sexta-feira, 26 de maio de 2017

O RIO NEGRO

O RIO NEGRO
 

Rogel Samuel

Em 1729 morrem no rio urubu 
vinte e oito mil índios 
assassinados 
Mas somos fracos para esta luta 
e fala afiada. 
Mas na margem a cozinheira corta o peixe 
como o selo que pincela, amara. 
Três homens remam montados nas águas 
Oh estamos fracos para a luta 
preparada selva absoluta. 
No caminho vendem os armadores as ilhas 
cai a chuva sobre as lajes da tarde 
que estamos fraco para a luta 
preparo o corte a morte. 
Preparo o rio,  urubu, orgulho das águas 
imprópria para o passeio público 
não o passado branco amigo 
gesto sobretudo de suas partes 
ali viram morrer 300 malocas 
no rio urubu  rio negro da morte 
o que passa entre o mato aziago 
É belo? É limpo? adejam  papagaios 
entre mil insetos de teia de ouro fino 
o rio não esquece 
o rio nunca esquece 
nunca lava 
a hecatombe a fila a corrida 
Naquele dia seguimos até o Celismar 
na sincopada batida  de Ananda
bois espiam da margem 
crianças olham ocorridas 
gritam cios cicios curumins 
passarinhada menina 
a cunhantã levantou voo? 
o curumim mergulhou? o rio urubu prossegue 
sua marcha fúnebre  ritual líquido da corte 
onde um dia, nesta tarde 
não me deixaram mergulhar 
como se ali o rio pudesse 
para sempre me tragar 
quantos olhos aparecem? quantos ameaçam? 
na leveza do anum  canarana 
a criança ao longe vista 
o rapaz nu ri ou está chorando? 
o sol se põe naquela tarde 
densíssima de calor e escudo 
e escuro e orgulho o rio negro 
fecha suas portas e véus 
sobe para os céus suas veias
iluminadas e nervuras 
acesas 
lá estão milhares de índios mortos 
ranger de dentes 
o rio chamado urubu 
sons percorrem suas  luvas pretas 
exclusividades de belezas 
urubu rio range dorme cemitério norte 
risca fio apertado brilho fantasma 
sobretudo preto urubu balança e nos ameaça 
nos quer no seu túmulo histórico 
heróico
amazônico emparedado matagais gerais 
alta terrível floresta 
transforma as corridas amas
úmidas  amantes  #
rio doente para sempre 
que desde o município de silves 
está pronto para ejetar  seus encapuzados enlevos 
e inocular a morte 
como as suas aranhas
rio que se enluta de capa preta 
desde o Século Dezoito 
ferve meu sangue a saliva dos mortos 
escuro e orgulho
onde um dia, nesta tarde 
meu pai não me deixou mergulhar 
como se ali o rio pudesse 
para sempre me tragar 
que não entendo esse rio 
não me fala  para mim estrangeiro
me repele me ameaça 
com sua capa de aço 
colorido festival amanhece 
que cor é essa? que desconhecida 
alegria em bandeiras em pânico? 
o capinzal desce o rio de uma vez 
ilha de capim que um animal  levado 
pelo azul  cheio de tudo 
está frio? está calor? 
estou morto? sobrevivo? 
a luz não é simples 
onde a morte está nada é simples 
ainda lá e passam chorando 
populações indígenas navegando 
que amaldiçoado por dentro
do escuro e orgulho
onde um dia, nesta tarde 
meu pai não me deixou mergulhar 
como se ali o rio pudesse 
para sempre me tragar 
o enigma passa sobre o plano espetáculo 
não serei o mesmo depois do fim da  era 
meus pais  sepultados ali 
minhas águas falam de minha história 
mortos meus irmãos eu detenho 
oh irmãos, detenhamos essas águas 
pois ainda são sangue derramado 
mantenhamo-nas as de mãos dadas de mãos tigres 
fiquemos alertas e não nos afastemos 
unidos nesta desgraça armada 
a aurora retardada nevoeiro 
que tudo envolve e ameaça 
a noite retorna  contínua 
sua caminhada fria 
o escuro e orgulho o frio o canto  o pranto 
o seco as nossas desconhecidas línguas 
a palavra perdeu seu suor 
nesta mata tudo acabou 
