sábado, 31 de dezembro de 2016

SÁ FRANCISCA

SÁ FRANCISCA

ROGEL SAMUEL

Todo fim de ano eu me lembro de Sá Francisca, que era uma velhinha pobre que vinha todo mês à casa de minha avó pedir comida ou dinheiro em Manaus.
Conta a lenda que ela morava numa espécie de gruta, um buraco de pedra ou de árvore na Vila Municipal, longe, mas ela vinha a pé...
Minha avó a fazia entrar, ela tomava café com pão, ou almoçava num cantinho calada, e depois ia embora, silenciosa, misteriosa, baixinha, mística.
Eu já escrevi uma crônica sobre ela: mas procurei em vão, não encontrei, minha “produção literária” é dispersa em jornais antigos ou sites que se perderam.
Um dia, ela desapareceu. Minha avó mandou alguém que sabia onde ela morava que voltou com a notícia de que ela tinha desaparecido.
Talvez encantou-se, talvez ela era um mito uma lenda uma alucinação de velhos como eu.
Mas a sua figura sorridente nunca se me apagou.



QUE ME APARTO DE VÓS, OH ÓLEOS



que me aparto de vós, oh óleos 
do Rio Negro. Das axilas 
de coca-cola, de mel. Produto impuro 
banho de esperma que ferve 
pelas paquidérmicas chatas. 
vos deixo, oh mãe de orquídeas terra 
régia fera guerra estéril e amorosa 
e no longo corredor me enrosco 
meu aeroplano tece 
sobre vossas plastificadas canoas de ferro 
goma arábica ungüento espesso 
caboclo jovem mãe planície 
negra magra seda 
de vós finalmente me aparto 
oh águas lixiviadas, menstruais 
lembranças de ventres de tarântulas 
de cristais 
de vós me aparto para sempre! 
esmorecido de vós, sucumbido 
por vossa fênix, por vosso lenho 
vos esqueço, oh pélvica morada 
de mortos deuses, de profundos silos 
e neste ar meu aeroplano tece 
e é expelido pelas tuas pernas. 

(ROGEL SAMUEL)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

MADRUGADA

porta calada
madrugada
o silêncio é nada
o vento me acorda 
o silêncio morre
sobre esta triste noite
a quente suportada espera
volto ao sonho antigo
no sonho palavra dada
porta calada
madrugada
e que horas são?
qual tempo lembrar?
da minha janela percebo
um pedaço de rua
vento da noite nua
sopra na solidão
porta calada
madrugada 

(ROGEL SAMUEL)

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Da arte do sol

Da arte do sol


Rogel Samuel: Da arte do sol



Escrevo de madrugada. Nunca dormi muito bem, e sempre acordo durante a noite. Esta é a hora boa para ler, pensar, rever a vida. Antigamente era possível sair de madrugada. Quando eu morava em Copacabana, nessas horas eu saía para caminhar na praia e ver o sol nascer. O sol sempre nasce com esplendor, como tudo que nasce. A vida é o nascimento: o demais é um declinar-se para a morte, já pensou Heiddeger. Se nos fosse possível imaginar, diz Nietzsche, a dissonância feita criatura humana (pois o homem é uma dissonância) esta, para poder suportar a vida, teria a necessidade de uma admirável ilusão que lhe escondesse a sua verdadeira natureza, sob um véu de beleza. Esta é a finalidade da arte apolínea. Da arte do sol. O nome de Apolo resume aqui essas ilusões sem número da bela aparência que tornam, a cada instante, a existência digna de ser vivida e nos incitam a vivê-la no instante seguinte. A vida sempre renasce. Sempre que as potências dionisíacas a subverte violentamente, é desejável que Apolo, envolvido em nuvens, desça até nós, para curar a nossa escuridão, a nossa embriaguez.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O METRO ADVERSO



O METRO ADVERSO

ROGEL SAMUEL

Foi assim que este soneto de natal de Machado de Assis passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade nacional, escrita pelo mais mordaz dos críticos, que fica a rir da nossa ignorância e besteira:

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

O que acontece é que o famoso “Soneto de natal”, de Machado de Assis, exibe a marca de algumas de suas mais famosas e misteriosas ironias: - Machado nunca está dizendo o que aparentemente diz - sempre possue algo escondido, ou melhor, aquilo que está ali precisamos verter para a sua outra verdade, que é a do (entre-)texto, procurando lá a real significação do que ele quer, no texto, apontar, - o sub-texto dos sentidos ocultos, possíveis, falíveis, omissos, mas cabíveis, ao leitor desconfiado de que Machado está traindo, escondendo o jogo, de que está ausente-presente ali, por trás dos óculos, a rir, a gargalhar, ironicamente, da nossa burrice nacional, da nossa incapacidade de ler aquele soneto “corretamente”, e da sua própria incapacidade de escrevê-lo, nesse Bin Laden dos poemas de natal.
* * *

O tal soneto começa com um indefinido: “um homem”... Um homem não é um poeta. Quem é senão a própria figura oculta de Machado? Se um certo homem resolve escrever um certo poema de natal, ou escrever um poema no dia de natal, lembrando-se da infância, e “a viva dança, e a lépida cantiga”, esse deve ser uma fotografia poética do autor - caso contrário o soneto não teria nenhum sentido estruturante. 
* * *

Ora, um homem, quer dizer, um poeta, o poeta Machado - depois de lembrar-se da infância, ou por causa disso, resolve escrever um poema de natal no dia de natal, e não consegue, e nada sai, nem um verso, apenas a reflexão de que nada conseguiu, de que é incapaz de compor o mínimo poema de natal - seja porque sua lira se encontra em baixa, seja porque era mesmo Machado de Assis quem estava ali, e ele era verdadeiramente ateu, não acreditava em natais, nem naquela estória piedosa de “noite cristã etc” que só pode ser pura ironia do velho materialista - não se fie o leitor nessa estória comovente de “verso doce e ameno”, isso é pura galhofa do velho Machado - o que ali se tem é mesmo o “metro adverso”, a velhice, portas da morte, do nada, da folha em branco da morte, - a morte da inspiração, da juventude, do frescor musical de seus versos, da inspirada sensualidade juvenil - aquilo tudo que não mais existe, e em seu lugar a secura da voz, sem musicalidade nem poesia, apenas reflexão árida, cerebral, seca, vazia, amorfa, vinda do mofo interno, da mediocridade de almanaque: "Mudaria o Natal ou mudei eu?"



