sexta-feira, 30 de setembro de 2016

RÁPIDAS REFLEXÕES SOBRE HAIKAI

RÁPIDAS REFLEXÕES SOBRE HAIKAI

ROGEL SAMUEL


Se mira na poça
 de lama no pátio
 a lua vaidosa.
(Luiz Bacellar: Satori)

Um dia, durante um Kalachakra, alguém perguntou ao Dalai Lama:
- Sua Santidade, o que é a Iluminação?
Ele explodiu uma grande gargalhada e disse:
- Mas eu não sei...
Assim é a noção de Haikai que aqui vamos investigar teoricamente outra vez, em fragmentos de reflexão. Ela já nos foi pedida certa vez como prefácio ao livro “Satori”,  de Luiz Bacellar, já falecido, publicado em Manaus pela Editora Valer (2000), um livro de haikais. É em homenagem à memória do grande poeta amigo que vamos retomar aqui.

A arte faz saltar a verdade, já disse Heidegger.
A lua se vê no chão, a gloriosa lua. A luz pura da lua se vê naquele espelho, “um espelho de boas qualidades”, que jaz no chão, a sabedoria do espelho puro da água.
Do céu à terra, a glória da lua se vê na lama.
Mas a lama não polui a lua, nem a lua purifica a água.
Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de mente onde se encontra o espírito do Zen, quando todas as coisas se refletem entre si na sabedoria que é como espelho.
Tão simples e tão claras, as coisas aparecem na água da lama como puras de um céu sem nuvens.

Se mira na poça
 de lama no pátio
 a lua vaidosa.

A lua não está na vaidade da água, nem a água está coberta do glorioso céu. A água podia estar correndo lentamente, de acordo com outra expressão do Zen: “um movimento em tranqüilidade”.
Porque se pode dizer que o Haicai é a súbita visão de espelho da mente do poeta quando nasce o olho da sabedoria.

Escreveu Santideva:
“ Yogacarin: Se a própria mente é uma ilusão, então o que é isto que é percebido?
“Madhyamika: A mente não percebe a mente. Da mesma maneira que uma espada não pode cortar-se a si mesma, assim é a mente.”

Se a lua se acredita no céu, está na lama.
Ou, como escreveu Wittgenstein: “o olho, que tudo vê, não se vê”. Pois “o que pode ser mostrado não pode ser dito”.

Aquela verdade salta aos olhos:

“El arte hace surgir la verdad. El arte salta hacia adelante y hace surgir la verdad de lo ente en la obra como cuidado fundador. La palabra origen [Ur-sprung] significa hacer surgir algo por medio de un salto, llevar al ser a partir de la procedencia de la esencia por medio de un salto fundador” (Heidegger. El origen de la obra de arte. Trad. de Helena Cortés y Arturo Leyte.  Caminos de bosque, Madrid, Alianza, 1996).

Por isso, a iluminação tem sido associada ao ver, ao Olho.
No Dhammacakkappauattanasutta se declara:
"Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento pode ser realizada, para mim, ó monges, com relação às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento foi realizada".

Assim a iluminação de Buddha se fez em três etapas.
Na primeira parte da noite ele tomou conhecimento da existência do antes, antes dos estados de consciência. Na segunda parte da noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam dum estado de consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei de dukkha (a lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a primeira e a segunda Nobres Verdades.
Enfim, na ultima parte da noite, ele penetrou no conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das origens interdependentes explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do Universo.

No Dhammapada, v. 153-154, se declara solenemente:
 “Na última vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.
E iluminação pressupõe sempre luz.

Haikai seria a experiência feliz da surpresa do real da realidade que salta aos olhos, a percepção do instante significante da súbita e fragmentária cessação do processo de vir-a-ser, uma espécie de pseudo-iluminação em que o poeta vê naquele momento sem pensamento.

A paz, na tranqüilidade do céu sem nuvens, da água sossegada, mesmo em movimento. Quando o pensamento cessa, o mundo desperta, lúcido.

Se mira na poça
 de lama no pátio
 a lua vaidosa.  

A lama não enlameia a lua, nem a lua se banha ali. Mas há inteligência viva e suprema da Atenção (Sattipatana Suttra), que é a Quarta Nobre Verdade.
A visão repousa, assim, na existência da água na poça de lama em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou na poça de lama do pátio onde a lua se vê radiante.

Se saber é sabor, a questão fica sem resposta.
Porque poucos a experimentaram.
É falar do que não se sabe.

No Budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe não fala. Só é possível a transmissão da lucidez através da poesia.
Sendo uma experiência, o haikai faz a apreensão da poça da água na lama do pátio num céu sem nuvens, onde a lua reina, vaidosa entre as estrelas, na visão do silêncio que tudo penetra.
Coisa súbita, abrupta.
Sem objetivo, nem proveito.

Quando o Buddha vinha de sua Iluminação suprema Ele encontrou um homem que, assustado ao vê-Lo com tanta luz, perguntou quem era e quem tinha sido seu mestre.
O Buddha, que não teve mestres, respondeu:
“Eu sou Aquele que compreendeu o que devia ser compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Por isso Eu sou o Buddha, o Desperto”.

O haikai é despertar, aponta para a dignidade da realidade e toma cada atividade como um fim em si mesmo.