dentro do calor há muito frio 
nuvens negras de sol 
sobre o pênis de seu risco preto 
vêm tímpanos de guerra 
não nos deixe, amigo, não 
não nos abandone 
ainda podemos fazer um pouco de noite 
da noite que não retorna 
viveremos esses momentos 
como vivíamos outrora 
soubéssemos o que fomos 
teríamos extintos os mesmos  registros 
sentiremos a dor, a última dor 
de nossas queridas mães selvagens 
traspassadas nas lanças caídas
perdidas 
reconheceremos o caminho 
morrer não é mais adiante no amorfo 
lúcida visão do dia 
meu pai já está morto ali 
já amanhece a ponta do sol 
as últimas bocas dizem as últimas verdades 
pouca irradiação tardia 
meu pai já está morto  nossos nervos selvagens 
escondidos no mormaço venhamos, unamo-nos 
contra tal atrocidade 
caíram esmagados e obscuros 
os principes da amazônica cidade 
não sobra registro  livros  história 
seus nomes se perderam 
mesmo em papel crepom  raça  extinta 
saiamos já daqui deste poema 
com tudo o que fomos 
não se volatizaram esses altos valores? 
oh verdes  claros  cimos  ares 
luzes inatingíveis 
estamos aprisionados no passado 
é o pó a pedra a extrema a vermelha 
pedra do rio negro 
do rio negro calado 
ó calar subterrâneo que grita  alto 
não me conformo, meu deus, eu não 
me conformo 
usemos algo, sangremos algo, falemos algo
o sangue a nossa voz 
a nossa veia acordada 
a transfusão de nossas águas 
não fiquemos assim como nada 
não fiquemos parado no tempo 
da rota história 
vamos ao traspasse do tempo 
ou não teremos história 
marco pavio lamparina navio 
voemos para  os extintos 
sem nome sem nunca mais 
pois em 1729 morreram no rio urubu 
vinte e oito mil índios meu passado 
hoje, em 1984 
ainda sofremos o sussuro assombrado 
seres ocultos na floresta 
no escarro noturno na folha 
ruídos surdos da morte 
silvos de cobra 
grito que se atrofia 
que somos? apenas homens 
culpas cospem jogos 
línguas secam vazias de falas 
o futuro desaparece no passado 
ondas de óleo negro como esperma 
sob um bafejo roto 
louca magreza fome desterro 
derrama o rio partes expostas 
e geográfico não mais corta 
seu beijo frio horizonte amarelo 
que nada nasceu ali depois nem nascerá  
nem os pássaros cegos 
o céu  fantasma estéril 
o amor misturado ao pasmo do passado 
as paisagem  irritadas 
as aranhas e escorpiões afiados 
para sempre este 
sempre urubu, sempre interno 
sempre negra flor, sempre inferno 
que nós nos lembramos do dia 
que nos surpreende afinal 
 as armas tocaram as peles 
o rio o sangue negro detesta
o castelo a testa a proa 
a fome as estrelas a morte os ares 
e há pontos de luzes verdes e vinagres 
na costa desta  floresta 
as coisas são diamantes 
e só não ouve quem não quer o ranger de  dentes 
espinhos venenosos se postam 
preparada armada a mata 
e há urubus e  no cornicho atenção
dos cadáveres históricos 
de um grande cemitério 
(mas tudo passará. No mesmo fio da espada 
e sob o mesmo tom da corte negra) 
ó tristes homens  mãos de pedra 
- um índio vinha e subia o rio de repente 
a todos se oferece o rio de cinzas 
sua divina partilha 
ninguém mais sabe  nada 
perambula entre nós cachoeira 
(mas o anjo e a estrela entram na mesma pupila 
sua auréola bela e amiga 
refaz a alegria antiga 
e eu choro o festival que nunca passou 
penetro o jardim e esquecidas 
as flores sobre a balsa passam 
amaldiçoadas passam 
de Manaus a Itacoatiara 
nem sabem os demônios das margens 
o chumbo soberano. 
Pois perto é a morte 
com sua mão afiada 
E a ponte o caminho 
está entre o tudo e o nada 
e somos raros agora 
geração aziaga). 