* * *

Mas o pior - e o mais grave, ou mais engraçado - é que a maioria dos leitores brasileiros, e os escolares, pelo tempo agora, mais de século, tem lido o soneto às avessas, ao contrario, vendo nele uma singular beleza que ali não há, que não está lá, que ele não tem, de que não dispõe, nem quis ter - pois o soneto é uma decepção, e é a expressão desta, a voz da mediocridade - pois o soneto é a escrita da incapacidade e da ausência, da insuficiência, e da não-poesia, do não-poético, pois Machado intencionalmente ironiza a incapacidade de escrever um belo soneto de natal por falta de fé, mas escrevendo um péssimo soneto sobre a sua própria falência de fazê-lo, e aquilo vem cheio de uma aparente “beleza” perfumada e barata, piegas e popular, que se traduz naquela “noite amiga”, naquela “noite cristã”, naquele “berço do Nazareno”, quando “sabemos” ou desconfiamos de que Machado não está falando sério, de que ele presumia que o leitor vulgar já ia achar o soneto maravilhoso, antológico, e realmente foi assim que o desgraçado soneto se tornou um clássico da literatura nacional, e foi assim mesmo que passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade escrita pelo mais mordaz crítico da mediocridade que foi Machado de Assis, que está a rir da nossa ignorância nacional brasileira...
* * *

E foi assim que este soneto se tornou um clássico.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

AS VAGAS DA ELEGIA DE CAMÕES

AS VAGAS DA ELEGIA DE CAMÕES

Rogel Samuel


No início o poeta conta que «Simônides, falando ao capitão Temístocles, um dia», lhe prometia ensinar uma arte mnemônica que fizesse com que nunca se esquecesse de nada. Mas o capitão tinha um passado tormentoso de batalhas e de mortes, e lhe disse que melhor seria que lhe ensinasse esquecer de tudo o que passou:

Que, se é forçado andar por várias partes
buscando à vida algum descanso honesto,
que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
se o duro trabalho é manifesto
que por grave que seja, há-de passar-se
com animoso espírito e ledo gesto;
de que serve às pessoas alembrar-se
do que se passou já, pois tudo passa,
senão de entristecer-se e magoar-se?

Na realidade, este capitão Temístocles é um outro do poeta Camões, que por guerras e desastre passou no Oriente, e de cujos amores passados não quer lembrar. Mais um pouco e estamos na reencarnação do amor: «Se noutro corpo uma alma se traspassa, não, como quis Pitágoras, na morte mas como manda Amor na vida escassa». Porque para suportar o por que ele passou, « homem fora formado de diamante».
Eis que ele começa a narrativa de sua viagem:

Soltava Eolo a rédea e liberdade
ao manso Favónio brandamente,
e eu já tinha solta a saudade.
Neptuno tinha posto o seu tridente;
a proa a branca escuma dividia,
co a gente marítima contente.
O coro das Nereidas nos seguia,
os ventos, namorada Galateia
consigo, sossegados, os movia.
Das argênteas conchinhas, Panopeia
andava pelo mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene, com Ligeia.


Na Elegia, de Camões vai olhando pras águas... «Ó claras Ninfas!», diz ele, e reclama da ausência amada. « O coro das Nereidas nos seguia, os ventos, namorada Galateia consigo, sossegados, os movia. »
Mas no meio da viagem... a tormenta: «Porque, chegado ao Cabo da Esperança, .... eis a noite com nuvens escurece, do ar supitamente foge o dia, e o largo oceano se embravece. »

A descrição da tempestade: «A máquina do Mundo parecia que em tormenta se vinha desfazendo, em serras todo o mar se convertia. »
A violência: «sonoras tempestades levantavam,
das naus as velas côncavas rompendo.
As cordas, ao ruído, associavam,
os marinheiros, já desesperados,
com gritos para o Céu o ar coalhavam. »

Depois da tempetade:

Oh, lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados!
Dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vêm o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.
Se lhe falta o vestido perfumado,
e da fermosa cor assíria tinto,
e dos torçais atálicos lavrado;
se não tem as delicias de Corinto,
e se de Pário os mármores lhe faltam,
o piropo, a esmeralda, e o jacinto;
se suas casas d'ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
onde os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali amostra o campo várias cores,
vêm-se os ramos pender co fruto ameno,
ali se afina o canto dos pastores:
ali cantara Títiro e Sileno.
Enfim, por estas partes caminhou
a sã justiça para o Céu sereno.
Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!
Este, bem facilmente alcançaria
as causas naturais de toda a cousa:
como se gera a chuva e neve fria;
os trabalhos do Sol, que não repousa;
e porque nos dá a Lua a luz alheia,
se tolher-nos de Febo os raios ousa;
e como tão depressa o Céu rodeia;
e como um só, os outros traz consigo;
e se é benina ou dura Citereia.
Bem mal pode entender isto que digo
quem há-de andar seguindo o fero Marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém seja, Senhor, de qualquer arte,
que, posto que a Fortuna possa tanto,
que tão longe de todo o bem me aparte,
não poderá apartar meu duro canto
desta obrigação sua, enquanto a morte
me não entrega ao duro Radamanto,
—se para tristes há tão leda sorte.
 