Na visão impura, há sofrimento e libertação do sofrimento, há céu e inferno.

Na visão impura, a lua está na imundície da lama do chão.

Na visão pura, não: não há puro ou impuro, nem sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou melhor, há sofrimento, mas não há sofredor.
Na visão pura não há certo ou errado.
Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro, nem o de que se libertar.
Não há dualidade.
Como se diz no Sutra do Coração:
“ Desta maneira, os sentimentos, a percepção, a formação e a consciência são vazio. Por isso, Shariputra, todos os dharmas são vazios. Não existem características. Não existe nascimento, nem cessação. Não existe impureza nem pureza. Não existe aumento nem diminuição. Por isso, Shariputra, no vazio não existe forma, nem sentimento, nem percepção, nem formação, nem consciência. Não existe olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente. Não existe aparência, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, não existem dharmas”.

Satori é libertação?
E libertação de quê?
Talvez do próprio questionamento sobre o que satori seja.
Libertação do questionador, do sujeito que põe a questão, da dúvida e da certeza, o espanto da aparição misteriosa que salta ali como o surgir do límpido desconhecido.

Um dia alguém perguntou a Sua Santidade Sakya Trizin:
- Então, o que são as aparências?
- Um longo sonho, respondeu ele.

Quando o pensamento cessa a lua aparece.
Só a vemos quando a mente fica no estado de desapego, de silêncio, que é a realização profunda do Dzogchen.
Diz Santidade o Dalai Lama:
“A prática cotidiana do dzogchen consiste em cultivar simplesmente uma plena aceitação sem preocupação e uma abertura ante todas as circunstâncias. Devemos compreender que a abertura é o campo onde jogam todas as emoções e relacionarmo-nos com o próximo sem artificialidade, manipulação nem estratégias. Devemos experimentar tudo completamente”.

Dzogchen é a grande perfeição.
“A Grande Perfeição: o nono e o último veículo. Esta doutrina trata da pureza primordial dos fenômenos e da presença natural das qualidades de buda em cada ser. Ela traz o nome de Grande Perfeição para sublinhar que todos os fenómenos estão incluídos nesta perfeição primordial”, salientou Pema Wangyal Rinpochê.

O Satori vê dentro da verdadeira natureza, ou seja, da correta compreensão.
É considerado o primeiro passo para a budeidade.
É uma súbita iluminação, uma súbita intuição da verdadeira natureza, inexplicável e indescritível, e ininteligível.
Em “Viver através do Zen”, de Suzuki, se lê:
“O que significa "viver através do Zen"? Não estamos todos vivendo através do Zen, no Zen e com o Zen? Podemos escapar disso? Embora muito nos esforcemos para escapar dele, somos como aqueles pequenos peixes apanhados em quantidade; a luta não tem proveito algum, e termina por nos ferir gravemente”.
“Visto de outro modo, "viver através do Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós já tínhamos antes mesmo de nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar sobre isso?”

Fernando Pessoa, no seu famoso «O guardador de rebanhos», abre  sua técnica de meditação, na melhor tradição dos mestres Zen.
Ele diz: sou um pastor de pensamentos.

"Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

«Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."

É quando seu corpo está deitado na realidade que ele reúne os pensamentos como um pastor suas ovelhas, para que não se percam nem se extraviem, para que não divaguem, nem delirem.
Reúne suas ovelhas dentro de si.

É o que o Zen diz: "Viver dentro de casa". Dentro de casa é dentro de si. 

Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) cantava  assim:
"As formigas vagarosas lutam para carregar as asas de uma libélula morta; As andorinhas da primavera pousam lado a lado num ramo de salgueiro; as fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas, ficam imóveis segurando as cestas repletas de folhas de amora; os garotos da vila são vistos com rebentos de bambu roubados arrastando-se através das cercas quebradas.»

Mas não é para ser compreendido! Se for compreendido, terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato experiências do Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres intelectuais, perdemos algo que nos permitia entender o significado", diz Suzuki.

Que perdemos?
Perdemos a beleza, a claridade.

Não vemos a beleza dos pássaros no céu, das flores na terra, da luz sobre a montanha, das sombras estreladas da noite, da lua na poça da água.

Porque a vida em si é bela, é algo misterioso.
Escapa à compreensão intelectual.
Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou o desejo de ser iluminado no Zen.
O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto".
No dia seguinte, o monge observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo.
Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim".
O monge chegou mais perto dele.
Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras".

Como para o lutador de espadas. A alegria, a felicidade está no momento presente, no fragmento presente.

Uma realidade só se dá única.
Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e estar consciente de que estou pensando.

Como se diz no Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias".

Ou como o monge que chegou ao seu mestre e perguntou:
- Como posso atingir a Libertação?

- Quem te prende? - respondeu o mestre.

ANÍSIO TEIXEIRA

Na porta da FNFI
Rogel Samuel

A primeira pessoa que encontrei na porta da Faculdade foi Anísio Teixeira.

Mas eu não sabia. O primo de meu pai, Gervásio, me levou até bem perto do prédio e lá fui eu, com 18 anos de idade.

- Aqui é a Faculdade Nacional de Filosofia? – perguntei para aquele senhor mal-vestido, de óculos velhos de aros “de tartaruga”. Pensei que era o porteiro. Era Anísio Teixeira, conforme depois vi na sala de aula, meu professor de Filosofia da Educação.