terça-feira, 23 de maio de 2017

UM AMIGO DE INFÂNCIA

UM AMIGO DE INFÂNCIA
HUMBERTO DE CAMPOS
No dia seguinte ao da mudança para a nossa pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal, a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas unidas e avermelhadas, as quais eram como duas jóias flexíveis que tentassem fugir do seu cofre.
- Mamãe, olhe o que eu achei! - gritei, contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda sonhava com o sol e com a vida.
- Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no fundo do quintal, longe da cerca...
Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva. A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova, enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o. Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre. Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que lhe voto, a água gostosa que lhe dou.
O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmãos de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da "Chegança", que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:
Assobe, assobe, gajeiro,
Naquele tope real...
Para ver se tu avistas,
Otolina,
Areias de Portugal!
Mão direita aberta sobre os olhos, como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintas vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão-são-caetano:
Alvíssaras meu capitão,
Meu capitão-general!
Que avistei terras de Espanha.
Otolina,
Areias de Portugal!
A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.
Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho "ípsilon", marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antonio do Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte...
Aos treze anos da minha idade, e três da sua, separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com frio.
- Adeus, meu cajueiro! Até à volta!
Ele não diz nada, e eu me vou embora.
Da esquina da rua, olho ainda, por cima da cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, erijando o corpo no trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: "Receberás com esta uma pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro. São deliciosos, e ele te manda lembranças..."
Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita, esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar... Recebendo a carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua idéia. E choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também, raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu, ignorando que o era, havia sido feliz?
Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua existência vegetal.
Um ano mais, e parto novamente. Outra despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste:
-Adeus, meu cajueiro!
O mundo toma-me nos seus braços titânicos, arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag com a fragilidade do capitão Guliver. O monstro maltrata-me, fere-me, tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a rever o meu amigo.
- Meu cajueiro, aqui estou!
Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem; ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia, modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem dono... Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco... Ao perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa e a podridão!
- Adeus, meu cajueiro!
(Memórias, 1933.)

segunda-feira, 22 de maio de 2017

O PRIMEIRO TURNO DA PRIMAVERA

O PRIMEIRO TURNO DA PRIMAVERA

Rogel Samuel


                   Difícil é dizer da guerra no Iraque, do dólar, da miséria, da fome. Da primavera é um fácil falar. Basta deixar cantar o Poeta em 1o de julho de 1858:
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.

A primavera  canta: Casimiro faz um verso cantante, "cantabile", assim:
---------------- 4 -------------- 10
Ou:
---------------- vera ------------- risos

Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.

O poema, no início, explode de alegria -

Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.

A língua portuguesa canta, o verso flui, as imagens embalam. Porque:

A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.

Isso tudo era o Estado do Rio, onde viveu o jovem poeta, tão jovem morto, e tão eterno:

Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!



       Quando uma sombra escurece a luz dos olhos juvenis com alguma amargura, um gemido...

Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.

       E as flores fenecem como as esperanças tênues, para renascer. São as ironias do jovem cantor à sua menina virgem, em cujos seios intumescidos o coração se assusta. Pois a mocidade é cresça em alguma  "alma menina nessa festa imensa canta, palpita, se extasia e goza."
Isso era em 1o de julho de 1858, e é hoje em 22 de setembro de 2002. Apenas 144 anos após.


São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.