 

 
Camões: Elegia






Poeta Simónides, falando
co capitão Temístocles, um dia, 
em cusas de ciência praticando,
ü a arte singular lhe prometia,
que então compunha, com que lhe ensinasse
a se lembrar de tudo o que fazia;
onde tão sutis regras lhe mostrasse
que nunca lhe passasse da memória
em nenhum tempo as cousas que passasse.
Bem merecia, certo, fama e glória
quem dava regra contra o esquecimento
que enterra em si qualquer antiga história.
Mas o capitão claro, cujo intento
bem diferente estava, porque havia
as passadas lembranças por tormento;
ilustre Simónides! (dezia)
Pois tanto em teu engenho te confias
que mostras à memória nova via,
e me desses üa arte que em meus dias
me não lembrasse nada do passado,
oh! quanto milhor obra me farias!
Se este excelente dito ponderado
fosse por quem se visse estar ausente,
em longas esperanças degradado,
ah! como bradaria justamente:
Simónides, inventa novas artes;
não meças o passado co presente!
Que, se é forçado andar por várias partes
buscando à vida algum descanso honesto,
que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
se o duro trabalho é manifesto
que por grave que seja, há-de passar-se
com animoso esprito e ledo gesto;
de que serve às pessoas alembrar-se
do que se passou já, pois tudo passa,
senão de entristecer-se e magoar-se?
Se noutro corpo üa alma se traspassa,
não, como quis Pitágoras, na morte
mas como manda Amor na vida escassa;
e se este Amor no mundo está de sorte
que na virtude só dum lindo objecto
tem um corpo sem alma, vivo e forte;
onde este objecto falta, que é defecto
tamanho para a vida, que já nela
me está chamando à pena a dura Alecto;
porque me não criara minha estrela
selvático no mundo, e habitante
na dura Cítia, ou na aspereza dela,
ou no Cáucaso horrendo? Fraco infante,
criado ao peito d'algüa tigre hircana,
homem fora formado de diamante,
porque a cerviz ferina e inumana
não sometera ao jugo e dura lei
daquele que dá vida quando engana.
Ou, em pago das águas qu'estilei,
as que do mar passei foram de Lete, p
ara que me esquecera o que passei.
Que o bem que a esperança vã promete,
ou a morte o estorva, ou a mudança,
que é mal que ua alma em lágrimas derrete.
Já, Senhor, cairá como a lembrança,
no mal, do bem passado é triste e dura,
pois nasce aonde morre a esperança.
E se quiser saber como se apura
nua alma saudosa, não se enfade
de ler tão longa e mísera escritura.
Soltava Eolo a rédea e liberdade
ao manso Favónio brandamente,
e eu já tinha solta a saudade.
Neptuno tinha posto o seu tridente;
a proa a branca escuma dividia,
co a gente marítima contente.
O coro das Nereidas nos seguia,
os ventos, namorada Galateia
consigo, sossegados, os movia.
Das argênteas conchinhas, Panopeia
andava pelo mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene, com Ligeia.
Eu, trazendo lembranças por antolhos,
trazia os olhos na água sossegada,
e a água sem sossego nos meus olhos.
A bem-aventurança já passada
diante mim tinha tão presente
como se não mudasse o tempo nada.
E com o gesto imoto e descontente,
cum suspiro profundo, e mal ouvido,
por não mostrar meu mal a toda a gente,
dezia: Ó claras Ninfas! Se o sentido
em puro amor tivestes, e inda agora
da memória o não tendes esquecido;
se, porventura, fordes algüa hora
aonde entra o grão Tejo a dar tributo
a Tétis, que vós tendes por Senhora;
ou por verdes o prado verde enxuto,
ou por colherdes ouro rutilante,
das tágicas areias rico fruto;
nelas em verso heróico e elegante,
escrevei cüa concha o que em mim vistes:
pode ser que algum peito se quebrante.
E contando de mim memórias tristes,
os pastores do Tejo, que me ouviam,
ouçam de vós as mágoas que me ouvistes.
Elas, que já no gesto me entendiam,
nos meneios das ondas me mostravam
que em quanto lhe pedia consentiam.
Estas lembranças, que me acompanhavam
pola tranquilidade da bonança,
nem na tormenta grave me deixavam.
Porque, chegado ao Cabo da Esperança,
começo da saudade que renova,
lembrando a longa e áspera mudança;
debaixo estando já da Estrela nova,
que no novo Hemisfério resplandece,
dando do segundo axe certa prova;
eis a noite com nuvens escurece,
do ar supitamente foge o dia,
e o largo oceano se embravece.
A máquina do Mundo parecia
que em tormenta se vinha desfazendo,
em serras todo o mar se convertia.
Lutando Bóreas fero e Noto horrendo,
sonoras tempestades levantavam,
das naus as velas côncavas rompendo.
As cordas, ao ruído, associavam,
os marinheiros, já desesperados,
com gritos para o Céu o ar coalhavam.
Os raios por Vulcano fabricados
vibrava o fero e áspero Tonante,
tremendo os Pólos ambos, de assombrados!
Ali Amor mostrando-se possante
e que por nenhum modo não fugia,
mas quanto mais trabalho, mais constante;
vendo a morte diante, em mim dezia:
Se algüa hora, Senhora, vos lembrasse,
nada do que passei me lembraria.
Enfim, nunca houve cousa que mudasse
o firme Amor do intrínseco daquele
em cujo peito üa vez de siso entrasse.
üa cousa, Senhor, por certo assele;
que nunca Amor se afina, nem se apura,
enquanto está presente a causa dele.
Dest'arte me chegou minha ventura
a esta desejada e longa terra,
de todo o pobre honrado sepultura.
Vi quanta vaïdade em nós se encerra,
e dos próprios quão pouca; contra quem
foi logo necessário termos guerra.
Que üa ilha que o rei de Porcá tem,
que o rei da Pimenta lhe tomara,
fomos tomar-lha, e sucedeu-nos bem.
Com üa armada grossa, que ajuntara
o vizo-rei de Goa, nos partimos
com toda a gente d'armas que se achara,
e com pouco trabalho destruímos
a gente no curvo arco exercitada;
com mortes, com incêndios, os punimos.
Era a ilha com águas alagada,
de modo que se andava em almadias;
enfim, outra Veneza trasladada.
Nela nos detivemos sós dous dias,
que foram para alguns os derradeiros,
que passaram de Estige as águas frias.
Que estes são os remédios verdadeiros
que para a vida estão aparelhados
aos que a querem ter por cavaleiros.
Oh, lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados!
Dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vêm o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.
Se lhe falta o vestido perfumado,
e da fermosa cor assíria tinto,
e dos torçais atálicos lavrado;
se não tem as delicias de Corinto,
e se de Pário os mármores lhe faltam,
o piropo, a esmeralda, e o jacinto;
se suas casas d'ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
onde os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali amostra o campo várias cores,
vêm-se os ramos pender co fruto ameno,
ali se afina o canto dos pastores:
ali cantara Títiro e Sileno.
Enfim, por estas partes caminhou
a sã justiça para o Céu sereno.
Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!
Este, bem facilmente alcançaria
as causas naturais de toda a cousa:
como se gera a chuva e neve fria;
os trabalhos do Sol, que não repousa;
e porque nos dá a Lua a luz alheia,
se tolher-nos de Febo os raios ousa;
e como tão depressa o Céu rodeia;
e como um só, os outros traz consigo;
e se é benina ou dura Citereia.
Bem mal pode entender isto que digo
quem há-de andar seguindo o fero Marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém seja, Senhor, de qualquer arte,
que, posto que a Fortuna possa tanto,
que tão longe de todo o bem me aparte,
não poderá apartar meu duro canto
desta obrigação sua, enquanto a morte
me não entrega ao duro Radamanto,
—se para tristes há tão leda sorte.
 