Foi o único professor que vi baterem palmas depois da aula.

Ele me orientou, da porta, e eu fui inscrever-me no Vestibular, recém-chegado de Manaus.

Não passei, naquele primeiro vestibular. No dia da prova de francês, estava com febre de 40 graus e D. Marcella Mortara me reprovou, ou melhor, inutilizou minha prova com um risco diagonal e escreveu como nota: “Ilegível”, e aplicou um zero.

Sempre tive uma péssima letra. Até hoje. Eu devia ter estudado caligrafia, como se faziam os antigos.

Por isso, estudei ali no Curso Vestibular da própria Faculdade, gratuito, por um ano. E foi bom.

O curso era do Diretório Acadêmico (um ano depois eu era professor ali), e os professores eram os alunos... mas uns gênios.

Fui aluno do Antônio Pio (onde andará), de latim. Lia latim e grego como eu hoje leio jornal. Anos depois foi aposentado precocemente vitimado por misteriosa doença. Fui aluno de Antonio Augusto, depois assistente do Celso Cunha. Ali só havia gênios.

Eu morava em quartos alugados e comia no Calabouço, restaurante da UME, União Minicipal dos Estudantes, que ficava nas imediações do Aeroporto Santos  Dumont. 

O Aterro estava sendo feito.

Tive a sorte de passar em primeiro lugar (foi o que me disse depois Aluísio Trinta) para o Vestibular de Letras Clássicas. Pura sorte.

Havia 20 vagas, só passamos creio que 12. Provas escritas e orais.

Celso Cunha, na prova, mandou que justificássemos o verso de Camões: “Mas porém a que cuidados”. Ele queria se explicasse o “mas porém”.

E por aí foi.

O meu quarto, no Maracanã, dava para um beco e uma casa abandonada.

Dali eu só tinha a visão daquele muro velho e, à esquerda, uma árvore antiga daquela rua Eurico Rabelo.

Como eu precisava de mesa, comprei um “bureau” usado, antigo, de madeira preta, que pertencera a um ministério. Era gigantesco.

O Maracanã ficava em frente, e nos grandes jogos cada gol soava como uma onda que se elevasse saída de um vulcão furioso.

Era possível entrar no Maracanã vazio, ir até o gramado, olhar do centro para a periferia, para aquelas galerias monstruosas e vazias, descritas por Clarice Lispector num belo conto.

Passei a explorar o Rio, de ponta a ponta.

Nos dias livres tomava um ônibus e visitava Caxias, Meriti, São Gonçalo etc.

Chegava no fim da linha, pegava o ônibus de volta.

Foi aí que desenvolvi o espírito de viajante. Mais tarde percorri o Nordeste, o Sul, e depois o mundo, Katmandhu, Sydney, Paris...

O espírito de aventura. Que perdi, depois de velho.

A porta da FNFi foi minha entrada para o mundo.



quinta-feira, 29 de setembro de 2016

FREI LOTHAR

FREI LOTHAR



Ainda não era passado muito tempo quando as sandálias afundando na lama de tabatinga ele via o carregamento da alvarenga que o Barão do Juruá puxava para a cidade de Manaus desde o Rio Jordão. Pois a velha batina fedia, estava molhada de suor. O suor escorria sobre outro mais antigo, encharcando os remendos. Debaixo de um grande, velho e aziago guarda-chuva preto, o Frei parecia ridículo no barranco, coisa estranha, exótica, à margem, na maior dificuldade. O Barão do Juruá carregava, e o Frei tinha descido para almoçar, trôpego, necessitando de terra firme e fugir do calor, os pés afundavam no barro mole. Subira com dificuldade a ladeira escorregadia da margem quando os primeiros cães apareceram. Primeiro foram dois, que desceram a ladeira com ódio. Depois vieram outros e Frei Lothar se viu finalmente cercado de cães, e usava a cruz do rosário para defender-se. As crianças e os homens se riam, velho imprestável. Alguns lhe deviam a vida. Mas Fernando Fialho, o dono do porto, apareceu de repente e o socorreu. Fialho estava atarefado no carregamento de juta que seguia para Manaus, pois a nova riqueza da economia da região era a juta. Pareceu-lhe que Frei Lothar não podia embarcar porque os carregadores retiraram a prancha, e pela prancha passavam fortes e baixos, arriados pelo peso dos fardos que afundavam no barranco. Frei Lothar olhava as águas barrentas que emporcalhavam suas sandálias. Os meninos desceram a ladeira. Já não lhe pediam a benção. Ninguém o respeitava, velho e difamado. Diziam dele que gostava de meninos, o que era mentira. Os meninos pulavam na água barrenta, perto dele. A água se esparzia, brilhante. Ameaçavam dar um banho no missionário. Frei Lothar não reclamava porque estava doente, a doença da velhice, sem forças, sem coragem, sem nervos, sem vida, sem ânimo, sem fé. Olhava com compaixão, suor e impaciência para tudo aquilo. Era em verdade um bem aquele respingo que o refrescava. Se pudesse tiraria a fedorenta batina e mergulharia feliz naquela água. Frei Lothar misturava todos os fatos: os escorpiões, os cães, o banho, a doença, e a velhice, a calúnia. O fim. O aniquilamento, a morte. Frei Lothar, as pernas a tremer, sentia uma ponta de desmaio, no calor. Miseráveis cães! Miseráveis moleques! Miserável vida! A tarde começava a cair e a noite se aproximava. O Barão do Juruá ia zarpar, finalmente, vazio - uma benção, que Antônio Ferreira proibira de levar passageiros. Não, não era verdade que o mundo estava contra ele. No dia anterior fôra mesmo bem tratado. Ferreira aturava o velho padre que medicava as gentes dos seringais. O Barão do Juruá e tudo e todos que pertenceram ao império Bataillon eram de propriedade de Antônio Ferreira. O Barão ia vazio, o Frei viajaria com sossego, com conforto. Ele conhecera viagens em embarcações cheias de porcos e de redes, fedendo a excremento e a peixe podre. O pescoço do padre ardia de calor, o suor escorria e arrojava-se no peito. Com que facilidade aqueles homens erguiam e carregavam os pesados fardos! Ah, juventude, juventude! Ah, força dos braços! Frei Lothar chegara de Tarauacá, que ele ainda chamava de Villa Seabra, tinha atravessado a pé o difícil Paraná São Luís e o Igarapé São Joaquim, passado por Universo, por Santa Luzia, por Pacujá, viera de canoa por aquele furo. Oh, não ... Ele já não era daquilo. Que se preparasse para morrer. E Frei Lothar não queria morrer, passara a vida combatendo a morte. Acabaria no fundo de uma rede em Manaus, na freguesia de Aparecida, no meio da caridade imprestável. Não, aquilo não era certo. Gostaria de morrer em sossego, ou de regressar à Europa, sonho que se dissipava, pois era pobre. Quarenta anos ali, no fundo daquele inferno, esquecido, reduzido, perdido na selva. Saberia viver longe daquele mundo selvagem? Como poderia chegar à Europa, à Estrasburgo, sua terra natal? Fizera tudo o que haveria para ser feito, lutara contra feras e febres, rezara missas no meio de índios, batizara curumins ilegítimos, nos barrancos. Que mais? Ainda o queriam? Como não podia agora montar, devido à ciática, tinha de viver a pé, envergado ao peso dos anos e da artrite - Deus meu!

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

LUA

lua (rogel samuel)

hoje em lua cheia 
lua de setembro, plena 
no meu lago vc aparece

No pátio, o luar 
passeia no silêncio 
do gato

domingo, 25 de setembro de 2016

O FURTO



- Sabe o que aconteceu então? - perguntou o velho.

E ficou em silêncio.

- Um furto, respondeu o velho. Fui furtado de um pequeno cofre.

E ergueu-se, levantou-se, pôs-se de pé e andou, solene, até um chiffonier encostado nas cortinas. De lá mostrou um cofre de metal. “Igual a este”, disse. Era um cofre de viagem médio. Media cerca de 30 centímetros cúbicos e se formava por revestimentos de ferro certamente separados por substâncias ignífugas. Abria-se por uma chave brocada artisticamente trabalhada.

- Eram jóias?

- Não - cortou o velho. Ali Ifigênia guardava ouro. Eram libras esterlinas, de ouro, do toque de 0,900. Foi o único furto que não consegui descobrir. Depois disto os valores todos eu os guardava no cofre grande. Nunca consegui saber, Ifigênia sempre disse que Maria Caxinauá era a culpada. Na época, ela foi amarrada a um formigueiro e quase morreu. Mas nada confessou. Meu filho, quando soube, foi em sua defesa. Mesmo que eu tivesse continuado as investigações e a mandasse supliciar até a morte, ela morreria sem nada confessar. O quê?

Tossiu. Pegou a taça, encostou as costas retas no espaldar e reinou o pescoço com um puxão. Ferreira incomodado, mexeu-se e perguntou:

- Algum empregado? Alguém pode ter ficado rico, gastando, dando sinais de riqueza...

Era como se o velho estivesse a um megaparsec:

- Ninguém. Nem pode ter sido um empregado qualquer ... dificilmente foi um Caxinauá ... O cofre está aqui, continua aqui, tenho certeza.

- Como sabe? perguntou Ferreira, apertando o laço da gravata.

- Por isso mesmo. Ninguém apareceu rico, e os Caxinauás não conhecem o valor do dinheiro. Além disso, é impossível para um Caxinauá viver fora da tribo. Eles constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres individuais. O indivíduo é o povo, a raça. Por isso foi tão fácil amansá-los. Um índio sozinho não poderia ter roubado o cofre e fugir para Manaus ou Belém. Não os Caxinauás.

Lentamente a grande porta se abria e a bela maacu apareceu.