A tristeza não dura senão um dia, pois a juventude é eterna! Não precisa dinheiro, não precisa nada, o jovem tem tudo à mão no brilho dos seus olhos.

Se um amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio.


             Ah, a vida palpita, se extasia em glória. A lira virgem do poeta jovem, a alma pura da menina amada, tudo emociona e ama, entre as flores. A garotada crente, acreditando no amor, no futuro, na felicidade. Sorri, sorri com a facilidade de quem sabe, ou de quem "não" sabe. E continua a beatitude do seu desconhecer...

Na primavera - na manhã da vida -
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.


Ai flores, ai dias de juventude e primavera ! Ama-se a vida - a mocidade é crença é alegria esperança e tudo!

Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.



E até um velho como eu se extasia em sonho! Como se jovem ainda fosse - nos apaixona a luz, o sol, o luar. As borboletas, as faiscações, as reverberações da superfície do mar, as árvores grandes como verdes hinos, as estradas, as recordações, os silêncios, as falas das fadas, o morno espreguiçar. Voltamos a pensar nos bosques e praias, nos poemas e sinfonias, voltamos a pensar no infinito, no horizonte, no espaço e mesmo a morte, que deve se avizinhar, nos afigura um doce enlevo repouso embriagador e em paz.

domingo, 21 de maio de 2017

A VISÃO DO MAR

A VISÃO DO MAR

Rogel Samuel

Mas não sei como poderia subsistir hoje sem a visão do mar, como nas “Palavras ao mar”, de Vicente de Carvalho:

“Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas - a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.”

Vicente de Carvalho, que era paulista, de Santos, assim o disse. Quando ele nasceu...

“Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como olhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...”

Este hino ao mar, um dos melhores, amplo, sonoro, Vicente de Carvalho escreveu. Nasceu em abril, como diz o poema, no dia 5 de abril de 1856, “O claro mês das garças forasteiras / Abril, sorrindo em flor pelos outeiros, / Nadando em luz na oscilação das ondas”. Poeta feliz, ou melhor, da felicidade, da felicidade luminosamente azul:

“Sei que a ventura existe,
Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa.
Como dentro da noite amortalhado
Vês longe o claro bando das estrelas;
Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da alma entreabrindo, subo por instantes...
O mar! A minha vida é como as praias,
E o sonho morre como as ondas voltam!”

Os olhos descansam na visão oceânica. Além disso, Vicente de Carvalho também foi aguerrido jornalista. Escrevia na imprensa, defendendo suas idéias. Foi deputado, Constituinte do Estado, em 1891. Seu ritmo é oral, como de tribuno, em:

“Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Ouço-te às vezes revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noites sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas...

Também eu ergo às vezes
Imprecações, clamores e blasfêmias
Contra essa mão desconhecida e vaga
Que traçou meu destino... Crime absurdo
O crime de nascer! Foi o meu crime.
E eu expio-o vivendo, devorado
Por esta angústia do meu sonho inútil.
Maldita a vida que promete e falta,
Que mostra o céu prendendo-nos à terra,
E, dando as asas, não permite o vôo!”

Em Santos ele faleceu. Em 22 de abril de 1924, aos 68 anos. Herdou o verso forte de Castro Alves. O verso: “A que as brisas da terra o sono embalam”, lembra o de Alves: “que a brisa do Brasil beija e balança”, em:

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
 
Esta estrofe ousada, esta ousadia poética de Castro Alves, de rasgar a Bandeira Nacional num poema, poderia, em outros tempos, levá-lo à prisão. Entretanto vivia na liberdade de seu tempo democrático, heróico, nos versos decassílabos heróicos, com acentos 6 - 10: -------dão------ter / ----- sil ------ lan.

Auriverde penDÃO de minha TERra,
Que a brisa do BraSIL beija e baLANça

O Brasil oscila, ali. Aos ventos. Aquele navio cheio de escravos era bem brasileiro. Uma “vergonha”, diz ele. Lembro-me do poeta amazonense Hemetério Cabrinha a recitar, na Rua Saldanha Marinho, em Manaus, na porta do jornal “A crítica”:

Era um sonho dantesco o tombadilho
que das luzernas avermelha o brilho...