 

domingo, 18 de dezembro de 2016

sábado, 17 de dezembro de 2016

Duas traduções

Duas traduções



Duas traduções

Rogel Samuel

Traduzir, além de ser uma arte, exercício útil ao escritor, para excitá-lo. Traduzir o poeta que mais amamos faz do trabalho um extremo prazer. Traduzir faz aprender, mergulhar no misterioso subterrâneo do texto e das duas línguas. Poucos tradutores agigantaram o texto original, em colaboração com a origem. No meu insignificante caso digo: ainda hei de tentar traduzir “ Le bateau ivre”, de Rimbaud, com seus 100 versos de ouro puro.

Vejamos um caso de tradução comparada, de Rainer Maria Rilke, mas sem comentário:


O torso arcaico de Apolo,

Não conhecemos sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo erger-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

(Tradução: Paulo Quintela)


Não, não sabemos como era a cabeça, que falta,
De pupilas amadurecidas, porém
O torso arde ainda como um candelabro e tem,
Só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

E brilha. Se não fosse assim a curva rara
Do peito não deslumbraria, nem achar
Caminho poderia um sorriso e baixar
Da anca suave ao centro, onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
Pedra, um desfigurado mármore, e nem já
Resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
Como uma estrela; pois ali ponto não há
Que não te mire. Força é mudares de vida.

(Trad. de Manuel Bandeira)

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

NA NOITE DE NATAL



NA NOITE DE NATAL

ROGEL SAMUEL

Natal de sempre. Não sentia falta. Não lastimava. Necessitava estar livre, espaço da solidão. Ele era, estava exilado. Mesmo dentro do próprio país. Natal, festa familiar. Não possuía família. Nem pátria. Por isso, naquela noite de Natal, dirigindo naquela estrada deserta, naquele país distante e frio, de que nem sabia o nome, nunca soube onde estava, nunca soube como foi parar ali. Perdido. Isolado. No meio da noite de natal. Ruas, estradas desertas. Casas altas. Casas fechadas. Muros altos. Estranha antiga fortaleza. Paisagem espanhola. Ele dirigia, mãos frias coladas ao volante. Tudo ruindo. Mesmo para ele, acostumado à fuga, tantas cidades, países tantos. O nunca acabar. No escuro. Frio.

Então, a última cidade passou, mas a estrada continuou.

Florestas e morros escuros. Um vento gélido percorria a alta noite cantando como um fantasma. Ele continuava. Os faróis do carro lambendo as margens com sua língua de luz fraca.

Foi quando percebeu um clarão vindo de algum lugar, de casa próxima, à beira da estrada.

Para lá se dirigiu.

Próximo, havia uma casa, ou melhor, um casebre. Como ele estava muito cansado, estacionou perto, e foi andando até aquele lugar, onde esperava poder descansar.

Chegou. Bateu na porta. Ninguém. Entrou, a porta aberta. Havia o calor simples e humano vindo da lareira acesa. O lugar iluminado e bom. Mas ninguém lá. Os móveis simples, velhos. Porém limpos. Poucas peças, cadeiras, a mesa, o aparador, sobre o qual havia um presépio. Mas sem o menino Jesus.

“Já volto”, escrito estava num pedaço de papel, ao lado do presépio. Que importava aquela frase, aquele aviso? Ele estava cansado e não compreendia. Aninhou-se perto da lareira e dormiu brutalmente, num desmaio.

Dormiu por muitas horas.

Quando acordou, o sol brilhava, a lareira apagada, o frio passara, o tempo bom. No papel em cima do aparador, escrito: “Bom dia”; e no presépio, o menino Jesus.

Ele partiu. No caminho viu que as árvores tinham florido e estavam cheias de cânticos de pássaros.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

L. RUAS - APARIÇÃO DO CLOWN




L. RUAS 

APARIÇÃO DO CLOWN


descoberta



foi no tempo do luar pois não existe sol
no velho parque − tempo não maduro – 
que encontrei o sempiterno clown. 
queria ver-lhe a face. e sua face 
era imenso lago azul parado
onde a lua se repetia. lua.
queria ver seu corpo – um chafariz
era seu corpo de barro modelado 
aljofrando de estrelas e de pérolas
o céu e o chão banhados em azul.
apenas vi o velho clown beijando
uma boneca. e beijando-a chorava.
e ria ao mesmo tempo que
o destino dos palhaços é fundir
à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.

e vendo ser inútil o meu esforço
de descobrir integralmente o clown
eu suplicante lhe falei assim





















discurso



faz mistério palhaço
e ri teu riso esbandalhado.
gargalha palhaço e faz sofrer
os que contigo riem e sofrem
e vivem.
canta a tua ideologia tirânica 
ó clown sentenciado
para fazer chorar os que riem.
ninguém entende tua vida mascarado
que se esconde atrás da cortina
das pinturas e das vestes.
onde está tua face palhaço onde?
além do além do horizonte
nas nuvens ou atrás da máscara?
onde está teu riso palhaço onde?
no pranto que improvisas
ou na dor que não gargalhas?
palhaço.
interrogação verde no cenário de carmim.
palhaço. olha o palhaço.
havia inocência e terror pureza e crime
em teus olhos abertos para o mundo.
luzes.
as luzes da ribalta não revelam
o que não dizem também
nem as cores nem os saltos nem as cambalhotas


que fazes no trapézio longínquo.
palhaço. quem já viu tua face
tua única face?
aquela que não é partida
aquela que não é pintada?
quem já beijou tua boca verdadeira?
as bailarinas beijam a boca mentirosa
a que canta a que ri a que chora
mas ninguém beijará o teu silêncio.
e tuas mãos palhaço e tuas mãos rosa
tuas mãos disfarce que nos enganam e alegram.
a bailarina lhe disse chorando – eu te amo.
ele riu. palmas. a cortina cerrou-se.
e se vestiu de nobre e deu esmola
para encobrir com seda e ouro o adultério.
palhaço. ri teu riso e oferece-nos teu almoço.
dá-nos o ridículo banquete onde comemos
rosas e suspiros e sorrisos.
e deixa-nos sonhar depois e depois chorar
tudo aquilo que não nos revelaste
a flor ainda em botão
não desabrochada não vituperada.
ninguém te vaia palhaço
todos riem somente da face mentirosa
da escandalosa face que nos ofereces
dizendo que é vinho.

todos beberiam porém teu sangue
seiva das árvores água dos rios lama das sarjetas
e comeriam tua carne que não ofereces.
carne de elefante néctar de bonina alma de passarinho.
a estrela pousou – sombra de sonho – em seu ombro
– venho do céu. vi o mundo nascer. sou como tu 
eterna. 
sou a mais antiga das estrelas de todas as estrelas.
dou-te todo o meu brilho se disseres
porque ris tanto se és tão triste assim.


– ora. vamos dançar.

e saiu para o palco dançando e cantando.
ninguém viu a lágrima que lhe molhou os olhos 
ocultos. 

palhaço.
flor-de-lis onde bimbalham chocalhos.
inocência e maldade água e sangue
azul e preto
lama e sapo.
ri palhaço que ansiamos por te ver no picadeiro
árvore estranha esquisita flor
não sabemos de que país ou de que planeta.
de onde vens palhaço? quê nos queres dizer?
fala que te espiamos cientista da vida.
tu gargalhas no palco o que choramos na vida.
embora te odiemos te amamos
pois te pareces com o menino que somos
e com o inferno que não deixamos de ser.
poeta de risos e de cabriolas
diametralmente opostas
teus trejeitos são a mais perfeita rima
que já encontrei para os poemas
que não escreverei.
somos crianças palhaço diante de ti
sou criança que não aprendi ainda
o que é o belo e o feio
o pranto e a galhofa.
o que é ser e o que é não ser.
pois tu és homem palhaço tu és homem.
clown desengraçado


bicho fantasiado de deus
em quem não assentam
nem
rabo de macaco
nem
auréola de arcanjo.
tu és verdadeiramente homem
pois tu somente revelas o segredo
honra e vergonha
que todos ocultamos.
palhaços dos anjos e dos homens
mito de farsa e de verdade
palco e vida
gargalhada e pranto
seres partidos
dois olhos
duas pernas
duas mãos
paralíticos
cegos e loucos.
apagaram-se as luzes?
ou as rosas morreram?









resposta 




apenas vemos sombras
sem conhecermos a luz.
percebemos a chaga
não tocamos a alma.
brasa em negro fogo consumida
semente bipartida.
julgas possuir toda ciência
se sabes rir apenas
quando é preciso rir
é mister no entanto descobrir
que também no muito riso há pranto.
a máscara sustem dois olhos
um é cego porém. de fato
só um olho vê. por isso
conheces silhuetas
e não a dimensão total
aquela dimensão que
por ser transdimensional
entre todas
é mais constante e mais real.
a caverna de platão.
que sabes das rosas renascidas?
Das estrelas em luz desfalecidas?
da liberdade e do amor?
ser livre em essência é ser cativo.





aviso


quando vires o pássaro ferido
vagando antes que surja a madrugada
não o tanjas nem o chames
deixa-o voar. não te apiades
deixa o pássaro voar.
ele comeu a estrela
e conserva no desenho do seu vôo
as dimensões incontidas
dos humildes gestos perdidos para sempre.
não chames o pássaro ferido.
não te ouvirá pois não sabes os seus nomes.
e ninguém há de estancar o vôo
que jorra eternamente
de suas vísceras fecundadas
pela essência intocada da estrela
sua prisioneira e amor.
uma estrela de fogo e de basalto.
de basalto e fogo, não esqueças.
e o pássaro mais ferido pela luz
do que pelas cinco pontas da estrela
sempre voará.
deixa o pássaro voar. quando ouvires
o tatalar – apenas ritmo – cansado
mas não vencido
de suas penas molhadas de arrebol
deixa o pássaro voar. não tentes


prendê-lo. a ilusão é mais mortífera
do que a desesperança.
o pássaro é essencialmente livre
muito embora suas penas estejam prenhes
de luz e sangue misturados. 
se vires por acaso o pássaro voando 
não o chames para o teu silêncio 
pois o pássaro é muito bom – é bom demais – 
para que tu sombra e demência 
o possas possuir. 
nem te deixes seduzir pelo seu canto 
que o canto das sereias de ulisses 
diante do cantar do pássaro ferido
é apenas ritmo – apenas esboçado.
mas não odeies o pássaro 
ama-o de longe. pois é forte
apenas um amor de morte.
puccini ouviu o pássaro cantar. 
e eu também eu palhaço o ouvi.
ouvi sua lenda e seu martírio 
a tortura da estrela e saí
no ontem no hoje e no amanhã
a procurá-lo.
fruto do bem e do mal.


romance


a estrela de fogo e de basalto tem cinco
chifres e se parece com a rosa.
de sangue.
aberta ferida gotejante 
no peito espalmado e branco deste pássaro em vôo.
de ouro e de basalto.
de basalto da etiópia e de neve da antártida.
quando o pássaro raptou a estrela 
ela estava sendo devorada por um peixe.
que adianta mais? ser comida por um peixe 
ou amada por um pássaro. ser ou não ser comido.
esta é a questão. hamlet tinha razão.
para além para muito além de todo sonho 
o pássaro levou a estrela devorada 
e mais alto do que as águias o pássaro voou. 
mas quando o pássaro quis partir 
para a aventura sem rota 
por mares nunca antes navegados 
por espaços nunca antes habitados 
para plantar no barro e na luz 
um reino instável e efêmero 
onde imperaram 
o gênio, a arte, a poesia e a flor 
foi então que nasceu o mais profundo humor –
– o pássaro devorou a estrela 
e a estrela o pássaro gerou. o palhaço dos homens.


martírio

a serpente a maçã a figueira e o lírio 
todos cantaram pela voz do pássaro 
nascido prometeu.
não prometeu acorrentado um dia 
no deserto e na montanha.
prometeu não morre é apenas devorado.
continuamente devorado prometeu continuamente vivo.
comem-lhe o sexo e a alma 
a carne e o sangue e prometeu não morre 
prometeu acorrentado um dia 
do amor na eterna penedia.
o amor nos prende e nos tortura. mas não mata.
o pássaro ferido tem sete bicos 
sete línguas de fogo sete olhos sete chagas.
tem olhos e não vê. ouvidos e não ouve. está ferido. 
suas asas sangrando sempre banham o mundo inteiro.
às vezes é de mansinho que eles chegam 
os sete amores filhos do amor.
ágape feriu eros letalmente. terminou a comédia. 
júpiter destronado. mas beethoven está cantando.
ou é o pássaro ferido? 
os trigais estão maduros para a ceifa. 
que importa a primavera?
mefistófeles zombou do doutor fausto 
e o venceu. mistério e luz.
ouve o pranto da estrela solitária
que se desfaz em canto.

canção

se eu chorasse
estas sombras
e estes símbolos
morreriam 

os diamantes quebrariam
as arestas
e os vulcões se extinguiriam 

se eu chorasse
dormiria logo
e cedo sonharia
o lago dos cisnes

se eu chorasse
o cavalo branco
que cavalga morto
comeria as rosas

e a rosa de barro
murcharia no jarro
em ângulos obtusos

não digais ao mar
a dor das pedras frias
não digais à mariposa 
a tortura da luz

o meu amado é
um pássaro ferido
não choro sua dor
nem curo seu amor

a maçã é muito branca
o peixe é muito branco
o lírio é muito branco
não é branco o amor

eu cantei uma canção
baixinho ao meu amado 
– “não chores pequenino
não chores que eu te amo” –

eu andei por longas ruas 
e por cidades perdidas
em busca do meu amor 
procurava uma rosa
so encontrei dissabor

perguntei aos que passavam
onde andava meu amor

mas todos olhavam atentos
para as mãos de um senhor
que fazia jogos engraçados
e ninguém me respondeu
onde estava meu amor

eu andei por teus caminhos
em busca do meu amor
os palhaços tristemente
despetalavam uma flor.

viagem

foi então que cheguei ao cais 
e as barcaças estavam todas 
amarradas ancoradas.
caronte me disse amargamente 
– “não voltarão mais nem dante nem virgílio. 
nem será dado a orfeu
ir salvar eurídice
a passagem está vedada
e as barcaças ancoradas
não mais navegarão por mares ignotos” – 
quando olhei para o mar vi na praia
os escombros da batalha. 
pontas de lança arcos flechas
corpos destroçados almas insepultas. 
uma criança brincava com as conchas 
e com a caveira de um herói 
– se não me engano era de aquiles – 
seus olhos eram de fogo 
e suas mãos de lírio.
a criança então me disse – “depois
que a serpente me feriu no calcanhar 
nunca mais fui ao deserto nem
ao mar.
as águas não me sustentam mais
e somente caminho na praia
pois temo naufragar.

espero o pássaro ferido 
e se quiseres esperar comigo 
senta-te na praia e não vás ao mar.
o mar é muito vasto e fera enraivecida.
já engoliu noivos e pescadores
e seduziu o pássaro ferido.
não te lembras do mar de suas pompas
e de seus sedutores artifícios?
de seus cantos falazes e dos apelos sedutores
com os quais arrasta para o abismo
do seu próprio nada os navegantes
inexperientes e desprevenidos? 
não procures no mar no buliço das vagas 
a sombra do teu amor.
eu mandei prender as barcas
e aguardo o pássaro ferido.
canta uma canção ao teu amor.”
como cantarei cantos de amor
nesta solidão? 
os cantos nascem apenas da união
do brilho da estrela com o ritmo do vôo.
como hei de cantar canções de amor
se ainda estou peregrinando
por essas praias de vidro?
a criança então cantou assim – 



apóstrofe

em vão hás de voar pássaro triste 
buscando o fruto verde não sepulto
nas praias naufragadas onde existe
a concha nacarada – peixe inculto

além de tuas patas espalmadas
o mar é brisa calma e mata bruta
as asas que se abrem limitadas
mergulham sem tocar na doce fruta

em curvas linhas retas canto e arte
te vejo entre o céu e o barro forte
comendo espaço e tempo sul e norte

buscando em vão o fruto que te farte.
quem sabe? pode ser que noutros mares
sacies teu desejo. é bom tentares.



o dragão e a flor

vi que a criança fabricava
uma espada que cortava suas mãos.
perguntei-lhe – por que fazes esta espada?
respondeu-me – é para matar o cordeiro 
que será servido no banquete
do encontro da estrela com o pássaro.
o mar tranqüilo e frio como o desamor
a praia de vidro. caronte preso.
cupido sem flechas na aljava
a antiga simetria de vênus lamentava
que a beleza da estrela avantajava.
então compreendi porque a esperar 
estava a criança tão sozinha
o regresso do pássaro ferido.
neste momento entre fumo e fogo de inferno 
surgiu do mar profundo um dragão.
o mar como gigante enfurecido
uivava em contorções
espadanando seus peixes e todas suas pérolas
que vinham espatifar-se loucamente
na polida face da praia de cristal.
ó desencanto das palavras que não chegam.
uivava o mar qual leão acorrentado
sob o peso imponderável do amor
do dragão que perseguia a flor.
a flor tinha redolências de mulher




e era pura como um anjo.
oh. as flores que aninhei em minhas mãos
trêmulas como úteros maternos.
oh. as flores perdidas para sempre
nos longínquos perfumes ressequidos.



“– não mais verás o encanto fenecido 
do dia e da noite
não mais terás ó lírio amortecido
as brisas leves do teu vale.
não mais.
não mais que vênus está extinta
e a estrela rediviva”.


assim cantou o dragão enraivecido 
então a criança correu para meus braços
gritando – “não deixes o dragão me seduzir”.
“– que posso fazer criança que não sou
poderei salvar por acaso o eterno jogo 
se habitas a praia sem dimensões
sem sol e sem luar?
por que me buscas se possues espada
e mãos de sonho e olhos de rubi?
sou apenas sopro vento vaidade nada
pó perfume cor sonoridade luz.
que mistério é este que sugeres
tentando penetrar nestas entranhas
fecundadas pelo canto do pássaro ferido?
então o mar partiu-se lado a lado
como um véu por invisíveis mãos rasgado
e engoliu o dragão.


prelúdio 

quatro cavalos passaram galopando 
em asas de águias sustentados
relinchando como se fossem trombetas sua voz
ou ribombar de trovões enlouquecidos.
olhei. estava só na praia. o mar quieto.
uma brisa dançava sobre as ondas
o prelúdio que chopin tocava soluçando.
depois vieram ninfas volitando
ao som de músicas ligeiras.
sumiram-se depois nas gotas do orvalho.
oh. a crosta espessa das palavras
que mal revelam o fulcro luminoso
da consistência do mistério vislumbrado.
quem está cantando perguntei são as rosas?
rosas?
quem está cantando é o coro dos palhaços.

coral

vigiai vigiai. 
preparai a veste
acendei o círio
acendei a ribalta
ressuscitai as rosas
e aguardai no amor
que o pássaro virá.



nênia

mas se o pássaro não vier como será? 
os trigais deixarão cair – inútil esmola –
os grãos de ouro no chão incandescido.
as flores murcharão – flores de pedra –
pontiagudas como espinhos secos.
as fontes coalharão suas águas
e teu sorriso morrerá qual fruto podre.
se o pássaro não vier
será a noite sem estrelas
e o sol não bordará mais de ouro e púrpura
as régias fímbrias do manto da aurora.
tuas mãos inutilmente chamarão os pirilampos
para os bailes feéricos no seio da floresta
se o pássaro não vier
a musica silenciará
na última corda partida
de paganini.
o basilisco e as víboras dominarão os caminhos
e ficará deserto e frio o último dos ninhos.
não mais
não mais terás o meu carinho
pois teu rosto de mármore será
estulto como estátua de museu.
se o pássaro não vier
inutilmente serás.

serás o quê? ser o quê se o pássaro não vem? 
ser o quê se não há mais flor?
ser o quê se não há mais ninho?




ressurreição do baile

mas
escuta
que vozes serão essas? 
de onde vêm? para onde vão?
olha.
as flores ressuscitam.
olha.
as estrelas se acendem.
olha o mar. olha a estrela de basalto e ouro
olha.
não vês ó triste cego o deserto reflorido
e as amendoeiras do japão e as borboletas?
olha o exército pronto para a guerra.
olha os coros dos serafins e dos arcanjos.
olha os noivos enfeitados para as bodas.
olha a brisa dançando na folhagem.
é na brisa que o pássaro virá.
virá com as línguas de fogo
e os cornos septiformes. olha as luzes.
vê as cores. ouve os sons.
tudo recomeça a vibrar e a dançar.
é o tempo.
olha a estrela de ouro e de basalto.
o pássaro ferido está chegando.



retorno


ele voltou dançando o mesmo balé antigo.
“– quem és tu esquisito ser luxuriante?
e estes guizos pendentes de teus dedos 
e estas chamas febris em teu olhar de ave?
quem és tu? perguntei – “e o fantasma
não me olhou sequer. subia e descia
em ritmo veloz e às vezes calmamente.
“– quem és tu? –“ perguntei impaciente
que o medo o pavor o riso a loucura
já de mim se apossavam. e o demente
anjo respondeu-me indiferentemente
“– de onde venho não sei nem mesmo sei
se algum dia nasci ou se apenas sempre nasço.
quem sou? rosa anjo fagulha do inferno 
semideus apenas gesto luz ou noite?
por que perguntas isso? por que queres saber
quem sou se eu mesmo não o sei? repara.
quando aqui chegaste a noite era nova
e já a estrela da manhã desfolha
uma a uma humildemente suas pétalas de luz.
não te direi quem sou. dorme e sonha.
acorda viaja estuda raciocina dorme.
não és homem por acaso não possues 
uma centelha divina ardendo viva
dentro do teu mais misterioso mar?
não direi meu nome a homem algum porém 
podes muito bem descobri-lo. sabes que a lua
é um satélite da terra. que o sol é uma estrela.
que tudo é relativo e três as dimensões do espaço.
que os corpos se compõem de átomos e moléculas.
conheces a inflexível lei da gravidade
que arrasta para o chão o barro do teu corpo.
descobriste no âmago das coisas íons e elétrons
o positivo e o negativo
forças que se atraem e se repelem.
conheces as rotas dos planetas e o caminho
das marítimas correntes dos ventos e das aves
e não sabes ainda balbuciar meu nome verdadeiro.
e eu não direi. espia bem esta paisagem.
lê de novo o poema. desce. vai ao fundo.
sobe depois. evola-te. transforma-te
depois em fumaça e em luz. não te afadigues.
o ritmo do meu nome é longo. majestoso.
quando souberes quantas rosas floriram
na paisagem perdida e de novo descobrires
o sonho inquieto e a aurora pranteada
alegra-te então. pois caminhas certo
rumo ao mistério inexprimível do meu nome.
agora olha bem para dentro de meus olhos.
que são eles? abismos caricias ou perdição?
fogo água tranqüilidade ou medo? 
e meus pés? vês? são pés de fauno grego
ou de arcanjo bizantino? não sabes?
não sabes decifrar o indevassável enigma
dos meus pés sempre velados?
não sabes entender a linguagem dos meus olhos?
sou demente sim. sou ilógico. hiperlógico. paralógico.
sou problema e sombra. queres saber meu nome?
queres me amar talvez ou odiar talvez.
sou vida esperdiçada ou morte indesejável.
e meu corpo se corpo chamar se pode
a esta mistura de feno e melodia
é tão instável como a dança histérica das chamas.
sou ar fogo umidade terra e água.
os quatro elementos? ah. os infinitos elementos.
sou móvel motor força motriz mobilidade extrema
e ao mesmo tempo sou suprema paz e quietude.
olha a lagoa onde revoam pássaros cansados.
olha as canaranas frágeis baloiçando 
e os aguapés dormindo brancamente.
olha as águas das lagoas diluídas
os cetáceos as serpes os palmípedes
e as ondas profundas que despertam
e uma a uma vão morrer nas margens.
e perguntas meu nome. sabê-lo não desejes.
à noite venho ver-te e te acalento 
no sono solitário e tão estrangulado.
fabrico sonhos e ao meu rude comando
as estrelas despenham-se e os planetas giram
na luminosidade sempre nova das noites consteladas.
não percebes o uivar dos ventos nas mangueiras
e na bonina que se abre como o ventre
da primeira mãe ainda virgem que já foi?
e meu nome não sabes. fui presente
nas metamorfoses de virgílio e na comédia de dante
iluminei camões e lorde byron
shakespeare foi meu fâmulo. joão da cruz meu senhor.
ensinei davi a dedilhar a lira
o outro joão eu visitei em patmos
e o bateau ivre era meu. dei-o a rimbaud.
sou chama e alma rio e danço
no fogo rubro amarelo azul e verde.
quando olhares o fogo observa bem
que lá estou como também estou
na palidez da lua sempre fria
e dentro de ti mesmo a conduzir
tua mão quando escreves os poemas
e sentes a tortura de dizer belezas.
pareço mau às vezes quando prendo a pena
e estrangulo a luz justamente no momento
em que começa a palpitar dentro de ti. 
mas se o faço é para despertar em ti
a sede onímoda de conseguir o mais.
agora vê. me vou. deixo-te agora.
vou como vim. apaga a luz
fecha os olhos e me verás no sonho 
o mesmo balé inicial dançando.



foi assim que partiu o tresloucado 
pois como os amantes é hostil
à luz do sol. é sombra seu império.
não trevas. mas a luz azul
que não é dia não é noite.
é luar.

legado

asas somente isso. angústia 
de fugir ao destino das raízes.
túrgidas velas singrando aberto espaço.
velas do destino de colombo
partindo em quilhas quase loucas para
o mistério das virgens descobertas.
asas de ícaro vencidas pelo sol
incauto icaro não sabias que
não é dado a palhaços ver o sol?
ah. o vôo de icaro presente
na dança de nijinski.
asas, somente isso. desespero
de ser barro e ao mesmo tempo seta.
asas apenas sugeridas
nas curvas nos voejos nas volutas
nos mantos e nas vestes do barroco.
asas de anjos de querubins de touros
assírios. asas custódias da arca da aliança.
asas nos calcanhares de mercúrio.
asas romanas. gregas. bizantinas asas.
asas egípcias. asas de papel crepon
dos anjinhos meninas das procissões.
asas até sim asas de avião.
asas do padre bartolomeu de gusmão.
asas em queda.
pois até para cair é mister possuí-las.
belzebu tem asas. sim. belzebu tem asas.
no céu e no inferno ruído de asas tatalando.

asas nos pés da bailarina tola do café noturno. 
antigo sonho. desejo antigo. eterna tentação.
asas. panos soltos ao vento. gazes leves.
e os braços que se erguem as mãos que gesticulam
asas as torres ogivais as fadas e as bruxas.
asas sonoras sibilando esses
verdes azuis amarelas incolores
brilhantes e opacas grandes e pequenas
das borboletas das garças das abelhas
das plumas dos polens do orvalho
asas imponderáveis e asas de granito
dos arcanjos que guardam mausoléus.
asas. geometria rude esboço mal riscado
pelos bandos erradios de pássaros selvagens.
asas no chão. asas no céu.
asas ensaiando vôo. é somente isso
o rebento verdolengo ao romper
a espessa placenta da terra dura e seca.
asas de águia em vôos altaneiros.
asas quietas pousadas em silêncio.

doutrina

sou cativo do pássaro ferido 
pois ouvindo sua lenda e seu martírio
por legado recebi este desejo
e da estrela tornei-me companheiro.
ó poeta não queiras pois é morte
e cativeiro conhecer a face do palhaço.
há milênios caminho sem cessar
sem ver o sol. apenas o luar
e a luz indecisa das estrelas
recriam esta máscara e fonte
do riso e da tristeza que oculta 
o meu rosto e corpo verdadeiros.
e assim caminharei eternamente
peregrino sempre sempre marinheiro
carregando meu fado torturante 
– semente feto messe em promissão –
de ser ave sem poder voar
de ser clown isto é ser e não ser.
mas tu poeta enquanto não puderes
te unir totalmente com o mistério
que te foge das mãos feitas de som 
une-te intensamente
às formas aos sons e às cores simples.
modela sem cessar
a chama que te queima a alma e as mãos.
não deixes que se perca uma só
destas fagulhas.
pois uma delas pode ser a luz
que salvará tua face passageira
quando raiar o sempiterno dia.













despedida


e o velho clown partiu beijando ainda
o brinquedo que a criança abandonara
no velho palco parque ou tempo sem memória.