- Venha cá, menina - disse-lhe Pierre. E quando a índia se aproximou, o velho franziu os sobrolhos, encarou a jovem de frente e perguntou: “Você conhece Maria Caxinauá? Você já a viu?”.





sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Os canibais amazônicos

Os canibais amazônicos




Os canibais amazônicos

Rogel Samuel


Segundo a Folhaonline, os índios Kulina mataram e comeram um jovem na cidade de Envira, que, segundo me informaram, fica na margem direita do Tarauacá, alto Juruá, Amazonas: como os "numas" do meu livro "A amante das amazonas", os Kulina devoram um civilizado e penduraram sua cabeça na árvore.
O meus Numas não era exatamente canibais, mas exterminadores.
O que se sabe dos canibais amazônicos é que eles comiam o corpo dos seus inimigos dentro do crânio de suas cabeças. Não penduravam cabeças na árvore.
O crânio era importante, pois representava a passagem.
Isto foi magnificamente estudado em “Araweté: Os Deuses Canibais” de Eduardo Viveiros de Castro, Rio, Edições UFRJ/Zahar, 1986.
"Os yanomamis praticaram o endocanibalismo (comem gente da própria tribo). É uma cerimônia que reitera do compromisso de vingar o morto. "O ritual organiza um estado de hostilidade
permanente", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional. "A cerimônia é quase uma eucaristia." Só os amigos sem laços de consangüinidade são convidados para o
funeral. O cadáver é pranteado e colocado sobre uma plataforma, fora da aldeia. A carne é separada dos ossos e cremada. Os ossos são limpos e moídos num pilão até virar cinza. No funeral, os vizinhos e aliados comem as cinzas com purê de banana.
"Ao contrário do culto cristão do ancestral", explica Viveiros de Castro, "a antropofagia yanomami realiza o apagamento total do antepassado".
Há um texto indígena antigo que cito de cabeça por não achar o livro que diz:
“Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça
Sobre tuas cinzas dançarei
E exultarei!”

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

AS PRIMAVERAS DE CASIMIRO DE ABREU



AS PRIMAVERAS DE CASIMIRO DE ABREU
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores,
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.
Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.
A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.
Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: - Como é linda a veiga!
Responde a rosa: - Como é doce o orvalho!
.................
Mas como às vezes sob o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.
São flores murchas; - o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.
Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe entumece o seio.
Na primavera - na manhã da vida -
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.
Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida - mocidade é crença,
E alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

A ESTRADA

A ESTRADA


A ESTRADA

Rogel Samuel

Da sinuosa estrada entre as montanhas verdes vem uma barreira horizontal. No alto, um céu brilha como um cristal fosco e imóvel. Estamos na Mantiqueira. E passamos a divisa dos Municípios de Delfim Moreira e Venceslau Brás. Os rios do Brasil estarão todos poluídos? Dia virá em que vamos ter falta de água potável. O Rio Sapucaí está ameaçado pelo lixo. Mas os bois, no grande pasto, parecem em paz. À margem, um caminhão tombado. É um gigante morto. Leio um poema de Guillén, traduzido por Thiago de Mello. As estrofes, os versos se embaralham na minha mente. Guillén, um dos poetas preferidos de certo aluno de literatura no Colégio Estadual. Eu já vinha lendo poesia desde que encontrei Camões num livro de primeiro grau:

Oh! lavradores bem-aventurados,
se conhecessem seu contentamento.
Aqueles versos cantam agora, vendo os bois no pasto. Até hoje ouço o compasso daqueles versos. A estrada sinuosa e verde continua. Um dia chegarei ao fim.
Mas o deserto está crescendo. Na serra da Mantiqueira, região de Piquete, desapareceram as florestas. As montanhas despontam, secas, nuas. Isso até parecia natural na Via Dutra, mas ali é novidade. Dali até o vale de Itajubá a devastação avançou em poucos meses. À direita da estrada pode-se ver um lixão às
margens do rio que vai cortar a cidade de Itajubá e onde poucos quilômetros abaixo crianças tomam banho e adolescentes nadam. De Itajubá até Poços de Caldas as antigas vilas se transformaram em cidades que, sem planejamento, estão plantadas no meio da planície deserta de avermelhado de barro. Na próxima grande chuva o rio que corta a cidade de Itajubá pode transbordar, entulhado. O nosso país caminha para um desastre ecológico: o rios se transformaram em esgotos escuros, e os riachos se transformaram em valas negras. “O deserto está crescendo. Desventurado quem abriga desertos”.

Mas eu festejo solitariamente os 56 anos de minha poesia. O primeiro poema que publiquei na vida foi no dia 8 de fevereiro de l959 em O jornal de Manaus.
Não um poema de que me envergonhe de todo, afinal eu tinha 16 anos e aparecem versos até razoáveis como:

o vento
o córrego entre as
montanhas
a lua líquida
sobre a superfície
Havia todos os lugares-comuns da tradição poética, ou seja, poetizando a "poesia" com todos os chavões conhecidos de que não me libertei até hoje.
Sim, festejo silenciosamente os 56 anos de minha poesia. Não escrevo isto com tristeza, mas até com certa vitória. Afinal, bem ou mal foram 56 anos de produção literária. Há quem não tenha tido nem isso de vida.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

A LINGUAGEM DA MATÉRIA

A linguagem da matéria


Baudelaire sobretudo, sobe, eleva-se para chegar ao centro de tudo, hegeliano, eleva-se para materializar-se, numa ascensão ao concreto, mergulho no coração do real da realidade, como no sistema de Hegel que faz a manifestação do saber concreto, que pretende ser a própria realidade que toma consciência de si mesma, quando a realidade torna-se sujeito de si mesma. A “experiência faz a consciência em seu apreender efetivo”. É a dialética que faz a logificação do concreto, a ascensão ao concreto, na ultrapassagem da fase anárquica para a conceituação lógica final. Lógica que não é do pensamento, mas lógica do movimento da realidade. Esta “ascenção” do abstrato ao concreto faz um movimento que atua no conceito da logificação da realidade, progredindo do entendimento à razão, e da razão que observa para a razão que opera e unifica. A poesia é a manifestação dessa logificação, dessa materialidade.

