trazer alguém que ele esperasse chegar. E naqueles momentos eu poderia ficar quase na sua frente, observando-o, examinando-o como a uma estátua, que ele não se importaria, não se molestaria, nem ficaria vexado ou irritado comigo simplesmente porque não me veria ali. Era todo concentração do olhar. 
Dias, semanas e meses se passaram naquela mesma maneira, e estaria talvez por anos se eu não tivesse sido transferido para a agência do Rio de Janeiro para onde me mudei e de todo o esqueci por completo. 
Alguns anos depois, devido a um problema técnico mal resolvido na nossa companhia, tive de voar rapidamente para a Pampulha onde trabalhei toda a manhã para reparar o erro e me liberei no fim da tarde. 
Então, enquanto eu esperava o vôo 1733 das 19:36 de Pampulha para o Galeão, tive tempo de ir ao café onde encontrei um velho amigo com quem conversei ali, em pé, e que depois de caminhar comigo por toda o comprimento do saguão, que não é muito grande, me convidou ele para subir aquela escada que vai até o primeiro andar onde existe a área descoberta e de onde se podem ver os aviões chegando e partindo.
* * *
Subimos. 
A primeira coisa que vi foi o mesmo rapaz no mesmo lugar sentado do mesmo modo olhando o mesmo ponto obscuro e incógnito no mesmo horizonte. 
Aproximei-me dele para olhá-lo de perto: ele parecia um pouco mais velho e a única diferença que reparei era que seus olhos agora eram azuis.

A HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO TEATRO EM ROMANCE..

QUASE ESGOTADO....A HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DO TEATRO EM ROMANCE...

domingo, 26 de março de 2017

A leitura

A leitura
Ernst Bloch


Aqui podemos sonhar com as coisas mais simples: um pouco de luz no chao da sala, um som vindo de alguma arvore distante, o sentido de nossa respiracao.

Um pouco de poesia. Quando um dia acaba, espero a noite. Não sonhamos apenas de noite. Sonhamos também de dia, embora não se investigue com igual energia o sonho diurno. Chega-se mesmo a reduzi-lo a um simples prelúdio do sonho noturno. Entre ambos há distinções consideráveis. No sonho diurno o eu não desaparece. Mantém-se até bem vivo e sem exercer nenhuma censura. A ponto de os desejos tanto mais funcionarem. Serem mais visíveis, do que no sonho noturno. Apresentarem-se sem máscara nem vergonha. Livres de inibições. Corajosamente. De peito aberto. As ruas vivem cheias de gente com sonhos diurnos. Os mostruários das lojas tocam seus acordes. Um sapato elegante. Um vestido “toillette”. A nova máquina de lavar. Uma cadeira de balanço. E tudo o mais que se mostra. Em primeiro lugar, a casa sonhada a que tudo isso vai pertencer. Todo um mundo de vento em popa, multiplicando os castelos no ar, onde o custo de vida não é tão alto." (Ernst Bloch).

Aqui podemos sonhar com as coisas mais simples: um pouco de luz no chao da sala, um som vindo de alguma arvore distante, o sentido de nossa respiracao.

Lembro-me dos versos de Camoes que cantam:

Oh, lavradores bem-aventurados,
Se conhecessem seu contentamento!

sexta-feira, 24 de março de 2017

A espada das mãos vazias

A espada das mãos vazias

Rogel Samuel


Fernando Pessoa é perfeito. Em tudo o que fez. Leio «O guardador de rebanhos», a sua técnica de meditação. Na melhor tradição dos mestres Zen, ele diz: sou um pastor de pensamentos.


«Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

«Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.»

Reúne ele os pensamentos como um pastor suas ovelhas. Para que não se percam. Não se extraviem. Não divaguem. Não delirem. Reúne suas ovelhas dentro de si. É o que o Zen diz: «Viver dentro da casa». Dentro da casa é dentro de si. « Permanecer como se é, estar completo em si mesmo ... cada manhã é uma boa manhã, cada dia um lindo dia, não importa a tormenta que esteja desabando... » (Suzuki, «Viver através do Zen»).

Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) explica aquilo assim:

«As formigas vagarosas lutam para carregar as asas de uma libélula morta;

As andorinhas da primavera pousam lado a lado num ramo de salgueiro;

As fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas, ficam imóveis segurando as cestas repletas de folhas de amora;

Os garotos da vila são vistos com rebentos de bambu roubados arrastando-se através das cercas quebradas.»

Mas não é para ser compreendido! Se for compreendido, terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato experiências do Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres intelectuais, perdemos algo que nos permitia entender o significado».

Que perdemos? Perdemos a beleza. A claridade. Não vemos a beleza dos pássaros no céu, as flores na terra. A luz sobre a montanha, as sombras estreladas da noite.

A vida em si é beleza, algo misterioso. Escapa à compreensão intelectual.

Sotoba, um dos poetas da dinastia Sung, escreveu:

«A chuva nebulosa no Monte Lu,
E as vagas encapeladas no Che Kiang;
Quando ainda não se esteve lá
Muita mágoa se possui;
Mas uma vez lá e para casa se encaminhando,
Quantas coisas prosaicas se observa!
A chuva nebulosa no Monte Lu,
E as vagas encapeladas no Che Kiang.»
[Suzuki, «Essays in Zen Buddhism», I, p. 22.]

«Não há nada especial»: O mesmo velho mundo... e não obstante deve haver algo novo e belo na nossa consciência, pois de outra forma não se poderia dizer: "Está tudo o mesmo".

Uma grande mudança, uma grande iluminação teve lugar. Mas tudo está o mesmo.

Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou-lhe o desejo de ser iluminado no Zen. O mestre disse: «Venha novamente quando não houver ninguém por perto». No dia seguinte, o monge observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo. Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim". O monge chegou mais perto dele. Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras".

Algum segredo foi revelado? Sim, o sol brilha no luminoso dia. E ele está alegre e feliz.

Pessoa reúne seus pensamentos como um jogador reúne suas cartas de baralho. São os pensamentos-realidade, pensamentos-pedras.

Desconfia das aparências, das ilações. O Ser só existe quando se torna consciente de si mesmo, diz Suzuki. Mantêm-se na arte da atenção, da presença. Quando ver, ver. Quando ouvir, somente ouvir. Não sair. A distração, para o mestre Zen, é a morte. Como para o lutador de espadas. A alegria, a felicidade está no momento presente, no fragmento presente.

E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

O passado é um cadáver morto e podre, o futuro é ilusão e desconhecido. Passado e futuro trazem confusão mental, sofrimento. Se me deixo na confusão de minhas ilusões fico perdido e em perigo, como quem escala a montanha. Ver é ver, pensar é pensar. Cada um de cada vez. Ver e pensar ao mesmo tempo é a loucura burra das fantasias irreais. Uma realidade só se dá única. Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e estar consciente de que estou pensando. Um guardador de rebanhos.

É por isso que digo que Pessoa era perfeito, em tudo o que fazia, que fechava os olhos e deitava na relva. Pleno. Na rainha das meditações, a realidade plena. Plenamente alcançada. Desperto. Livre.

Como diz o Zen: «Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias». 

quarta-feira, 22 de março de 2017

“FIOS DE LUZ: AROMAS VIVOS”: a voz da saudade




“FIOS DE LUZ: AROMAS VIVOS”: a voz da saudade


por Tânia Du Bois

        Fios de luz, aromas vivos: leitura de Retrato de Mãe,soneto de Jorge Tufic, por Rogel Samuel: “Venham os fios de luz para tecê-la, aromas vivos para senti-la, às palavras do filho descrevê-la, proferi-la” (Rogel Samuel).
        Não conheço Jorge Tufic pessoalmente, e sim através de suas obras literárias: adoro! Penso que o Poeta merece uma homenagem especial, e o escritor Rogel Samuel dá essa atenção através de reflexões literárias em 15 sonetos de Tufic.
         Samuel ressalta o caráter literário da obra com olhar sobre o poeta. Revela o poder de quem interpreta costurando palavras e dando o significado à estrutura maternal dos sonetos, e declara que “o mundo poético e o mundo da realidade colidem, possuindo cada qual a sua própria verdade”.
        Fios de luz, aromas vivos – são sonetos que Jorge Tufic, inspirado na realidade, reconhece como expressão das lembranças. Segundo Samuel, “... acaba por ser mais real do que a própria realidade.” A voz de Tufic reflete a sua própria imagem, onde faz um testemunho do Retrato de Mãe. Em jogo de palavras, proclama histórias que espelham a sua relação com a sua mãe, como se fosse ontem e vivesse o amanhã. Cria significado através do tempo e das lembranças que sinalizam a sua ausência, buscando dar sentido à sua vida. “Que restara de ti, dos teus pertences? //... Tudo posto num saco humilde e roto. / Eu quis, então, medir esse legado, / mas limites não vi para a tristeza. / Davas a sensação de que o tesouro / se enterrara contigo. //... Que eternidade / pode igualar-se à voz desta saudade?”
        Através da imagem poética, mostra o seu eu versusmãe, ao alcançar a infinitude do tempo: sua intimidade desvela os mistérios da dor da ausência. Nesse horizonte, o poeta compreende, interpreta e projeta o sentido da herança da Grande Mãe que se perde com a morte.
        Fios de luz, aromas vivos revela a parceria de mãe e filho, onde apenas o amor é o único segredo. E a memória do poeta reconstrói os bons momentos sem se perder no tempo. “Nossa infância era tudo iluminada / pelas fontes da tua juventude. //... Ainda te vejo, o porte esbelto indo / por aqueles baldios transparentes / onde a luz, de tão verde, pincelando / os ermos...”
        Mesmo com a saudade presente, Jorge Tufic, em seus sonetos, volta ao seio materno para registrar a importância e a resistência da lembrança (viva) em sua vida. Ao escrever Retrato de Mãe, não teve medo de mostrar a outra face, o lado filho.
        O encontro entre lembranças e saudades, filho e mãe, deu a oportunidade ao escritor Rogel Samuel de fazer a análise detalhada da obra, mostrando o Poeta Jorge Tufic com o dom do mistério menor e mais emoção, revelando, mais uma vez, o seu talento literário.

terça-feira, 21 de março de 2017

Cantos de Ezra Pound

Cantos de Ezra Pound




Rogel Samuel




NO início dos "Cantos", Ezra Pound diz:

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.

Tradução de José Lino Grünewald. Foi-me dada por minha amiga Helena. O texto se move para frente, nau no mar quilha contra vagas impelindo adiante. O adjetivo "divino" cobre tudo, ambiente de mito. A "nave escura" veste o leitor de sugestão de destino. Trágico. Ovelhas a bordo ("e os nossos corpos") se abre ao sacrifício. Vem "o pranto aflito". Velas cheias. Deusa benecomata (tradução de "the trim-coifed", vestida de sua própria cabeleira(?)). Atmosfera homérica. O original reza:

And then went down to the ship,
Set keel to breakers, forth on the godly sea, and
We set up mast and sail on that swart ship,
Bore sheep aboard her, and our bodies also
Heavy with weeping, and winds from sternward
Bore us onward with bellying canvas,
Circe's this craft, the trim-coifed goddess.

Prossegue a tradução:

Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.

É o sol. É o Barco no mar. É o horizonte até o Término do dia. Bela imagem:

Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano
Chegamos aos confins das águas mais profundas.

O tradutor abusou da maestria, compôs tudo em "O", do Sol, do sol-maior: "Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano" - (Sun to his slumber, shadows o'er all the ocean)


E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios do sol, nem a
O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra sobre os homens fúnebres.





Ezra Pound - Os Cantos - Trad. José Lino Grünewald
CANTO 1
E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.
Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.
Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano
Chegamos aos confins das águas mais profundas.
Até o território cimeriano,
E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios do sol, nem a
O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra sobre os homens fúnebres.
Refluindo o mar, chegamos ao local
Premeditado por Circe.
Aqui os ritos de Perímedes e Euríloco e
“De espada a cova cubital escavo
Vazamos libações a cada morto,
Primeiro o hidromel, depois o doce
Vinho mais água com farinha branca
E orei pela cabeça dos finados;
Em Ítaca, os melhores touros estéreis
Para imolar, cercada a pira de oferendas,
Um carneiro somente de Tirésias,
Carneiro negro e com guizos.
Sangue escuro escoou dentro do fosso,
Almas vindas do Erebus, mortos cadavéricos,
De noivas, jovens, velhos, que muito penaram;
Úmidas almas de recentes lágrimas,
Meigas moças, muitos homens
Esfolados por lanças cor de bronze,
Desperdício de guerra, e com armas em sangue
Eles em turba em torno de mim, a gritar,
Pálido, reclamei-lhes por mais bestas;
Massacraram os rebanhos, ovelhas sob lanças;
Entornei bálsamos, clamei aos deuses,
Plutão, o forte, e celebrei Prosérpina;
Desembainhada a diminuta espada,
Fiquei para afastar a fúria dos defuntos,
Até que ouvisse Tirésias.
Mas primeiro veio Elpenor, o amigo Elpenor,
Insepulto, jogado em terra extensa.
Membros que abandonamos em casa de Circe,
Sem agasalho ou choro no sepulcro,
Já porque outras labutas nos urgiam.
Triste espírito. E eu gritei em fala rápida:
‘‘Elpenor, como veio a esta praia escura
Veio a pé, mais veloz que os marinheiros?”
E ele, taciturno:
Azar e muito vinho. Adormeci
Na morada de Circe ao pé do fogo.
Descendo a escadaria distraído
Desabei sobre a pilastra,
Com o nervo da nuca estraçalhado
O espírito procurou o Avernus.
Mas, ó Rei, me lembre, eu peço,
E sem agasalho ou choro,
Empilhe minhas armas numa tumba
A beira—mar com esta gravação:
Um homem sem fortuna e com um nome a vir.
E finque o remo que eu rodava entre os amigos
lá, ereto, sobre a tumba.”
Veio Anticléia, a quem eu, repelia,
E então Tirésias tebano,
Levando o seu bastão de ouro, viu —me
E falou primeiro:
“Uma segunda vez? Por quê? homem de maus fados,
Face aos mortos sem sol e este lugar sem gáudio?
Além do fosso! eu vou sorver o sangue
Para a profecia.”
E eu retrocedi,
E ele, vigor sangüíneo: “Odysseus
Deverás retornar por negros mares
Através dos rancores de Netuno,
Todos teus companheiros perderás.
Depois veio Anticléia.
Divus, repouse em paz, digo, Andreas Divus,
In ofiicina Wecheli, 1538, vindo de Homero.
E ele velejou entre Sereias ao
largo e além até Circe.
Venerandam,
Na frase em Creta, e áurea coroa, Afrodite,
Cypri munimenta sortita est, alegre, orichalchi, com dourados
Cintos, faixas nos seios, tu, com pálpebras de ébano
Levando o ramo de ouro de Argicida.

domingo, 19 de março de 2017

A pátria real e a pátria imaginária

A pátria real e a pátria imaginária

Rogel Samuel

“Não sejas um escritor, mas um profeta”, diz o verso de Antonio Quadros (1923-1993), o poeta português. Certamente assim os poetas eram conhecidos, na Grécia antiga. Que é um profeta? Profeta é o indivíduo que prevê o futuro, o que diz o que vai acontecer. “Não digas o que sabes nos teus versos, / Deixa para trás a ciência e a consciência; / Tudo aquilo que em ti não for ausência / São ideais perdidos, ou submersos.” É o poema. Não dizer o que sabe significa não repetir o passado, mas proferir o futuro, inaugurá-lo, fundá-lo. Falar do ausente, construir a presença daquilo que ainda não existe ou do que não está lá. O poema assim se chama “Poética contraditória”:

Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.
Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.
Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.
Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.

É um poema do livro de António Quadros “Viagem desconhecida”, de 1952. Nesta região desconhecida do porvir o poema se lança, ouvindo as vozes, liberando os seus deuses, os seus medos, o seu mistério, o seu pranto. É um mergulho no caminho do herói, ou seja, do profeta. Do que profere. O que diz o que não sabe, o que ouve o que não foi dito, o que vê o que não está na frente de seus olhos. Ou seja, entra nos portal heróico e perigoso do mito.
“António Quadros (1923-1993) defende que a nação portuguesa na sua essência (...) é dotada de um eschaton, de uma razão teológica, que consiste num diálogo ou numa dialética entre o humano e o divino: «Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica.» (...), escreveu Antonio Quadros Ferro (que deve ser seu filho). Ele chama isso de dialética entre Pátria Real e Pátria Imaginária.
“As caravelas já não partem deslumbradas a desvelar o Cabo. Não. O tempo é outro. Mas os pescadores portugueses continuam na praia a fixar com olhos estáticos o mar infindável e a viver e a lutar e a sofrer e a morrer o destino do mar.
E na imaginação das crianças e dos adolescentes, no inconsciente dos adultos frustrados numa fixação à terra que lhes parece injusta e odiosa, a ideia da aventura, da viagem, do descobrimento palpita como uma promessa e como uma fascinação" escreveu António Quadros.
Confira em:
http://antonioquadros.blogspot.com/

sexta-feira, 17 de março de 2017

Bandeiras de ferro

BANDEIRAS DE FERRO


Foto de R. Samuel: Katmandhu.








Bandeiras de ferro

Rogel Samuel

Estranhas bandeiras são aquelas, que vi em Katmandhu, bandeiras de ferro. Acenam ao vento do alto da montanha, mas são, pesadamente, bandeiras do mais fero ferro. Parecem oscilar aos ventos frios que por ali passaram, adejando e ondulantes no ar limpo da tarde, mas são solidamente, asperamente, de ferro bruto.

Elas estão no alto da estupa de Soyambhu, têm um mantra de Kalachakra marcado como um carimbo ao centro, ao ventre, talvez para proteger o meio-ambiente, os arredores. Estou pasmo como naquele tempo eu pude tanto circular, tanto fotografar, tanto circumambular aquela extraordinária estupa.

Somos todos devedores dos ares que vêm de lá trazendo as graças, as bênçãos daquela estupa, com seus templos, com suas trompas, com suas bandeiras de ferro, imóveis, imobilizadas pelos anos perenes.

quinta-feira, 16 de março de 2017

A ELIZETH


A ELIZETH

Rogel Samuel


 Recebo um presente rico. Um extraordinário presente, de minha Amiga Lyra. É um disco, um primor de Elizeth Cardoso. Eu me lembro que tive outra amiga comum, vizinha e amiga de Elizeth. Uma dama, as três. Elizeth, dizia minha amiga, almoçava frugalmente. Uma fruta, umas folhas de alface. Lutava contra a gordura. Elizeth canta, divina. Me lembro de outras divas, como Montserrat Caballé e La Callas, que também lutaram contra a gordura. "A Sra Onassis é muito gulosa, mas não come nada. Apenas prova o molho com um pedacinho de pão, na cozinha", conta Christian Cafarakis, biógrafo de Onassis, que foi marinheiro no Cristina. Callas e Onassis brigavam diariamente, aos gritos. Dois temperamentos explosivos. Mas se amavam. Callas nada queria da fortuna dele. Quem deu despesa foi Jackie. Segundo o biógrafo, em três anos de casamento, Onassis deu-lhe 120 pulseiras, 50 de brilhantes, 500 pares de brincos, 300 colares, e mil anéis, além de uma coleção de pedras preciosas, soltas. O mais exótico presente foi um par de sandálias de veludo azul-rei, como "babouches", com um diamante de 16 quilates em cima, cercado de diamantes e esmeraldas em círculos e triângulos. O Sr. Onassis pagou por isso a soma de 120.000 dólares. Presente de aniversário de Jackie, em agosto de 1970. Elizeth canta, perfeita. Ela me lembra minha prima M., que a adorava, na juventude. M. era uma mulher belíssima. Meu pai a chamava de "bebecadum", não sei por que. Morava, quando jovem, na Tijuca. Na época a Tijuca era muito elegante. Tínhamos uma vizinha que desfilava num Cadilac branco, conversível, e que morava numa mansão, um pouco acima na Rua Des. Isidro. Nosso vizinho tinha um casal de filhos, jovens e belos. Foi com muita surpresa que, anos mais tarde, eu soube que o menino, hoje, é delegado de polícia, como o pai. Meu tio era vivo e nos levava à Barra da Tijuca, aos domingos. Era uma praia deserta. Minha prima M. casou-se com o empresário J., muito rico, que era muito meu amigo. Eles se foram para os Estados Unidos. A última vez que a vi  foi na década de 70, em casa da Mariza Raja Gabaglia, na época casada com um pecuarista. Em Ipanema. Eu estava ali com minha amiga R., quando minha prima M. chegou, com o marido. Década de 70. M. usava um vestido preto brilhante, os ombros à mostra, os cabelos soltos. Nenhum enfeite, nem uma jóia. Ornava-se de sua beleza. O salto altíssimo dos sapatos exaltava o porte de seu perfume. Dominava o ambiente, com seu sorriso de rainha. Agradável, simples e digna. Você pensa que a namorei?  Mariza Raja Gabaglia estava no ápice de sua fama e glória, como escritora e mulher. Sim, os anos 70, em Ipanema. Saíamos de madrugada e esticávamos no Degrau. Ou em algum botequim operário, onde era possível encontrar Mário Henrique Simonsen falando de ópera. Sim, vivi os anos 70. Tudo isso me sugere a Elizeth, a Divina. "Seu mal é comentar o passado..." canta ela. Muitos foram os anos que se passaram, Elizeth morreu. Morreu a Callas, o Onassis, a Jackie. Meu tio, meu pai e o empresário J. Todos morreram. A vida está morrendo. Os anos morrem. A vida, eu a recebi, um presente rico, como este disco da Elizeth.

quarta-feira, 15 de março de 2017

A APARIÇÃO NA ALAMEDA DE MALLARMÉ



A APARIÇÃO NA ALAMEDA DE MALLARMÉ - Rogel Samuel
Canta o poema “Aparição” de Stéphane Mallarmé (1842-1898), na deliciosa tradução de Onestaldo de Pennafort:
A lua estava triste. Arcanjos sonhadores
Em pranto, o arco nas mãos, no sossego das flores
Aéreas, vinham tirar de evanescentes violas
Alvos ais resvalando entre o azul das corolas.
— Era o dia feliz do teu primeiro beijo.
Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.
Eu ia à toa, o olhar no chão velho e tristonho,
Quando, trazendo nos cabelos um sol lindo,
Na alameda e na tarde apareceste rindo.
E eu julguei ver, com seu chapéu de luz, a fada
Que nos meus sonos bons de criança mimada
Sempre deixou nevar dentre as mãos mal fechadas
Punhados celestiais de estrelas perfumadas.
Se nós “traduzíssemos” — a lua se entristecia — poderíamos melhor sonhar com a atmosfera do poema. Sim, a lua se entristecia, como os arcanjos que voavam ao redor. A lua se entristecia e fazia os arcanjos chorar. Ou fazia chorar as suas violas lamurientas. O branco vem da lua para os “ais” das violas... Mas por que se entristeceria a lua? Aquele era o feliz dia do seu primeiro beijo, feliz e não triste. O poeta ia colher um sonho, o beijo do verso musical. O arco nas mãos dos anjos soa um pouco fálico, mas em Mallarmé tudo é obscuro. Ele ia, caminhava à toa, olhando o chão velho quando ela aparece com seu sol nos cabelos. Com seu punhado de estrelas nas mãos, para a criança, estrelas perfumadas. O poema parece simples, claro. Mas não, nunca se sabe. Em Mallarmé não.
A lua estava triste, mas o sol aparece. A tristeza ia ali, até que aparece o sol nos cabelos da amada. O poema opõe “sol” e “lua”. Geralmente o sol é masculino; como a lua, feminina. Geralmente. A lua pacifica e entristece. O sol aumenta e anima. É assim naquela mitologia tântrica. Aqui o poeta é lua, a amada sol. Não excepcional o fato de Mallarmé ser um poeta “maldito”. Os malditos são os que invertem as coisas, revolucionam e põem tudo de cabeça para o ar. A vida da poesia assim o faz. A poesia é a fada da criança mimada e voluntariosa em seus cuidados. Sem remorso, sem queixa. Não, não há romantismo, mas decadentismo. E simbolismo. Mallarmé faz dançar os seus símbolos, seus arcanjos e convivas do salão da Rue de Rome, no “verbo mágico” das suas “extravagâncias verbais”, na volúpia do seu famoso hermetismo, aqui não tão impenetrável. Evasão, magia, mas algo tênue: o poema é quase ainda parnasiano. Mallarmé ilumina as vitrines de palavras e imagens que dançam em festa galante na alameda da tarde. Por isso o poema musical, deliciosamente valsa.
Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.
— a música que a embaladora tradução de Pennafort mantém acesa, digo, audível, como em certas assonâncias:
me - meu - meu
vam-se - bem - perfume - quei
mes - sem - mor - sem
coração - colhe - colheita
— tão boa quanto o ritmo do original francês:
Ma songerie aimant à me martyriser
s'enivrait savamment du parfun de tristesse
que même sans regret et sans déboire laisse
la cueillaison d'un rêve au coeur qui l'a cueilli.
Sim, sim, as soluções de Pennarfort são sempre ótimas. Mas ele acaba escrevendo um novo texto. Outro poema. Paródia.

MALLARMÉ

MALLARMÉ


 retrato por Nadar


BRISA MARINHA

  
A carne é triste e eu, ai! já li todos os livros,
Fugir! Fugir pra longe. Ouço as aves aos gritos
Ébrias na espuma ignota e sob o céu, em bando!
Nada, nem vãos jardins nos olhos se espelhando
Retém meu coração que se embebe de mar,
Oh noites! nem a luz da candeia a alumiar
O deserto papel que a brancura defende;
Nem mesmo jovem mãe que seu filho amamente.
Hei-de partir! Vapor em marítimas crises,
Iça o ferro e faz rumo a exóticos países,
Um Tédio triste, em cruel e inútil esperar,
Crê no supremo adeus dos lenços a acenar.
Que os mastros, porventura, atraindo presságios,
São os mesmos que um vento inclina nos naufrágios.
Soltos no mar, no mar, sem ilhas nem esteiros.
Mas ouve, coração, cantar os marinheiros.

(Brisa Marinha, poema de Stéphane Mallarmé. FONTE: Antologia “Oiro de vário tempo e lugar  - De São Francisco de Assis a Louis Aragon-”. Versão por A. Herculano de Carvalho. Porto-Portugal: O oiro do dia, 1983.)

Original:
BRISE MARINE
La chair est triste, hélas! et j´ai lu tous les  livres.
Fuir! là-bas fuir ! Je sens que des oiseaux sont  ivres
D´être parmi l´écume inconnue et les cieux!
Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retriendra ce coeur qui dans la mer se  trempe
O nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture,
Lève l´ancre pour une exotique nature!
Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l´adieu suprême des mouchoirs!
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu´un vent penche sur les naufrages
Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots...
Mais, ô mon coeur, entends le chant des  matelots!



ENVIADO POR AMELIA PAIS

terça-feira, 14 de março de 2017

A água canta

A água canta




Rogel Samuel

O outono lentamente se instala. Nas árvores, nas casas, no ar. Há a sutileza de um ar frio. Não é inverno, mas outono invernal. Dá para usar uma roupa um pouco mais quente. Ler um poema mais antigo de Bilac. Descreve o poema uma janela, o jardim, o mar. As folhas mortas, o navio o viajar o mar inabitado e morto. A água canta. É o amor quem canta. O fugidio amor que veio de noite, só por uma noite, amor marinheiro de Bilac que se sente envelhecido e desconfortado. O amor foge, ele é o sol. O mar está deserto, triste, as folhas amarelas caem, viuvez, velhice. Desconforto. Solidão.

Em uma Tarde de Outono

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!

E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol...

Olavo Bilac

quinta-feira, 9 de março de 2017

A beleza pesa como a morte

A beleza pesa como a morte

Rogel Samuel

Todos conhecemos «A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK» de T. S. Eliot. E conhecemos seus labirintos, seus desvios, suas alusões. Sua dificuldades de leitura, a começar pelos primeiros versos:

Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão.
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.

Os poetas mais difíceis são os que mais me impressionam. Não a dificuldade aleatória, gratuita. Mas a profundidade dos semas mais alucinantes, como no «Por de sol» de Holderlin, na tradução de Manuel Bandeira:


Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De tôdas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.


Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Êle no entanto já ia longe, levando a luz
A gentes mais devotas.
Que o honram ainda.

Nos versos de Elliot, o anoitecer é um «um paciente anestesiado sobre a mesa». Esta metáfora hospitalar retorna no que pergunta:

E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos...

Sim, «impossível exprimir exatamente o que penso! », diz, ele, Eliot, como se «uma lanterna mágica projetasse / Na tela os nervos em retalhos...»
A beleza está no que não diz, mas retém. Silencia.
Nos versos de Holderlin a alma anoitece bêbada de prazeres, dos prazeres da poesia. O sol joga uma malha de ouro sobre tudo e começa a cantar. O som do canto ecoa nas colinas. Nos bosques. Há uma pátina de sexualidade nesse cantar, bêbado de prazeres. O adolescente-poeta escuta o ouro do cantar do sol, que leva as luzes. A noite caminha próxima, há delícias no ar desse poetar. Nesse pomar, como a «Quietude», de Ungaretti, que diz, na tradução de Menotti del Picchia:

A uva está madura e campo arado,
o monte se destaca das nuvens.

Nos poentos espelhos do verão
caiu a sombra

Entre os dedos incertos
sua luz é clara
e longínqua

Foge com as andorinhas
o último desespero

Ou «Já se desprende a magra flor», de Salvatore Quasimodo, na tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti:

Nada saberei de minha vida
escuro monótono sangue.

Não saberei quem amei, quem amo
agora que aqui contido, reduzido a meus membros,
no gasto vento de março
enumero os males dos dias desvendados.

Já se desprende a magra flor
dos galhos. E eu contemplo
a paciência de seu vôo irrevogável.

Ou, na «Imitação da alegria», diz Quasimodo:

Ali onde as árvores fazem
a tarde ainda mais abandonada
indolente
sumiu teu último passo,
como a flor que mal se mostra
sobre a tília e insiste em viver.

Buscas sentido para teus afetos,
encontras o silêncio em tua vida.
Outro destino me revela
o tempo refletido. Pesa-me
como a morte, a beleza que agora
noutras faces brilha.
Perdida está toda coisa inocente
mesma nesta voz, sobrevivente
a imitar a alegria.

O que o poeta diz é «vamos, tu e eu», «sigamos por certas ruas quase ermas, através dos sussurrantes refúgios», « Ali onde as árvores fazem / a tarde ainda mais abandonada», «nos poentos espelhos do verão / Entre os dedos incertos», vamos « tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite». Enfim, vamos buscar da poesia o poema e mergulhar no «sentido para teus afetos», pois a beleza pesa como a morte.

segunda-feira, 6 de março de 2017

O PLANTADOR DE NAUS A HAVER

O PLANTADOR DE NAUS A HAVER

ROGEL SAMUEL
Escreveu Fernando Pessoa:
        D. DINISNa noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
          O rei D. Dinis governou entre 1279 e 1325. Criou a semente da primeira universidade portuguesa, em Lisboa (1290)/Escreveu 72 cantigas de amor e 51 de amigo, como a deliciosa:
Levantou-s' a velida,
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:
vai-las lavar alva.
Levantou-s' a louçaa,
levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto
          Ora, D. Dinis ficou conhecido como «lavrador», «plantador». No poema de Pessoa bem se vê. Plantador do Império. Ele plantou os pinheiros com que se construíram as naus.
          Nós não vamos examinar aqui o heróico fato de que aqueles navios também espalharam o terror pelo mundo. Toda a Europa fez isso. As naus portuguesas dominaram o mundo à força das armas. Há, por exemplo, um texto, na literatura singalesa, que conta a invasão de um mosteiro budista. No Brasil, nossos índios foram dizimados etc.
          Não.
          Vamos ficar com o poema. Com a visão do Pessoa jovem, poeta máximo.
          "Na noite escreve um seu Cantar de Amigo". Por que "na noite"? Porque o Império ainda ia amanhecer.
          Este verso revela a maestria do poeta, são dez sílabas, numa alternância de átonas e tônicas: na NOIte esCREve um SEU canTAR de aMIgo. (-/=/-/=/-/=/-/=/-/=/). 1-2, 1-2, 1-2, 1-2, 1-2.
          Este ritmo, binário, com alguma imaginação, traduz o ato da máquina, o ato do escrever, do trabalhar, seu ritmo, sua maquinaria, seus pinhais, seus delírios. O verso marca o ritmo do trabalho poético, do trabalho noturno, do trabalho intelectual, silencioso, martelando. E Amigo. Ele escrevia a história, a história do futuro, «o plantador de naus a haver».
          E ele "ouve um silêncio múrmuro consigo", que é "o rumor dos pinhais", o rumor do vento nos pinhais, que sussurram: seremos reis, seremos Detentores-reis das terras de além-mar. O murmúrio do futuro, murmúrio do "trigo da história", murmúrio do cabelo da história, que ondula sem se poder ver.
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
          Pessoa abusa de sua genialidade, no «Plantador do Trigo do Império do Fim do Mundo». Sim, porque o Império se estendeu, de Oriente a Ocidente do Orbe terrestre. Como dele disse Camões:
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
          D.Dinis canta, e "esse cantar, jovem e puro, busca o oceano por achar". Aponta o futuro.
          Pessoa era um patriota, e a pátria ingrata só lhe prestou homenagem e lhe fez honra depois de morto. Como a Camões.
          No maior jornal de Lisboa de sua época, o "Diário de Notícias", o seu nome nunca apareceu. Ou melhor, só apareceu na página policial, quando um mágico, seu amigo, fez alguém sumir de verdade. Seus colegas de escritório nem sabiam que ele era poeta! Por isso disse que pertencia a uma geração que herdara a descrença.
          "Pertenço a uma geração, diz ele, que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em tôdas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda a impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros eram enamorados só da beleza, outras tinham a fé na ciência e nas seus proveitos, e havia outras que, mais cristãos ainda, iam buscar a orientes e ocidentes outras formas religiosas com que entretivessem a consciência, sem elas ôca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de tôdas essas consolações nascemos órfãos. Nós perdemos essa, e às outras também. Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se sentir viver. Um barco parece ser um objeta cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um pôrto. Nós encontramo-nos navegando, sem a idéia da pôrto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é precisa. Sem ilusões, vivemos apenas da sanha, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos..." (nota solta, sem data nem assinatura, do magnífico poeta Fernando Antonio Nogueira Pessoa, talvez o maior de todos nós).

sábado, 4 de março de 2017

E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS



E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS

Rogel Samuel


- E tu, última sombra, demais não será para saltares do chão pedir e pelo bosque voares? Em ti já as figuras sutis se delineiam das finais invisíveis. O do rastro não é senão o de meu desatinado rumo.
- Aonde foram eles, aonde, aonde? Ao fim do mundo?
            «...et la nuit seule entendit leurs paroles...» - cantava Verlaine.
- Gruta de luz! Gruta de luz!
Lá fora, gigantes chamam para a luta.
- Que gigantes? Avança, prepara o combate, as grandes armas já ouço, que rolam, pesadas como bolas, de aço e no vácuo tempo de entrechocarem-se. Avança! O que está cumpra-se de imediato, escrito, o cortinado abra-se da cornija do luar,  que a fina roupagem de gaze a veste, que seja desnudado o limbo, vai. Vai, e a vida valerá teu grito de socorro. E a angústia tua nos gigantes clama para a luta?
            Mas nada. O bosque morto, daquele halo de leite impregnado, de lua e o seu silêncio como diáfano véu circulando como cobra que serpenteia entre as árvores...
«A lua branca, no bosque brilha. De cada ramo, parte uma voz: Oh, bem amada!»
Lá bem longe, sopram os gigantes grandes tubos e escudos dos ventos. Mas não aqui, nessa calma, massa lassitude plácida. A gruta se enviesa em si. Velam-se as paisagens em harmonia oblíqua. Desço a ladeira, saio da massa da paisagem, intocado. Passo. Em vão. Cruzam-me ruas, calçadas em diagonal, lusco-fusco, molhadas da madrugada, vitrificadas do nada, amassadas por grandes árvores escuras que se curvam no meio do vento como comadres assanhadas. As folhas escorregam pelo chão. Não é rua, mas o Bois de Vincennes, Paris. Os lencinhos das folhas das árvores caem. Flutuam, gélidos.
Um vulto cabisbaixo sob as formidáveis árvores passa, envolto em manto preto, desaparecendo mergulhado na neblina de luz da lua. É uma velha. Que prossegue. Ela fala baixinho e sozinha gesticula (balbuciando talvez suas coisas do passado, referindo-se a seres que já morreram, ou será uma prece repetida em murmúrios por aléias velhas ali mesmo onde talvez ela conhecera seu jovem amor, talvez).
Eu a sigo. Vejo-a esconder de mim umas notas velhas, amassadas, amarradas em nó de pano. Talvez pense que sou um ladrão (e talvez eu mesmo seja), do tempo, do passado, de histórias de narrativas... aquilo não é dinheiro, mas algo mais precioso, mais raro, as velhas cartas de amor, sobras daquela era curva de preto. Ela já não me vê, mas pressente, eu a sigo, como um assassino. Ela prossegue, figura embaçada, saída das brumas do seu desconhecido passado.
            Agora chove.
            Pois na face da paisagem (aquelas árvores encurvadas sob a chuva fina, aquelas aléias e o lago por cuja superfície lisa onde cai a gélida geada) aquela mulher prossegue já coberta pela sombrinha... eu estou perto daquele templo tibetano karma-kagiu, a velha meio torta, resmunga alguma coisa para um invisível ser a seu lado, apontando-o, acusando-o com o dedo indicador, em ameaça: «você me abandonou», parece gritar.
Mas, louca, um sorriso se esmalta, e depois a estranha gargalhada, sardônica, louca teatralidade, que se espalha, por todo o espaço do mundo daquele bosque se espraia... a vera, a realidade da horrível comédia... o sorriso...
            Oh, poucos puderam presenciar tão rara de face para o meio da noite escura, naquela facetada madrugada, pois a senhora parou, sem me ver, ria-se tragicamente para a capa do copa daquelas grandes árvores altas, falando aquelas incompreensíveis coisas naquele idioma histórico, desusado, arquivado e raro... e desapareceu como a sombra da neblina onde fiquei à espera de que os grandes gigantes aparecessem para a minha luta.

quinta-feira, 2 de março de 2017

FALA INICIAL




FALA INICIAL


Rogel Samuel



No primeiro verso: “Não posso / mover / meus passos”, há sete sílabas, com três tônicas: PO / VER / PAS – e marcam a sucessão de tônicas e átonas, compassada sucessão dos iniciais passos do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.
Mas já que o Romanceiro começa por um “não” – “não” de “não posso”, ou seja, “não” de interdição, do Interdito, do Proibido, do Negado, “não” da “morte e destruição”, daquela revolução que se perdeu, trágica, “que transita sobre angústias”.
Quem diz, no início: “não posso”, numa introdução negativa, negada, invertida, inversa – diz também “não entrarás, ó leitor”, e/ou “não vou ser capaz de fazer”, ó poeta. É a anti-proposição,  do Romanceiro.
Não, não posso entender o que aconteceu, naquele labirinto da História, onde o Brasil é esquecido, nó cego, morto, apagado, não da memória daquela estória de amores e de ódios. Não, não compreendo eu, o que estava acontecendo, naquele vinte e um de abril, no instante de lá, a terra está confusa, no ar sinto sinos, na boca ouço “o roçar das rezas”, na pele me arrepia a morte, ao ouvir a condenação, a culpa, o degredo, o Não.

Não posso mover meus passos
por êsse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amôres e ódios vão:
-pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;

Mas vejo, e já pressinto, a masmorra, a sombra, o carcereiro que transita pisando angústias com o coração fechado, as altas madeiras do cadafalso, a morte pública, o pasmo da multidão.
          O poema todo é acompanhado pela batida sincopada de um “ÃO”, - ão! – ão! – ão! -  que se repete, com a regularidade da marcha fúnebre, cadavérica, do bater de pesados, soturnos sinos, funerários: vão, condenação, coração, multidão, oração, proclamação etc. até o fim, com o fim mortal “eterna escuridão”.

-avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
-descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.

O próximo verso é magistral: “batem patas de cavalos”. Por quê digo magistral? Primeiro, pelas consoantes que batem: o “b”, o “p”, o “t”, o “k” (de cavalos) – todas batem naqueles cinco “aa” – ba – pa – ca – va ---- de tal modo que quase é possível, com certa imaginação sonora, ouvir as patas dos cavalos batendo nas calçadas, nas pedras daquelas ruas de Vila Rica, no dia vinte e um de abril de 1789, cavalos dos soldados da morte, cavalos signos masculinos do poder de vida e morte.
Ah, aliás todo o poema é sonoro: dá para “ouvir” o bater dos sinos, o sussurrar das rezas, o tilintar das chaves, as patas dos cavalos, a voz do Brigadeiro... – aquilo fala da desgraça, das vozes daquele fatídico dia.

Batem patas de cavalos.
Suam soldados imóveis.
Na frente dos oratórios,
que vale mais a oração?
Vale a voz do Brigadeiro
sobre o povo e sobre a tropa,
louvando a augusta Rainha,
-já louca e fora do trono
na sua proclamação.


Ali, o poema cai na “cova do tempo”. Lá, as “intrigas de ouro e de sonho” se confundiram sinistramente com a condenação e a morte. Ali, se misturam “quem ordena, julga e pune” com “quem é culpado e inocente”. Lá, a “tinta das sentenças” e “o sangue dos enforcados” morrem no mesmo pântano lúgubre e terrível. Ali, “o castigo e o perdão” caem na mesma cova.  Lá, confundem-se “liras, espadas e cruzes”. E ali no mesmo vão obscuro, “as palavras, o secreto pensamento, as coroas e os machados, mentira e verdade estão.”  Lá os “ossos, nomes, letras, poeira...”.  Sim, rostos, almas, herdeiros, rastros - o mundo está no mesmo chão do esquecimento.

Ó grandes muros sem eco,
presídios de sal e treva
onde os homens padeceram
sua vasta solidão...

Você sabe o que é “muros sem eco”? Muros sem fala, nem eco? Muros dos presídios amargos e escuros? Presídios de solidão vasta e padecer?

Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta a nossa aflição.

Choramos êsse mistério,
êsse esquema sôbre-humano,
a força, o jôgo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.

Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!


         No alto da praça principal de Ouro Preto há estátua de mulher que sorri, no cimo do prédio onde é hoje o Museu da Inconfidência, mas que era Cadeia: um museu da tortura (tão próprio nesse país), a Casa do Poder Repressivo, na época da Inconfidência, sim, há uma estátua, e ela representa a justiça, ela é mulher com afiada e pontiaguda faca, espada na mão, espada que aponta o espaço, lá onde se pode imaginar o vão do ventre de um ser humano, espada fina, na ameaçadora mão, da Justiça, que ri, que sorri, que perigosamente sorri, de prazer, de gozo, sorriso do mistério, nunca desvendado, sorriso das lendas mortas, das silenciosas vertentes, das falas, dos mitos, da substância inexplicável das correntes escuras da escravidão, sorriso da morte, do escuro destino, da sombra da Noite, da destruição das vidas e dos amores, de amadas, de poetas, de ouro, de diamantes, daquele esquema ultramarítimo da espoliação capitalista, da força da devassa, do santo inquérito, do cadafalso, da tortura, das masmorras de pedra, do esquartejamento, do ouro!