Ele me lembra o seu próprio poema “O Cristo do Corcovado”:

“No escalavrado píncaro da serra,
Que o luar alveja e a luz do sol estanha;
E onde a cidade, abençoando a terra,
Se espreguiça na falda da montanha;
Ergue-se o Cristo-Redentor, coitado!
Braços ao ar, o triste olhar cravado
Na base de granito que o suporta
De alma apagada e a consciência morta.
O Cristo cujo busto alvinitente,
Granítico, imponente
E lavado de sol;
Aureolando de alvura o Corcovado,
Qual Prometeu, virado
Para o horizonte, a medir o arrebol;
E, de distância imensurável, visto
Qual uma forma etérea
É apenas um Cristo
Feito à custa de angústias e miséria.”

O verso: “Que a brisa do Brasil beija e balança” tem 4 “bb” de beijos. A bandeira aí ondula aos beijos dos ventos. Nas cores do céu, nas cores da esperança. A bandeira irradia sol. Irradia patriotismo. “Estamos em pleno mar”, o mar azul, o “mar da memória” do amazonense Sebastião Norões:

“Eu quero é o meu mar, o mar azul. 
Essa incógnita de anil que se destrança 
em ânsias de infinito e me circunda 
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos 
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha 
que a imagem imatura concebeu 
de quando o mar era meu, o mar azul.”

Coube a este amazonense a glória de ter escrito um dos mais belos sonetos do mar. Longe do mar. Só de memória. Norões nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira e faleceu em Manaus. Estudou em Fortaleza. Aos 18 anos volta para Manaus, faz a Faculdade de Direito. Professor no Colégio Estadual, onde foi meu professor de geografia. Exerceu o cargo de Chefe de Polícia do Estado, quando escondeu e deu fuga ao comunista Jorge Amado. Membro do Clube da Madrugada e da Academia Cearense de Letras. “Poesia Freqüentemente” é livro de minha predileção. Ali sentimos sua poesia viva, sua poesia azul. Nesta pequena obra-prima, que é “Mar da memória”, a ânsia de infinito, como se o poeta quisesse voar, escapar do estreito espaço em que se movia, alcançar Alascas e Austrálias. Revela lembranças, do mar, dos verdes mares de Fortaleza, do mar literário, do mar de Alencar, que era verde. Mas quando “o mar é meu”, o mar de minha memória, é azul, e não verde, de minhas lembranças que se voltam para os céus, dos imprevisíveis rumos de minha vida, sonhada ainda, de imprevisíveis rumos. Pois “arte é o homem acrescentado à natureza”, escreveu Van Gogh, em carta a Théo de 1879. E ele entendia de azul, de delirante azul.


 



terça-feira, 16 de maio de 2017

Nenhuma noite é bastante longa e obscura para impedir a alvorada.


DUGPA RINPOCHÊ: Mantém o teu espírito permanentemente na alegria do instante e o medo será destruído.
Nenhuma noite é bastante longa e obscura para impedir a alvorada.

REFLEXÕES SOBRE AS SONATAS ETC


REFLEXÕES SOBRE AS SONATAS ETC

ROGEL SAMUEL

Quase não são obras separadas, individualizadas. As 32 Sonatas de piano de Beethoven parecem ter uma sequencia, uma estrutura só, como se fossem a continuação de uma só obra.
Eu as ouço há tantos anos, e somente agora começo a compreendê-las.