Elevação

Por sobre os pantanais, por sobre os descampados,
Por sobre o éter e o mar, por sobre o bosque e o monte,
E muito além do sol, muito além do horizonte,
Para além dos confins dos longes estrelados,
Meu espírito, vais, todos os céus te movem,
Como um bom nadador cais em delíquio na onda,
Sulcas alegremente a imensidão redonda,
Levado por volúpia indizível e jovem.
Bem longe deves voar destes miasmas tão baços;
Vai te purificar por um ar superior,
E bebe, como um puro e divino licor,
O claro fogo que enche os céus lúcidos e serenos!
Este cujo pensar, como a andorinha, muda
Para o céu da manhã num vôo ascensional,
- Que plana sobre a vida a entender afinal
A linguagem da flor e da matéria muda!

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. Tradução, posfácios e notas de Jamil Almansur Haddad.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

O AMANTE DAS AMAZONAS

O AMANTE DAS AMAZONAS

O AMANTE DAS AMAZONAS Editora Itatiaia, 2005, 168 páginas - Compre AQUI CONOSCO - envie email para rogelsamuel@hotmail.com - O enredo gira em torno de um Palácio, construído no meio da selva, e da misteriosa origem da fortuna do protagonista. "É uma obra-prima", escreveu ELIANA BUENO-RIBEIRO. Objeto de dissertação de mestrado de Lucilene Gomes Lima - "FICÇÕES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS": Estudo comparativo dos romances “A selva” (FERREIRA DE CASTRO), “Beiradão” (ÁLVARO MAIA) e “O amante das amazonas” (ROGEL SAMUEL), Editora da Universidade do Amazonas, 2009. 240p. "Quem começa a ler a primeira página só consegue largar quando finda o livro, tal é a sua grandiosa narrativa", escreveu Luiz Alberto Machado.



Quando à tarde os dois reaparecem com no terraço, perto da galeria superior, a chuva já tinha passado e duas crianças se banhavam no Igarapé do Inferno em frente, na linha de visão da estátua elevada no pátio, de Stiasny, chamada “Esplendor da Amazônia”, alegoria da extração do látex, encomendada por D. Ifigênia Vellarde em Paris em 1894.
- O senhor tem a felicidade de viver entre obras de arte, disse Ferreira.

- Obras? Estas? - Pierre estocou, olhinhos de cobra. “As artes, meu senhor, corrompem o espírito e os costumes. São acúmulos de impurezas. Só o contato, a relação direta com o mundo natural, a selva ... ”.

- O senhor não prefere o mundo civilizado? Ferreira perguntou.

- Ao mundo bárbaro? (Pierre exultava:) A expressão da maldade, da maldade acumulada pela cultura, isto tudo, essa coisa toda não é bárbara? A desigualdade não é bárbara? Veja o senhor: estou implantando aqui, no Manixi, a Democracia Social. Veja este meu cão, o Rousseau. Eu o amo e, por isso, ele me é fiel. Protege-me, e por isso o amo, e me sinto protegido e amado. Que significa isto? Que é este cão? Nele se encontra o traço que separa os dois mundos, os sentimentos puros dos corruptos. E o senhor confia na pureza do coração? Confia?

Ferreira olha para ele como para um louco. Percebo, pelo olhar, que está apavorado. Como para acalmar o outro, pergunta:

- Quando seu filho volta da Europa?

Como se nada tivesse ouvido, Pierre continua falando: “Você já viu a, bordada em puro ouro, Cattleya Edorado, no fundo final da floresta? Conhece a famosa, rara e insuperável Cattleya Superba?”.

   Os dois curumins são vistos e ouvidos e gritam como gritam pássaros. Estão na direção do olhar da estátua do átrio. O “Esplendor da Amazônia” é uma dama art-nouveau de mármore branco, e dança com um cesto sobre o ombro, representa a fertilidade, a riqueza, a abundância do látex. Ela está coberta de terra e esperma salpicada de látex. No cesto está plantada a muda de seringueira viva. A planta já sobe um palmo. Ferreira repara naquilo. Os dois estão no terraço. Pierre segura a crista exterior do parapeito, vejo o brilho do seu anel armoriado. O terraço é a parte velha da construção. Quatro cariátides encaram os tons verde-amarelos, amazônicos. O papa-cacau, no poleiro, grita.


sábado, 10 de setembro de 2016

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O AMANTE DAS AMAZONAS



Desde o desastre da gaiola Izidoro Antunes, ele vivia preocupado com os freqüentes naufrágios no Amazonas. Ele sabia de cor: A Izidoro Antunes só tinha realizado uma única viagem, tinha acabado de chegar da Inglaterra. Moderna, confortável, aparelhada com luz elétrica, estava cheia de mercadorias quando desapareceu. Depois disso o Otero, o Perseverança, o Prompto, a Macau, o Etna, o Colomy, o Júlio de Roque, o Waltin, o Mazaltob, o Ajudante (abalroado), o Manauense (adernado), o... - todos debaixo d’água, arrastando consigo homens que desapareceram naquelas águas barrentas e escuras, maduras e de fúnebres murmúrios, indecisas, imprecisas e indiferentes, veladas de véus de lama, densas e fundas na dissolução dos líquidos da vida, na horizontalidade daqueles infindáveis rios estendidos no lento movimento do tempo - cadáveres elementares decompostos nos alagados de vitórias-régias, comidos de peixes, lânguidos, mergulhados na matéria dissolvida da planície de salmoura

- Pierre temia viajar naquelas águas cheias de paus, troncos, bancos de areia, torrões, pedrais, salões e muiunas, rebojos, ituranas, panolas, panelões, praias, sacados, jupiás, ipuêras, baixios, cambões, caldeirões, esqueletos, praias de duas cabeças, voltas - todos obstáculos e perigos da navegação ordinária, de grande ou de pequeno calado, para navios, motores, canoas, montaria e igarités, tudo, toda uma massa de uma teoria infernal de perigos a evitar, a contornar, a vigiar, a desafiar, a temer.

Súbito silêncio de morte caiu em todo o espaço do Palácio, estático como se a Amazônia inteira se imobilizasse sobre suas telhas de Marselha. Pierre mergulhou em si e desapareceu. A mãe-da-lua emitiu suas quatro oitavas. Á distância, um pescador agitou na água o pindá-uauaca.





- UM dia, disse Pierre, um funcionário de Santarém perguntou ao Bates de que lado do Rio Amazonas ficava a cidade de Paris. Imaginava que o Universo inteiro seria cortado pelo grande rio, e que todas as cidades se levantariam de uma ou de outra margem

- O senhor espera regressar? perguntou Ferreira.

- Não sei, respondeu o velho. Creio que deva, um dia. E voltando-se para o jovem com os ombros: Sabe o senhor por que vim para cá?

- Não, respondeu Ferreira.

- Por minha saúde. Tenho que viver nas regiões quentes.



quinta-feira, 8 de setembro de 2016

A MORTE DE LAMPIÃO



A MORTE DE LAMPIÃO

ROGEL SAMUEL


             Súbito silêncio corta o céu no nosso caminho.
             Era uma navalha.
             Lampião, ergue o braço, ordena de parar.
             Pergunta os ares, instinto selvagem.
             Ausculta os cantos, expressão de ódio, dúvida.
             Não tinha medo de morrer. Já estivera vezes diante da morte. Eu sabia como ele reagia.
             Era outro sentimento, o de se ver fechado no abraço inimigo, verdadeiro exército, os soldados avançavam, várias
frente, para caçá-lo, animal acuado, para fechar sobre si o que sobrava da tropa envenenada e a doença (ele mesmo ardia em
febre), falta de munição, mantimentos.
             Maria Bonita conosco ali estava.
             Receava não poder atravessar o deserto em frente. Não poder esconder-se na caatinga, onde navegávamos como
num mar de espinhos. Não poder arregimentar as tropas dispersas, de que ainda dispunha. O fim da glória, do cego império,
do mito. Morrer humilhado.
             — Estou sentindo cheiro de macaco! - rosnou, entredentes.
             Continuávamos imóveis.
             Meu ombro ferido ardia. Como se me aplicassem ferro em brasa. O sangue coagulara-se junto à sujeira ao suor. Em
breve iria infeccionar.
             Não tivera tempo de limpar a ferida, não sabia se tinha uma bala no ombro.
             A dor de cabeça latejava, imperdoável.
             Apesar de tudo cavalgávamos há dois dias, deixando nosso rastro sangrento atrás de nós.
             Conduzíamos nossos perseguidores.
             Conduzíamos à morte.
             Lampião ouvia do silêncio a sua canção.
             Onde estariam eles?
             Ele sabia que vinham em nossa direção.
             Antes, só ele conhecia o caminho ali, no inatravessável.
             Agora as tropas dispunham de guias, saídos de nossas fileiras, comprados.
             Sim, eles estavam vindo.
             Podiam estar surgindo do Desfiladeiro do Xingó.
             Podiam estar oriundos da direção de Canindé.
             Podiam estar caminhando a contrapelo do Rio do Chico, as águas esverdeadas, pérola e esmeralda, as águas
sagradas.
             Ou podiam estar fazendo o caminho dos rochedos escarpados, altos de cinqüenta metros de altura, vereda que
Lampião bem conhecia.
             Acima estava o vale.
             Abaixo a Grota do Angico.
             E na Grota Lampião resolveu ficar.
             Ele acertava sempre, ninguém discutiu.
             Ninguém discutia com ele.
             Pensava em esconder-se ali, deixar passar o inimigo.
             Mas foi ali que a morte veio buscar-nos.
             Sitiaram-nos.
             Era um exército.
             Não havia alternativa. Abrimos fogo final.
             Nossa munição escassa, nossos homens famintos, sedentos, cansados.
             Cabras feridos, doentes.
             Lampião ferido. Menos Maria Bonita.
             Mas Lampião não revelava doença, tinha outra natureza, bicho, coisa de aço.
             Era intenso o fogo contra nós.
             Mais modernas armas usavam, poderosas, maior alcance.
             Nós começamos lentamente a morrer.
             Foi quando Lampião e Maria Bonita arrancaram para frente, avançaram contra o comando.
             Lampião queria era a morte em batalha.
             A humilhação seria pior, ser preso, vivo e torturado. A humilhação pela dor da tortura, suprema de todas as dores.
             E Lampião foi lá. Desafiava a morte.
             Lá. Seguido por Maria Bonita.
             Depois nada mais vi, engolfado por nuvem de fumaça e de dor que me tirou a vista.
             Mas foi assim que tudo se deu, conforme o digo eu, o Narrador.



segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A VILA DAS OITO BALEIAS ENCALHADAS




A VILA DAS OITO BALEIAS ENCALHADAS


ROGEL SAMUEL

Durer gostaria de morar naquela cidade onde há oito baleias encalhadas, canta Marianne Moore mãe da poesia moderna, em seu poema “The steeple-Jack”, o consertador de campanários, ou um João-ninguém no ar manso do mar das casas num dia bonito, vindo das águas-fortes de Durer onde as ondas mais parecem escamas de peixe, “com a mão direita ela as penetras – as coisas – com lápis bisturi, o verso cicatriz” - diz João Cabral - e as vê onde as gaivotas rodopiam ao redor da torre do relógio, na ronda do imaginário farol, nem mesmo precisando mover as asas de sutil papel, apenas com um estremecimento do corpo na plumagem de arrepios aéreos, o mar (diz ela, e não duvido), da cor do pescoço de pavão, uma cor púrpura, chegando a verde-anil, que é o azul daquele Arraial do Cabo na minha adolescência, as estrelas da Praia dos Anjos brilhando no chão por onde passávamos a caminho dos ninhos de amor das aventuras de lá, e a arte, na sua essencial erótica marítima, grande cascos de baleias, impotentes, jacentes, brancos, talhados em mármores familiares, estátuas jacentes pois Marianne Moore viu no avanço do risco rígido do mar em brancos barcos, e em Arraial do Cabo as sandálias de espumas multicores, aros do sol, os ácidos do sol de aço dourado a fogo, sol forte de febre, as primeiras estrelas visitantes cruzadas em desígnios e misteriosos signos, da poesia ela, pegajosa, confidencial, cheia de aritméticas pinças, de Marianne Moore, que quando escreve em vez de lápis, diz Cabral, emprega instrumento cortante, a saber, bisturi, um canivete, e faz rir de delírio geológico, ilógico, colorido, reduzido, imagem a fragmentos de sonho, lembranças do Morrro do Miranda, dos anjos da Praia dos Anjos, do Morro do Atalaia, da Ilha dos Franceses, da poesia-água-forte, água em movimento, ávido tecido vivo de esmeraldas e ametistas, mar memorial delirante em viver o azul nas sonhadas capelas e marés e nos alpendres chamuscados de matiz de águas-marinhas profundas, pois foi o que viu Bachelard ali, em “L´eau et les rêves”, no seu “ensaio sobre a imaginação da matéria”, a água domada e desumanizada, pertencente ao domínio da mitologia primitiva, diz ele, aventuras das grandes viagens marítimas em vendavais de narrativas, ao nível dos grandes mitos das poderosas forças da imaginação heróica e material, em vidro estilhaços da profundidade igual ao que não existe, ao inconsciente que marítimo é narrativo, na mitologia do chão catando pelo rastro da origem a fabulação, diz Bachelard, este buscar participando da tonificação da vida, da renovação dos quereres do amor, do amor todo nascente da água do ventre, como certas deusas, ou o nascimento de Vênus, de Botticeli, mencionada em Apeles, presente no relato da criação de Hesíodo, na Teogonia, Afrodite surgindo das espumas nascentes da mistura do sêmen e do sangue de Urano, ou em versão, não encontrada na Ilíada, onde a deusa do amor nasce da união de Zeus e Dione nas douradas praias amadas de Arraial do Cabo, no Estado do Rio de Janeiro, abstração límpida do neoplatonismo da natureza dual do amor sobre as conchas são vaginas da beleza em flor...
* * *
“O JOÃO-DA-TORRE” de Marianne Moore
(fragmento)
Dürer teria visto um motivo para viver
                                    numa vila como esta, em cuja praia há oito baleias
 para se olhar; onde a suave brisa entra na casa da gente em dia
 claro, vinda de água em água-forte
          com ondas formais como num peixe as
 escamas.
 Uma por uma aos pares e aos trios, as gaivotas não
         param de ir e vir, sobre o relógio da vila voando,
 ou de circunavegar o farol sem nem sequer mover as asas –
 elevando-se firmes com leve
         tremor de corpo -, ou então, em bando,
 de miar
 onde um mar da púrpura do pescoço do pavão
          se transforma em verde-anil, como Dürer a degradar
 o verde-pinho do Tirol no azul-pavão e no cinza-guiné.
 Você pode ver uma lagosta
          de onze quilos; redes a secar
 ao sol. O
 remoinho pífano-e-tímpano da tempestade
          enverga a relva salina do brejo, perturba as estrelas
 no céu e a estrela na torre da igreja; é um privilégio ver tamanha
 confusão. As árvores e as flores
          da costa têm a favorecê-las
 a neblina

                                                  (trad. José Antonio Arantes)


domingo, 4 de setembro de 2016

sábado, 3 de setembro de 2016

MONGOLIA MUSIC!

é para ouvir.....
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