sexta-feira, 26 de maio de 2017

O RIO NEGRO

O RIO NEGRO
 

Rogel Samuel

Em 1729 morrem no rio urubu 
vinte e oito mil índios 
assassinados 
Mas somos fracos para esta luta 
e fala afiada. 
Mas na margem a cozinheira corta o peixe 
como o selo que pincela, amara. 
Três homens remam montados nas águas 
Oh estamos fracos para a luta 
preparada selva absoluta. 
No caminho vendem os armadores as ilhas 
cai a chuva sobre as lajes da tarde 
que estamos fraco para a luta 
preparo o corte a morte. 
Preparo o rio,  urubu, orgulho das águas 
imprópria para o passeio público 
não o passado branco amigo 
gesto sobretudo de suas partes 
ali viram morrer 300 malocas 
no rio urubu  rio negro da morte 
o que passa entre o mato aziago 
É belo? É limpo? adejam  papagaios 
entre mil insetos de teia de ouro fino 
o rio não esquece 
o rio nunca esquece 
nunca lava 
a hecatombe a fila a corrida 
Naquele dia seguimos até o Celismar 
na sincopada batida  de Ananda
bois espiam da margem 
crianças olham ocorridas 
gritam cios cicios curumins 
passarinhada menina 
a cunhantã levantou voo? 
o curumim mergulhou? o rio urubu prossegue 
sua marcha fúnebre  ritual líquido da corte 
onde um dia, nesta tarde 
não me deixaram mergulhar 
como se ali o rio pudesse 
para sempre me tragar 
quantos olhos aparecem? quantos ameaçam? 
na leveza do anum  canarana 
a criança ao longe vista 
o rapaz nu ri ou está chorando? 
o sol se põe naquela tarde 
densíssima de calor e escudo 
e escuro e orgulho o rio negro 
fecha suas portas e véus 
sobe para os céus suas veias
iluminadas e nervuras 
acesas 
lá estão milhares de índios mortos 
ranger de dentes 
o rio chamado urubu 
sons percorrem suas  luvas pretas 
exclusividades de belezas 
urubu rio range dorme cemitério norte 
risca fio apertado brilho fantasma 
sobretudo preto urubu balança e nos ameaça 
nos quer no seu túmulo histórico 
heróico
amazônico emparedado matagais gerais 
alta terrível floresta 
transforma as corridas amas
úmidas  amantes  #
rio doente para sempre 
que desde o município de silves 
está pronto para ejetar  seus encapuzados enlevos 
e inocular a morte 
como as suas aranhas
rio que se enluta de capa preta 
desde o Século Dezoito 
ferve meu sangue a saliva dos mortos 
escuro e orgulho
onde um dia, nesta tarde 
meu pai não me deixou mergulhar 
como se ali o rio pudesse 
para sempre me tragar 
que não entendo esse rio 
não me fala  para mim estrangeiro
me repele me ameaça 
com sua capa de aço 
colorido festival amanhece 
que cor é essa? que desconhecida 
alegria em bandeiras em pânico? 
o capinzal desce o rio de uma vez 
ilha de capim que um animal  levado 
pelo azul  cheio de tudo 
está frio? está calor? 
estou morto? sobrevivo? 
a luz não é simples 
onde a morte está nada é simples 
ainda lá e passam chorando 
populações indígenas navegando 
que amaldiçoado por dentro
do escuro e orgulho
onde um dia, nesta tarde 
meu pai não me deixou mergulhar 
como se ali o rio pudesse 
para sempre me tragar 
o enigma passa sobre o plano espetáculo 
não serei o mesmo depois do fim da  era 
meus pais  sepultados ali 
minhas águas falam de minha história 
mortos meus irmãos eu detenho 
oh irmãos, detenhamos essas águas 
pois ainda são sangue derramado 
mantenhamo-nas as de mãos dadas de mãos tigres 
fiquemos alertas e não nos afastemos 
unidos nesta desgraça armada 
a aurora retardada nevoeiro 
que tudo envolve e ameaça 
a noite retorna  contínua 
sua caminhada fria 
o escuro e orgulho o frio o canto  o pranto 
o seco as nossas desconhecidas línguas 
a palavra perdeu seu suor 
nesta mata tudo acabou 
dentro do calor há muito frio 
nuvens negras de sol 
sobre o pênis de seu risco preto 
vêm tímpanos de guerra 
não nos deixe, amigo, não 
não nos abandone 
ainda podemos fazer um pouco de noite 
da noite que não retorna 
viveremos esses momentos 
como vivíamos outrora 
soubéssemos o que fomos 
teríamos extintos os mesmos  registros 
sentiremos a dor, a última dor 
de nossas queridas mães selvagens 
traspassadas nas lanças caídas
perdidas 
reconheceremos o caminho 
morrer não é mais adiante no amorfo 
lúcida visão do dia 
meu pai já está morto ali 
já amanhece a ponta do sol 
as últimas bocas dizem as últimas verdades 
pouca irradiação tardia 
meu pai já está morto  nossos nervos selvagens 
escondidos no mormaço venhamos, unamo-nos 
contra tal atrocidade 
caíram esmagados e obscuros 
os principes da amazônica cidade 
não sobra registro  livros  história 
seus nomes se perderam 
mesmo em papel crepom  raça  extinta 
saiamos já daqui deste poema 
com tudo o que fomos 
não se volatizaram esses altos valores? 
oh verdes  claros  cimos  ares 
luzes inatingíveis 
estamos aprisionados no passado 
é o pó a pedra a extrema a vermelha 
pedra do rio negro 
do rio negro calado 
ó calar subterrâneo que grita  alto 
não me conformo, meu deus, eu não 
me conformo 
usemos algo, sangremos algo, falemos algo
o sangue a nossa voz 
a nossa veia acordada 
a transfusão de nossas águas 
não fiquemos assim como nada 
não fiquemos parado no tempo 
da rota história 
vamos ao traspasse do tempo 
ou não teremos história 
marco pavio lamparina navio 
voemos para  os extintos 
sem nome sem nunca mais 
pois em 1729 morreram no rio urubu 
vinte e oito mil índios meu passado 
hoje, em 1984 
ainda sofremos o sussuro assombrado 
seres ocultos na floresta 
no escarro noturno na folha 
ruídos surdos da morte 
silvos de cobra 
grito que se atrofia 
que somos? apenas homens 
culpas cospem jogos 
línguas secam vazias de falas 
o futuro desaparece no passado 
ondas de óleo negro como esperma 
sob um bafejo roto 
louca magreza fome desterro 
derrama o rio partes expostas 
e geográfico não mais corta 
seu beijo frio horizonte amarelo 
que nada nasceu ali depois nem nascerá  
nem os pássaros cegos 
o céu  fantasma estéril 
o amor misturado ao pasmo do passado 
as paisagem  irritadas 
as aranhas e escorpiões afiados 
para sempre este 
sempre urubu, sempre interno 
sempre negra flor, sempre inferno 
que nós nos lembramos do dia 
que nos surpreende afinal 
 as armas tocaram as peles 
o rio o sangue negro detesta
o castelo a testa a proa 
a fome as estrelas a morte os ares 
e há pontos de luzes verdes e vinagres 
na costa desta  floresta 
as coisas são diamantes 
e só não ouve quem não quer o ranger de  dentes 
espinhos venenosos se postam 
preparada armada a mata 
e há urubus e  no cornicho atenção
dos cadáveres históricos 
de um grande cemitério 
(mas tudo passará. No mesmo fio da espada 
e sob o mesmo tom da corte negra) 
ó tristes homens  mãos de pedra 
- um índio vinha e subia o rio de repente 
a todos se oferece o rio de cinzas 
sua divina partilha 
ninguém mais sabe  nada 
perambula entre nós cachoeira 
(mas o anjo e a estrela entram na mesma pupila 
sua auréola bela e amiga 
refaz a alegria antiga 
e eu choro o festival que nunca passou 
penetro o jardim e esquecidas 
as flores sobre a balsa passam 
amaldiçoadas passam 
de Manaus a Itacoatiara 
nem sabem os demônios das margens 
o chumbo soberano. 
Pois perto é a morte 
com sua mão afiada 
E a ponte o caminho 
está entre o tudo e o nada 
e somos raros agora 
geração aziaga). 


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