Meu pai tocava uma delas, e eu tinha uma fita cassete em que ele tocava a 14ª. Depois de sua morte não mais tive coragem de ouvi-la (pois era possível também ouvir sua voz e era como se ele saísse do túmulo). A gravação se perdeu.
Lembro-me de que o meu amigo Nathanael Caixeiro ouviu a gravação, e teceu comentários pianísticos sobre a execução, disse que era uma interpretação e uma técnica antiga, desusada nos nossos dias.
Nathanael já é falecido, era um excelente músico, tocava em orquestra, violinista, tinha uma coleção de violinos em casa, apesar de pobre, professor do Estado (onde o conheci), professor da Gama Filho (de Idéias Contemporâneas), poliglota e tradutor. Traduziu muitos livros da Zahar, da Vozes etc.
Nathanael também era pintor excelente, onde assinava “Petit Grand”, em referência à sua pequena altura.
Foi um dos meus grandes amigos.
Devo a ele a publicação do meu “Manual de teoria literária”, pois foi ele quem levou os originais para a Editora Vozes, insistiu que o publicassem, e assim foi. Tivemos 14 edições.
E hoje estamos na 6ª do “Novo Manual de teoria literária”. Natha ficaria feliz, com isso.
Eu tocava piano aos 5 anos de idade. Mas não gostava. Abandonei. Meu pai me ensinava.
Ele aos 5 fazia parte do coro infantil de sua escola, em Strasburg.
Um dia, começaram a ensaiar exaustivamente um Hino, até que chegou o dia e a professora disse: “quando o Maestro fizer assim pra vocês, vocês ataquem o Hino...”

Meu Deus, era a Nona Sinfonia de Beethoven!

sábado, 13 de maio de 2017

Dias das mães



Dias das mães

Rogel Samuel


Que dirá no dia das mães?
Que ou como fazer a releitura em desenho da mãe?
Mãe protetora ou geradora mãe da vida?
Mãe que dá o leite da existência, a mãe fonte da onda, do tempo, da luz, da força?
Mater dolorosa do Cristo, mãe de todos nós...
Mãe-terra, mãe-água, mãe do universo...
Mãe anjo da guarda, mãe das coisas divinas e terrenas,
Mãe morta há muito tempo mas muito viva, mãe viva, mãe vida!

EM TODAS AS LIVRARIAS DO PAÍS


segunda-feira, 8 de maio de 2017

sábado, 6 de maio de 2017

E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS

E SOMENTE A NOITE COMPREENDIA AS SUAS PALAVRAS

Rogel Samuel


- E tu, última sombra, demais não será para saltares do chão pedir e pelo bosque voares? Em ti já as figuras sutis se delineiam das finais invisíveis. O do rastro não é senão o de meu desatinado rumo.
- Aonde foram eles, aonde, aonde? Ao fim do mundo?
         «...et la nuit seule entendit leurs paroles...» - cantava Verlaine.
- Gruta de luz! Gruta de luz!
Lá fora, gigantes chamam para a luta.
- Que gigantes? Avança, prepara o combate, as grandes armas já ouço, que rolam, pesadas como bolas, de aço e no vácuo tempo de entrechocarem-se. Avança! O que está cumpra-se de imediato, escrito, o cortinado abra-se da cornija do luar,  que a fina roupagem de gaze a veste, que seja desnudado o limbo, vai. Vai, e a vida valerá teu grito de socorro. E a angústia tua nos gigantes clama para a luta?
         Mas nada. O bosque morto, daquele halo de leite impregnado, de lua e o seu silêncio como diáfano véu circulando como cobra que serpenteia entre as árvores...
«A lua branca, no bosque brilha. De cada ramo, parte uma voz: Oh, bem amada!»
Lá bem longe, sopram os gigantes grandes tubos e escudos dos ventos. Mas não aqui, nessa calma, massa lassitude plácida. A gruta se enviesa em si. Velam-se as paisagens em harmonia oblíqua. Desço a ladeira, saio da massa da paisagem, intocado. Passo. Em vão. Cruzam-me ruas, calçadas em diagonal, lusco-fusco, molhadas da madrugada, vitrificadas do nada, amassadas por grandes árvores escuras que se curvam no meio do vento como comadres assanhadas. As folhas escorregam pelo chão. Não é rua, mas o Bois de Vincennes, Paris. Os lencinhos das folhas das árvores caem. Flutuam, gélidos.
Um vulto cabisbaixo sob as formidáveis árvores passa, envolto em manto preto, desaparecendo mergulhado na neblina de luz da lua. É uma velha. Que prossegue. Ela fala baixinho e sozinha gesticula (balbuciando talvez suas coisas do passado, referindo-se a seres que já morreram, ou será uma prece repetida em murmúrios por aléias velhas ali mesmo onde talvez ela conhecera seu jovem amor, talvez).
Eu a sigo. Vejo-a esconder de mim umas notas velhas, amassadas, amarradas em nó de pano. Talvez pense que sou um ladrão (e talvez eu mesmo seja), do tempo, do passado, de histórias de narrativas... aquilo não é dinheiro, mas algo mais precioso, mais raro, as velhas cartas de amor, sobras daquela era curva de preto. Ela já não me vê, mas pressente, eu a sigo, como um assassino. Ela prossegue, figura embaçada, saída das brumas do seu desconhecido passado.
         Agora chove.
         Pois na face da paisagem (aquelas árvores encurvadas sob a chuva fina, aquelas aléias e o lago por cuja superfície lisa onde cai a gélida geada) aquela mulher prossegue já coberta pela sombrinha... eu estou perto daquele templo tibetano karma-kagiu, a velha meio torta, resmunga alguma coisa para um invisível ser a seu lado, apontando-o, acusando-o com o dedo indicador, em ameaça: «você me abandonou», parece gritar.
Mas, louca, um sorriso se esmalta, e depois a estranha gargalhada, sardônica, louca teatralidade, que se espalha, por todo o espaço do mundo daquele bosque se espraia... a vera, a realidade da horrível comédia... o sorriso...
         Oh, poucos puderam presenciar tão rara de face para o meio da noite escura, naquela facetada madrugada, pois a senhora parou, sem me ver, ria-se tragicamente para a capa do copa daquelas grandes árvores altas, falando aquelas incompreensíveis coisas naquele idioma histórico, desusado, arquivado e raro... e desapareceu como a sombra da neblina onde fiquei à espera de que os grandes gigantes aparecessem para a minha luta.



sexta-feira, 5 de maio de 2017

QUE IMPORTA O AREAL E A MORTE E A DESVENTURA?

QUE IMPORTA O AREAL E A MORTE E A DESVENTURA?

Rogel Samuel


                        A leitura do romance histórico de Aydano Roriz, «O Desejado», me fez reler a terceira parte da MENSAGEM de Fernando Pessoa.

'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus

            O romance me surpreendeu. Em vários pontos.
O autor diz que o jovem rei era hermafrodita, e por isso não se casou.
Seu cadáver foi embalsamado em Marrocos, e anos mais tarde resgatado por Felipe de Espanha.
            Oh, tudo é mistério, e não «haverá rasgões no espaço / que dêem para outro lado»...
            Romance intrigante, momentos de rara beleza. Mas volto ao mito. Prefiro o mito.
            Sou, a meu modo, um sebastianista (mais seria se não fosse, para tanto viver tão curta a vida...). Por isso Camões entregou seu poema a D. Sebastião.
            O jovem rei, no livro, é rapaz extremamente religioso, pudico, puritano, se delicia a matar porcos na cozinha, a assistir às sessões de tortura, ao suplicio dos condenados. Havia condenados pelos mais extremos e hediondos crimes, como o crime da masturbação, por exemplo.
            A obsessão do rei em matar-mouros lembra certo presidente de nação distante, hoje. Conflito que vem de longe, entre nossa boníssima e caridosa civilização cristã e a dos cruéis árabes pagãos. Mas:

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

            Devemos a D. Sebastião o nome da nossa cidade do Rio de Janeiro.

Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

            Talvez seja Mito.
            Prefiro o Mito.

«No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião».