sábado, 31 de outubro de 2015

A INAUGURAÇÃO DO TEATRO AMAZONAS



 A INAUGURAÇÃO DO TEATRO AMAZONAS

ROGEL SAMUEL


 No dia 31 de dezembro de 1896 se inaugurou o Teatro Amazonas.

Inaugurou-se com “La Gioconda”, de Amilcare Ponchielli, sob a regência do maestro brasileiro Joaquim de Carvalho Franco, que foi diretor da Academia Amazonense de Belas Artes.

Carvalho Franco nasceu em Campinas, em 1858/59 e morreu em Manaus em 1927, onde se estabeleceu. Está enterrado no cemitério de São João Batista. 

 “La Gioconda” era uma novidade. Em 1896. Sua estréia mundial fora em 1876, com grande sucesso. A única das composições de Ponchielli (1834-1886) a ter sucesso e a manter-se no repertório dos teatros até hoje. Estreou no Teatro alla Scala de Milão, em 08 de abril de 1876 e Ponchielli revisou a obra pelo menos três vezes até o final da vida. 

 “La Gioconda” está na transição entre o romantismo e o realismo, reunindo elementos dos dois. Estilo de “grand-opera” francesa, carregada de melodrama, a ambientação exótica, com um balé no meio do espetáculo – a conhecida “Dança das Horas”, imortalizada por Walt Disney.

A ópera revela grandiosidade, cenários luxuosos, efeitos de cena, como o incêndio do segundo ato, grandes número de coro, orquestração densa. Exige um elenco de 12 cantores, seis dos quais podem ser considerados principais, com pelo menos uma grande ária para cada um deles. 

 Mas “La Gioconda” é precursora da escola realista da ópera italiana, com o vilão Barnaba, teatral, mais declamado do que cantado, e a violenta cena final, quando a protagonista comete suicídio num ato de extremo desespero.  

 O libreto é de Arrigo Boito, um dos artistas que fizeram a renovação do gênero. Mas Boito não acreditou no sucesso da ópera, e preferiu assinar com um anagrama, Tobia Gorrio. 

 O soprano que interpretar Gioconda tem as partes mais difíceis do espetáculo, cheio de recursos emotivos, alternando sentimentos de ternura, amor, ódio e desespero. O soprano canta exaustivamente nos três primeiros atos, antes de enfrentar o fim, no mais extremo esforço cênico e vocal, quando está dentro de um palácio em ruínas e prefere suicidar-se a ser morta. 

 É uma ópera cara, difícil. 

 A Gioconda de Manaus era Líbia Drog, soprano dramática. Ela era uma italiana belíssima, cotada na Itália, na Espanha e em São Petesburgo. Mas ficou famosa porque no Metropólitan Opera House, em novembro de 1894, na ópera Guillermo Tell, esqueceu o texto da ária de Matilde –Selva opaca - pondo em perigo toda a função.
Mas em Manaus ela teve uma atuação impecável. 

 A multidão que assistia do lado de fora a entrada dos convidados à inauguração viu chegar Raul de Azevedo e sua esposa, Sara. O casal ficou a passear nos jardins do teatro antes de entrar, pois o escritotor aproveitou para fumar.
 A seguir apareceram Afonso de Carvalho, a esposa e alguns amigos. Era um grupo animado. Entraram logo.
 Logo veio Joaquim Cardoso Ramalho Junior, com o filho (a esposa adoentada não veio). Mas quando apareceu Erico de Aguiar Picanço todas as pessoas que assistiam a entrada exclamaram um “oh!” de surpresa e admiração, pois Esmeralda Picanço portava as suas famosas esmeraldas: era um colar e brincos de esmeraldas e diamantes famosos na alta sociedade manauara, realçados pelo belo pescoço e o vestido de seda preta de sua dona. O vestido não tinha nenhum bordado nem enfeite. As esmeraldas e brilhantes iluminaram a entrada.

 E assim foram chegando os convidados, que era elite do Norte do Brasil. Um dos últimos a chegar foi o Governado Fileto Pires Ferreira, com a esposa. E o último o ex-governador Eduardo Gonçalves Ribeiro, aplaudido pelo povo que estava na rua, desprezado pelos convidados de dentro. Eduardo Ribeiro, como sempre, veio com uniforme militar, acompanhado por dois soldados. Entrou rapidamente, atravessou o hall sem cumprimentar ninguém, subiu as escadarias com velocidade e sumiu no camarote. Os dois soldados não entraram, ficaram de guarda, na porta. 

 O Teatro ainda não estava ainda totalmente pronto. No “Salão Nobre”, em taças de cristal, servia-se o champanha La Grand Dame Veuve Clicquo. E se fazia política, conspirava-se. Conspirava-se contra o Governador Fileto Pires Ferreira, que já estava no camarote do Governo, conspirava-se contra Eduardo Ribeiro, que se escondera na penumbra.  Em sussurros, no pé do ouvido, algumas figuras diziam: “- Fileto vai viajar para Paris...”
 - Agora que Fileto e o negro estão rompidos é hora de agir, disse o outro.

 No início do espetáculo falou o Governador Fileto Pires Ferreira, do alto do seu camarote central. Grande orador, inflamado, de improviso, inaugurou o Teatro. Seu discurso foi recebido friamente pela elite que já conspirava contra ele. E embora tivesse de relações rompidas com o ex-governador, anunciou:

 - Temos a satisfação de ver entre nós o grande realizador da obra, o construtor deste imponente Teatro, o Governador Eduardo Ribeiro.

Neste momento irrompeu uma grande vaia, vinda de todos os lados.

E mais tarde, no meio da ópera, na  “Dança das horas”, ouviu-se alguém gritar:

 - É preciso eliminar o negro! – e uma gargalhada geral. 

 Eduardo Ribeiro naquele momente se retirou e nunca mais voltou ao teatro.

TÚMULO DE EMILINHA


sexta-feira, 30 de outubro de 2015

A floresta do fim do mundo







A floresta do fim do mundo


Neuza Machado



Eis aí o espaço da ficção traduzido como a barca de Caronte a carregar o “coração triste” de quem narra, juntamente com os “mortos” de sua história extra-sensorial. Mas não é simplesmente uma “água melancolizante”, como a de Edgar Alan Poe, que preside a obra assinalada; é antes de tudo a atormentada água do sofrimento do povo primitivo do Amazonas, aquela que marcou a gênese de sua própria realidade sócio-espiritual (do povo primitivo, bem entendido). O narrador pós-moderno, em sua ativada solidão citadina, intelectualizada e contemplativa, socialmente distanciado do viver primitivo, meditou os “rios de sangue” que compuseram a realidade histórica do Amazonas. E, pela meditação, eis aí/aqui a mitológica barca de Caronte navegando insolitamente e ficcionalmente em direção a um espaço ensoberbecido - o Manixi - e ao seu rio da morte, o Igarapé do Inferno.





“A morte está nela”, na barca de Caronte. “A água leva para bem longe, a água passa como os dias”, diz Gaston Bachelard. A água mítica de Ribamar (do ribeiro ao Oceano), o primeiro personagem-narrador, para se livrar definitivamente de sua histórica dor - “matar” a dor que o consumia -, obrigou-se a ir ao fim do mundo, daquele mundo mítico onde se localizava o Igarapé do Inferno. Eis aqui o verdadeiro embate, embate infernal, para enterrar os mortos dignamente, fossem eles índios ou brancos ou mestiços, enterrar para sempre um passado histórico desvalorizado. Oh, “terra sem história”, como disse Euclides da Cunha. Mas, Euclides da Cunha não conheceu a dor de quem mergulhou a própria “taça de prata dourada na fonte que borbulhava” e viu “ela se encher de lágrimas”, se encher de “sangue”. “Quando o coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas”, disse Gaston Bachelard. A narrativa ficcional pós-moderna, entrópica, é demonstrativa da tristeza que assolava o narrador do final do século XX, século de guerras e mortes inglórias, mas levando seus “mortos” em uma “barquinha de nada”, à moda daquele “filho” roseano, de “A terceira margem do rio”, que carregou, durante toda a sua existência, o seu velho pai/Sertão no coração.

In: O fogo da labareda da serpente (Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel)

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A PANTERA 27



A PANTERA 27

ROGEL SAMUEL

O Lama Tenpa era Khampa, nasceu no Kham,  Tibet, família de fazendeiros. Seu pai tinha iaques, cavalos e cabras.
Com a ocupação chinesa, seus pais foram  presos, depois mortos, acusados de latifundiários e, portanto, “inimigos do povo”. Sobraram ele, adolescente, a avó e uma irmã pequenina. Os três não conseguiam cuidar da fazenda, plantar, colher, alimentar os animais restantes. Os chineses confiscaram grande parte do que tiveram e do colhiam. Tempos depois morreu a avó e a irmã. Os chineses ocuparam o que sobrara. 

Ele andou até Lhasa, onde passou a participar de protestos contra a invasão chinesa. 

Numa delas foi preso.

Preso, mas nunca foi a julgamento. 

Durante a prisão apanhou muito, ficou com uma grande cicatriz na perna por causa de uma bordoada. 

Nesses anos ele recebia uma xícara de chá aguado e um momo (sem nada dentro, umas bolotas feitas de farinha e água e cozidas). Era a alimentação dos tibetanos nos presídios chineses.

Ficou preso anos. Mas um dia foi libertado sem saber por quê. Se ficasse no Tibet, iria acabar matando chineses. Seria um assassino. Resolveu tornar-se um monge. 

Como mendigo, andou, durante seis meses até Katmandhu, comendo o que lhe davam. 

Quando chegou foi ao monastério de Dazang Rinpoche, que era Khampa, e ali tomou votos.

No terceiro retiro de 3 anos, este em Pullahari,  teve um problema na coluna. Ele já andava com muita dificuldade, por causa dos longos períodos sentado. Tinha que operar. No Nepal  não faziam a cirurgia na época. Foi colocado em avião para a Índia, onde foi submetido à cirurgia e ficou tetraplégico. 

Mas aos poucos, com acupuntura, muito remédio tibetano e uma nova cirurgia na Índia, ele recuperou os movimentos da mão esquerda, depois o braço esquerdo. O lado direito permanecia paralisado, assim como as pernas.

O Lama Tenpa – muito sorridente, irradiando felicidade - me recebeu na cama, e eu lhe disse - por um intérprete - o que queria saber.

- Talvez você nunca mais a veja, respondeu ele, depois de fazer a previsão, jogando o Mô.

Voltou a jogar o Mô e disse:

- Não volte lá. Ali sua vida corre perigo. Seus inimigos o esperam, armados. Sua esposa está bem, junto com os seus.

(O Mô é uma adivinhação tibetana feita com um dado.) 

Fiquei agradecido, fiz um oferecimento, que ele respondeu com uma pequena reza.

Saí dali menos confuso. Tentei relaxar. Telefonei para Paris, assisti a um grande Puja no mosteiro Dharlam, e voltei para a França, onde me aguardavam encomendas de Madame Adele, para quem fiz um luxuoso vestido de rainha das Amazonas...

Devolvi o apartamento. Voltei a viver em hotéis variados, como forma de me esconder.  


quarta-feira, 28 de outubro de 2015

ALEGRIA



DUGPA RINPOCHÊ: PRECEITOS DE VIDA

Enfrenta a provação com o desejo de te conhecer, de te realizar. O sucesso é apanágio daquele que transforma o obstáculo em fogo de alegria, se serve dele como dum trampolim, para crescer em paixão, em amor, como o guerreiro Trungpa que entoa o seu cântico de vitória. Considera o obstáculo como um nobre e grande adversário.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O OBSTÁCULO



DUGPA RINPOCHÊ: PRECEITOS DE VIDA

O obstáculo é o espelho das tuas próprias hesitações, das tuas confusões. Utiliza o obstáculo para te esclarecer a ti próprio. A provocação do dia a dia é sempre uma lâmpada para a alma.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

SONHOS




DUGPA RINPOCHÊ: PRECEITOS DE VIDA

Quem deseja a sorte alcança-a sempre. Não deprecies nunca os teus sonhos. Deves fazer um pacto com eles. Eles são a nascente e a força inesgotável que te levarão à vitória. Atrás do obstáculo, encontra-se uma liberdade virginal, um horizonte mais vasto.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

João Cabral de Melo Neto - Tecendo a Manhã


João Cabral de Melo Neto - Tecendo a Manhã

1
Um galo sozinho não tece uma manhã: 
ele precisará sempre de outros galos. 
De um que apanhe esse grito que ele 
e o lance a outro; de um outro galo 
que apanhe o grito de um galo antes 
e o lance a outro; e de outros galos 
que com muitos outros galos se cruzem 
os fios de sol de seus gritos de galo, 
para que a manhã, desde uma teia tênue, 
se vá tecendo, entre todos os galos.

2
E se encorpando em tela, entre todos, 
se erguendo tenda, onde entrem todos, 
se entretendendo para todos, no toldo 
(a manhã) que plana livre de armação. 
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo 
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(A Educação pela Pedra)

terça-feira, 20 de outubro de 2015

ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES (reescrita)




 ROGEL SAMUEL: A HISTÓRIA DOS AMANTES (reescrita)


Nós nos despedimos na última luz de uma serena tarde do mês de maio de 1964 - vinte e um dias depois do golpe militar - e de lá partimos  para Cabo Frio onde um barco alugado nos esperava no cais do canal - entretanto choveu persistentemente durante quase toda aquela nossa viagem de lua de mel ("onda de mel", contava Val; "luz de mel", corrigia eu) e Val relatava que naquelas vagas pelo resto de nossas vidas ouviríamos aquela música da ventania nos nossos ouvidos, a chuva, e nos afogaríamos naqueles golfões do sentimento mole e maciço do fundo do mar de nós mesmos, porque era aquela sensação de claridade no meio daquela chuva no espaço do mar, naquele espaço verde por onde o barco penetrava como num labirinto selvagem, e onde nos introduzíamos num horizonte desconhecido e invisível - Val nua no convés: e assim que ainda a vejo hoje cantar aquela canção de amor daqueles heróicos tempos de mar e de vendaVals roqueiros que eu ouvia - tentando avançar com cautela por esta pormenorizada narração - e para tornar o rumo de mais seguro porto devo dizer que naquela época a situação nos colocava no pátio do paraíso que eu não divisava bem, um furo, algo significante e que tem força decisiva: porque aquela minha temporada com Val me deixava radiante, me empurrando para a glória de mim mesmo, a brisa corrente que nos trazia de volta como se lancha fosse um veleiro e nos conduzisse pelo mar - ficamos no hotel, o colo cheio dos jornais sobre o golpe, a beber um coquetel de frutas sobre as notícias, as notícias cada vez mais terríveis, mas os olhos de Val recolhiam os reflexos daquele mar com sua superioridade lunar e esmeralda, ela mais parecia uma Marilyn Monroe morena naquele tempo, dourada, a vida toda simulava ali estar em sua homenagem - e no dia seguinte de lá partimos para Búzios, a camisa branca, larga feito uma bandeira de sol luminosa, meio ávida, adejava, o tórax à mostra sobre a curva da anca suave, os homens se surpreendiam de vê-la tão loura, tão artificialmente loura e límpida que nem parecia que comigo estivera ressonando levíssima no seu leitoso perfume depois de se debater no gozo selvagem dos seus sonhos nos meus ombros durante a noite anterior: o veículo saía soprado pela mágica do vento e nós íamos para a casa de Búzios emprestada de um amigo meu - passamos velozes pela ponte do canal (Val dirigia) e ao longo da estrada litorânea se ouvia a areia da estrada de terra batida na fuselagem enquanto minha mão se introduzia por entre as suas coxas.



À tarde entramos naquele mar como se vestíssemos um verde vivo e atravessamos a luz, andamos pela rua daquele subúrbio, o bairro, silenciosos, graves, gravemente subimos o aclive, os passos, resumimos nossas conversas a um leve contato, leve toque dos dedos, ocasionais, toque rápido, cheio de emoção e felicidade. Mas a vida não, mas a vida não é um brinquedo. Não consigo saber o que se passou, as recordações recortam imagens irrecuperáveis. Tento compreender. O que acontecia naquele momento, naquele passar de sua presença inteira, fixa, na minha frente - de uma existência - o passado como tela de cinema implantado no olho da memória. A vida não pára, não parou. Não chego ao desespero, ao estranho relacionamento que tenho, hoje, com o que hoje sou. O presente aqui não é nem alegre, nem triste. Tenho de começar devagar.

     Certo dia, quando aciono, quando acordo, o teto do quarto com uma coloração rósea, a janela aberta dá para um labirinto em que o olhar ostenta mover-se, e que se vai desdobrando em abstrata claridade, a fragrância marinha emanando suave, fria, perfumada, vinda do horizonte, a janela respirava... Entrava, quase imperceptível, um som, aquele som, um murmúrio, doce, azulado, como o mar. As pessoas amigas me tinham recomendado calma. Mas eu não consigo. Lembro-me ainda das retas cruzes das ruas da cidade indiferente, vista do alto prédio, a cidade.



Foi naquela madrugada que a sentença me chegou, forte, perfeita, correta, aterradora como a de um assassino: Val me abandonava. As persianas batem, fortes, nervosas. As roupas por cima da cama, acordava eu do sonho do meu amor desfeito. O amor, como uma bala, passava de boca em boca. Se espalhava. Eu sofria a angústia, a queda. O amor é um mar. Cheiro familiar de café. Um pente um espelho. Eu penso em matar o meu sonho. Alguns homens formavam um grupo no ângulo da esquina, e ela... ah, súbita felicidade... agora nós estávamos na praça, na orla da praia eu subia até um pedestal vazio, que chegava à cabeceira do tanque retangular, e no ar abria os braços, espalmava as mãos, feliz, e ainda me consigo ver. De lá dizia, de lá me recordava de mim mesmo, eu para mim agora, a um majestoso e largo mar que soava no ar com a clara voz de Val, com todas as claras vozes daquele tempo, a aragem crescendo no meio de tudo, infiltrando-se na camisa aberta, os seios nus.

     Nada me prende mais, hoje, do que a demora do passado no momento presente, esse momento interior imensurável, onde às vezes a força dos instantes retardam os passos do passado para sempre. Às vezes, como num sonho, largo pesado sonho estirado. Os momentos são assim inteiramente vivos, inesperados. Neles me movo, me reconstruo, me recomeço. Em frente. Naquela praia nós nos largávamos na areia, era como se durante a vida toda estivéssemos ali. Na areia suave, como se as lembranças estivessem inteiramente nuas. Visto de hoje o mar, vedação alta e azul, as coisas vastas, as coisas em bloco, as coisas se dissolviam em explosões de brancas espumas, cristas, covas, límpidas cintilações coriscantes.

     Ainda estou perdido, perplexo. Ainda me movo mal nesse espaço. Ela penteia os cabelos, diante do espelho, os ombros largos. Muitos anos se passaram diante da imagem de Val, naquele espelho. Era ali, a sua viagem, a sua viagem de barco, ela, os cabelos muito soltos no convés, chovia quase todo tempo, interminável ruído da chuva, a chuva nascia da ondulação das dobras de um lençol de chuva azul, ou verde, nós riamos, recebíamos de face as espetadelas gélidas das gotas do ar.



‘Isso é tudo? Durante todo o tempo em que vivemos juntos, parece hoje, por uma misteriosa deformação mágica, que todas as tardes são a presença do seu mar, onde sempre se ouvem ondas, onde as luzes, os sóis se impunham, juvenis, um elemento, alto, magro, qual garça branca, andando atrás da pedra, do deserto, entre o carro e um adorno, uma corrente, ele se precipitava entre as coisas da memória, se encostava ao cimento do muro. Aqui, Val aqui, atrás do ciúme, conectando com o que se refere, com tudo o que...



bombas (anos depois os soldados invadem o prédio, rebentam no meio da sala cruelmente as bombas, eu procurava Valquíria entre os acontecimentos tumultuosos, estávamos encurralados ali, não conseguimos sair daquilo, não há nenhum telefone funcionando). Esse amor. Tenho de deixar sossegado? Posso iludi-lo com amenidades? Eu sempre penso em matar minha lembrança, meu passado. Ele estaria morto finalmente se eu não o estivesse revirando agora.



Depois que eu me separei de Val penso que a vida está acabada. Não podia amar o amor, aquela doença, meu relacionamento com Val, o fantasma. Eu tinha ido lá, ver o fantasma. Tinha ido até lá, a porta da cozinha em frente de onde eles se encontravam, passava a mão sobre sua cintura, mordendo-a suavemente o ventre, mas a porta ameaçou abrir, estava sendo aberta, uma prosaica chave começou a ser introduzida na fresta, seria surpreendido ali, ele, um nome, uma legenda, ele, como ainda me lembro de tudo isso? vitima de uma Val que estava em minha vida como uma alucinação, um convite ao prazer, ao mais louco prazer, em sua vida, fonte máxima, única, ela era um vivo convite à vida, a porta, os azulejos brancos, duas pias do lado da geladeira. A beleza, a beleza acompanha o tempo.


     No barco, na lua de mel, ainda chove persistente, a voz era como sempre clara e dizia que ouviriam uma certa música, sim, para não nos afogarmos naqueles golfões de sentimento maciço, mole, gosmento. Não, não nos afogaremos nesse mar, não nos afogaremos dentro do fundo de nós mesmos.

     Não no barco, esmagada, não, mas na cozinha, com Val, a eterna, a porta se abre, a polícia se apodera do que tinha sido aquela casa, eles estão fora, jogam o conteúdo fora, foram engolidos pelo silêncio? fugiram dali? Val, a ativista, a nova liberdade de viver é assim? Todo o meu empenho é vão, todo o meu empenho para que nada aconteça a ela, desde minha juventude eu assim jogo tudo, joguei tudo na mesa verde da via do destino, a vida, a família, e era ela, fugimos dali, que valia tudo diante dela? de que valia tudo isso?

     A revolução, a ditadura militar vitoriosa, nos colocava na clandestinidade. Fomos parar numa estação de trem do subúrbio, distante, onde ela morava, olhando a planície com desânimo, quase uma centena de pessoas esperava a vinda do trem. Ali mesmo, naquela zona, passavam soldados sem destino, rapazes distraídos entre gritos de vendedores de balas.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

A PANTERA 26.


A PANTERA 26.


ROGEL SAMUEL

Nas “férias” parti para Katmandhu – porque férias eram meses de verão em que não recebíamos nenhum pedido novo. 
Parti para Katmandhu, para Pullahari, onde
pretendia fazer um retiro.

O Khenpo meu amigo que me atendeu, que eu já conhecia, me recomendou um retiro de silencio de 21 dias. Mas só consegui fazer 4. A minha agitação e loucura interna aflorou e aumentou nos primeiros dias e meus fantasmas e demônios secretos e recônditos apareceram, me confrontaram e dominaram.

Em sonhos eu me via na selva, em plena guerra da guerrilha que passei, ouvindo disparos de todos os lados, tentando escapar do cerco das tropas inimigas, me arrastando pela terra úmida, pulando sobre a correnteza de um córrego na escuridão da noite para escapar.
Era a cena real que vivi e que me perseguia a vida toda porque fui o único sobrevivente da batalha daquela noite. 
Tínhamos caído numa emboscada levados por um falso guia para a morte. 
Foi terrível. 
Todos morreram. 
Eu escapei porque me perdi e me atrasei no caminho. 
Sim, cheguei atrasado para a morte. 

Pullahari era um mosteiro quase inacessível na montanha aonde tínhamos de subir a pé. 
Já na subida encontrei o primeiro obstáculo, externo, uma manada de búfalos me atacou e eu tive de me refugiar numa árvore onde fui cercado pelos animais que não sei por que me olhavam com ódio e urravam...   
Fiquei ali até que apareceu um garotinho muito pequenino que devia de ter uns dozes anos e era o pastor da manada... e com um pedacinho insignificante de vara os conduziu ladeira abaixo.

Eu já tinha estado em Pullahari anteriormente. 
Da primeira vez os monges, sabendo que eu vinha do  Amazonas, me deram um saquinho com cinzas dos restos mortais de Jamgon Kongtrul Rinpochê para jogar no grande Rio. 
Foi o que fiz, mais tarde,

No meu retiro, na solidão, e no silêncio daquela cela, eu me lembrei daquelas cinzas e de seu significado e no fato de eu ter conhecido a minha amiga Jara no rio Amazonas.

De fato eu fui para aquele lugar da floresta para não ser achado, para não ser preso, preso e torturado pelas forças policiais.

Eu já conhecia aquele lugar na floresta porque ali havia uma cabana que desapareceu, pois era de barro coberta de paxiúba. Ali não havia mosquitos, e ninguém que passasse no rio poderia me ver naquele labirinto selvagem.

Eu não devia de ter ido a Pullahari. 
Aquele mosteiro acendeu em mim a angústia de ter perdido a única mulher que amei, e que me amou, e do alto daquela montanha aos pés dos Himalaias eu decidi voltar para o lugar no Rio Negro onde a tinha perdido, onde Jara tinha desaparecido para procurá-la.

No dia da partida, contei ao Khenpo a minha decisão e ele me recomendou a antes procurar o Lama Tenpa em Boudanath que poderia me orientar no que fazer, antes de voltar ao Brasil.
Foi o que fiz.


domingo, 18 de outubro de 2015

QUEM ERA MARIA CAXINAUÁ:


QUEM ERA MARIA CAXINAUÁ:
OS ásperos, compridos cabelos ensombravam a face com a figura da morte. As pupilas eram dadas por incompreensível aura branca, um espantoso horror. Nariz aquilino, cigano. Pele bronze escuro queimado e fosco, amassado como papel. Sujo, longo vestido azul, rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se no chão como uma louca num hospício. Observada à distância, era a concentração do Ódio. De perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente. Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a Inimiga. Pois a Caxinauá é a vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele corpo. Todos os torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade européia, os saqueados, desculturados se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria Caxinauá. São raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de massas proletárias - vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá.
http://amantedasamazonas.blogspot.com.br/

LE BATEAU IVRE




le bateau ivre de rimbaud
(Trad. Augusto de Campos) 

Quando eu atravessava os Rios impassíveis, 
Senti-me libertar dos meus rebocadores. 
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis 
Os espetaram nus em postes multicores. 

Eu era indiferente à carga que trazia, 
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês. 
Morta a tripulação e finda a algaravia, 
Os Rios para mim se abriram de uma vez. 

Imerso no furor do marulho oceânico, 
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil, 
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico 
Viam turbilhonar marés de verde e anil. 



O vento abençoou minhas manhãs marítimas. 
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis 
Das ondas a rolar atrás de suas vítimas, 
Dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis! 

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos, 
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu 
E das manchas azulejantes dos venenos 
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu. 

Então eu mergulhei nas águas do poema 
Do Mar, sarcófago de estrelas, latescente, 
Devorando os azuis, onde às vezes - dilema 
Lívido - um afogado afunda lentamente; 

Onde, tingindo azulidades com quebrantos 
E ritmos lentos sob o rutilante albor, 
Mais fortes que o álcool, mas vastas que os nossos prantos, 
Fermentam de amargura as rubéolas do amor! 

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas, 
Ressacas e marés: conheço o entardecer, 
A aurora em explosão como um bando de pombas, 
E algumas vezes vi o que o homem quis ver! 

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos, 
Iluminando os longos túmulos glaciais; 
Com atrizes senis em palcos cabalísticos, 
Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais! 

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas 
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros, 
Soube a circulação das seivas suculentas 
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros! 

Por meses eu segui, tropel de vacarias 
Histéricas, o mar estuprando as areias, 
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias 
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias. 

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas 
Com olhos de jaguar florindo em epidermes 
De homens! Arco-íris tensos como bridas 
No horizonte do mar de glaucos paquidermes. 

Vi fermentarem pântanos imensos, ansas 
Onde apodrecem Liviatãs distantes! 
O desmoronamento da água nas bonanças 
E abismos a se abrir no caos, cataratantes! 

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes! 
Naufrágios abissais na tumba dos negrumes, 
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes 
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes! 

Ah! Se as crianças vissem o dourar das ondas, 
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes... 
- Espumas em flor ninaram minhas rondas 
E as brisas da ilusão me alaram por instantes. 

Mártir de pólos e de zonas misteriosas, 
O mar a soluçar cobria os meus artelhos 
Com flores fantasmais de pálidas ventosas 
E eu, como uma mulher, me punha de joelhos... 

Quase ilha a balouçar entre borras e brados 
De gralhas tagarelas com olhar de gelo, 
Eu vogava, e por minha rede os afogados 
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo. 

Mas eu, barco perdido em baías e danças, 
Lançado no ar sem pássaros pela torrente, 
De quem os Monitores e os arpões das Hansas 
Não teriam pescado o casco de água ardente; 

Livre, fumando em meio às virações inquietas, 
Eu que furava o céu violáceo como um muro 
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas, 
Líquens de sol e vômitos de azul escuro; 

Prancha louca a correr em lúnulas e faíscas 
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma, 
Quando os sóis estivais estilhaçavam em riscas 
O céu ultramarino e seus funis de bruma; 

Eu que tremia ouvindo, ao longe a estertorar, 
O cio dos Behemóts e dos Maeltroms febris, 
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar, 
Anseio pela Europa e os velhos peitoris! 

Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas 
Que o delírio dos céus desvela ao viajor; 
- É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas, 
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor? 

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras! 
Toda lua é cruel e todo sol, engano: 
O amargo amor opiou de ócios minhas horas. 
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano! 

Da Europa a água que eu quero é só o charco 
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta, 
Um menino tristonho arremesse o seu barco 
Trêmulo como a asa de uma borboleta. 

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras 
Ultrapassar das naves cheias de algodões, 
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras, 
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

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São parentes do imperador?


A família Corrêa de Faria, de Ipanema, na Zona da Mata mineira, quer resposta definitiva para uma pergunta que a atormenta há quase dois séculos. Afinal, seus membros são ou não descendentes de dom Pedro I? Eles pretendem ajuizar ação na Justiça para ter o reconhecimento oficial ou enterrar a tese de que o Barão de Itaperuna, bisavô dos irmãos Francisco, Mauro, Maria Helena e Maria Lúcia, foi fruto de uma aventura extraconjugal de dom Pedro com uma escrava chamada Faustina. 'Queremos esclarecer o assunto, pois, caso o imperador seja o pai biológico do barão, meu bisavô não será mais lembrado como um filho bastardo de Pedro I', justificou Francisco, de 62 anos. 



São parentes do imperador?

sábado, 17 de outubro de 2015

A PANTERA 25

 A PANTERA 25

ROGEL SAMUEL

Meu tio faleceu pouco depois. Foi outra imensa, grande perda. Ele me fez herdar o sítio, cujo valor não era grande coisa. Não fui ao seu sepultamente. Ele foi achado morto dias depois.

Coloquei um caseiro no sítio. Não consegui vender meu apartamento de Copacabana.
E aprendi a ser pantera, um caçador solitário, um sobrevivente.

Um dia, uma senhora, diretora da Maison Rivière, me procurou perguntando se eu poderia atender uma freguesa sua. Fui apresentado como estilista a uma senhora baixa, mal-humorada, gorda, barriguda e poderosa que tinha rejeitado todos os modelos apresentados anteriormente.
Era a Madame Adele.

Ela era a viúva de um magnata oriental, uma espécie de príncipe, que necessitava de uma roupa para um evento, o que eu desenhei na hora, e ela gostou, porque era algo que ela podia vestir com conforto e beleza, com uma capa de seda e lã em dois planos, sem nenhum enfeite, mas deslumbrante. Na realidade desenhei dois vestidos, um mais claro, outro mais escuro, e eram simplesmente notáveis (eu mesmo reconheço) e possibilitavam que ela usasse suas joias, o que certamente ela deveria de ter.
O detalhe grandioso estava na gola, uma espécie de cocar indígena franzido na própria fazenda que a “levantavam”, que a fazia maior, mais alta, além do cabelo e do salto.
Ela gostou, comprou na hora por uma fortuna, não discutiu preço, e se foi. E a equipe de costureiras num alvoroço começou a preparar as fazendas, a cortar, comigo a supervisar os detalhes.
O milagre da obra eram aquelas costureiras e bordadeiras.
Quando ela veio vestir a roupa me disse que  estava soberbo.

Foi assim que eu me tornei estilista principalmente daquela senhora, que me pagava regiamente, viúva de um dos homens mais ricos do mundo, segundo a revista Forbes. Tinha até um Banco.

Comecei na ganhar pequenas fortunas dela e de outras freguesas que ela indicava.

Asim voltei a morar na rue de Fondary, num apartamento de boa localização.

E me ocupava a minha profissão, o que me ajudava a esquecer Jara. Eu dormia e sonhava com diversas roupas, luxuosas, vestidos daquelas mulheres que me apareciam como a Rainha Vitória, a mais indígena das rainhas.

E pouco depois eu passei a desenhar também joias que deveriam ser usadas com meus vestidos, cocares de ouro e diamantes, penduricalhos espetaculares, chocalhos reluzentes.

Um dia recebi um convite para visitar um príncipe árabe. Ele queria que eu vestisse sua mulher.

- Eu lhe disse que ia pensar... - ele dobrou o preço.

- Mas o senhor vai permitir que eu a veja e toque na sua esposa?

- Com a minha presença...

E acrescentou:

- Você não vai vê-la por muito tempo, e eu quero um vestido excepcional para ela.

Depois descobri que ele era filho de Madame Adele.

Assim fiz o meu trabalho e ele me pagou regiamente. Ao chegar em Paris e atender Madame Adele que não parava de me encomendar novas roupas e de me recomendar a suas amigas soube que gostaram.

- Meu filho adorou seu trabalho, me disse ela em segredo, sussurrando no meu ouvido. E me deu um Cartier de presente.

E eu me ri, pensando no que representava.
Aquela profissão estava tomando um rumo que eu não nunca tinha pensado. Mas aumentava minha conta bancária e me permitia viver quase luxuosamente.

Depois disso, outros árabes me encomendaram roupas para esposas e concubinas. Principalmente concubinas.
Em todas eu acoplava um véu ou uma capa que podia ser usados para cobrir o rosto.
E descobri uma coisa – quanto mais luxuosos e caros os vestidos, mais eles gostavam.
Então eu ia criando roupas dignas de rainhas bordadas a ouro sobre sedas raras, com pássaros e flores exóticos e até um largo bracelete de ametistas e brilhantes que ficou famoso pela beleza e... pelo preço.
A criança costureira que fui aos pés de minha mãe agora amadurecia.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

pássaro

PÁSSARO



pássaro 


meus dedos de aço
passam na plumagem
luminoso pássaro
imerso na paisagem
em minha cor e casa
e ponho-o no meu lago
um pincel usado
pinço-o com cuidado
ramagem extraordinária
forma de uma flor
ou como um piano
como um belo plano
bebo seu licor
e forço a sua entrada
dou-lhe vida e cor 

ROGEL SAMUEL

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Os Assassinos, de Ernest Hemingway




Os Assassinos, de Ernest Hemingway




A porta do restaurante “do Henry” se abriu e entraram dois homens que se sentaram ao balcão.

— O que vão pedir? — perguntou-lhes George.
— Não sei. — disse um deles —. O que você quer comer, Al?
— Como vou saber? — respondeu Al — Não sei.

Lá fora estava escurecendo. As luzes da rua entravam pela janela. Os dois homens liam o menu. Do outro extremo do balcão, Nick Adams, que tinha estado conversando com George quando eles entraram, observava-os.

— Eu vou pedir costeletas de porco com molho de maçãs e purê de batatas. — disse o primeiro.
— Ainda não está preparado.
— Então por que diabos o põem no cardápio?
— Esse é o jantar. — explicou-lhe George — Pode-se pedir a partir das seis.

George olhou o relógio na parede detrás do balcão.

— São cinco horas.
— O relógio marca cinco e vinte. — disse o segundo homem.
— Adianta vinte minutos.
— Ora, dane-se o relógio. — exclamou o primeiro — O que tem para comer?
— Posso lhes oferecer qualquer variedade de sanduíche, — disse George — presunto com ovos, toucinho com ovos, fígado e toucinho, ou um bife.
— Para mim, suprema de frango com ervilhas e molho branco e purê de batatas.
— Esse é o jantar.
— Será possível que tudo o que pedimos seja o jantar?
— Posso lhes oferecer presunto com ovos, toucinho com ovos, fígado...
— Presunto com ovos — disse o que se chamava Al. Vestia um chapéu de feltro e um sobretudo preto abotoado. Sua face era branca e pequena, seus lábios estreitos. Levava um cachecol de seda e luvas.
— Me dê toucinho com ovos. — disse o outro. Era mais ou menos da mesma estatura que Al. Embora de rosto não se parecessem, vestiam-se como gêmeos. Ambos usavam sobretudos muito justos para eles. Estavam sentados, inclinados para frente, com os cotovelos sobre o balcão.
— Há algo para beber? — perguntou Al.
— Refrigerante de gengibre, cerveja sem álcool, e outros refrigerantes. — enumerou George.
— Diga se tem algo para beber.
— Só o que nomeei.
— É um povo caloroso este, não? — disse o outro — Como se chama?
— Summit.
— Alguma vez ouviu falar nele? — perguntou Al a seu amigo.
— Não — respondeu-lhe este.
— O que se faz aqui à noite? — perguntou Al.
— Janta—se. — disse seu amigo — Vem-se para cá e janta-se muito bem.
— É isso mesmo. — disse George.
— Então acredita que é isso mesmo? — Al perguntou a George.
— Certamente.
— Então é um menino esperto, não é?
— Certamente. — respondeu George.
— Pois não é. — disse o outro homenzinho — Não é mesmo, Al?
— Ficou mudo. — disse Al. Girou para Nick e lhe perguntou: — Como se chama?
— Adams.
— Outro menino esperto — disse Al — Não é, Max, que ele é esperto?
— O povo está cheio de meninos espertos — respondeu Max.

George pôs as duas bandejas, uma de presunto com ovos e a outra de toucinho com ovos, sobre o balcão. Também trouxe dois pratos de batatas fritas e fechou a portinhola da cozinha.

— Qual é o seu? — perguntou a Al.
— Não se lembra?
— Presunto com ovos.
— Que menino esperto — disse Max. Aproximou-se e pegou o presunto com ovos. Ambos comiam com as luvas postas. George os observava.
— O que está olhando? — disse Max, observando George.
— Nada.
— Como nada? Estava me olhando.
— De repente, o fazia por brincadeira, Max. — interveio Al.

George riu.

— Você não ria. — cortou-o Max — Não têm nada do que rir, entende?
— Está bem — disse George.
— Então acha que está bem? — Max olhou Al — Pensa que está bem. Pois sim, que está bem.
— Ah, ele acha. — disse Al. Seguiram comendo.
— Como se chama o menino esperto que está na ponta do balcão? — perguntou Al a Max.
— Hei, menino esperto, — Max chamou Nick — vá com seu amigo do outro lado do balcão.
— Por? — perguntou Nick.
— Porque sim.
— Melhor que passe para o outro lado, menino esperto — disse Al. Nick passou para o outro lado do balcão.
— O que vão fazer? — perguntou George.
— Nada que o interesse. — respondeu Al — Quem está na cozinha?
— O negro.
— O negro? Como o negro?
— O negro que cozinha.
— Diga que venha.
— O que vão fazer?
— Diga que venha.
— Onde pensam que estão?
— Sabemos muito bem onde estamos. — disse o que se chamava Max — Parecemos tolos, por acaso?
— Por dizer isso, pareceria que sim. — disse-lhe Al — Por que têm que discutir com este menino? — e então disse a George — Escute, diga ao negro que venha para cá.
— O que vão lhe fazer?
— Nada. Pense um pouco, menino esperto. O que faríamos a um negro?

George abriu a portinhola da cozinha e chamou: — Sam, venha um minutinho.

O negro abriu a porta da cozinha e saiu.

— O que há? — perguntou. Os dois homens o olharam do balcão.
— Muito bem, negro. — disse Al — Fique aí.

O negro Sam, com o avental posto, olhou os homens sentados ao balcão: — Sim, senhor. — disse. Al desceu de seu assento.

— Vou à cozinha com o negro e o menino esperto. — disse — Volte à cozinha, negro. Você também, menino esperto.

O homenzinho entrou na cozinha depois de Nick e Sam, o cozinheiro. A porta se fechou atrás deles. O que se chamava Max se sentou ao balcão em frente a George. Não olhava George a não ser pelo espelho que havia atrás do balcão. Antes de ser um restaurante, o “do Henry” tinha sido um botequim.

— Bom, menino esperto. — disse Max com a vista no espelho — Por que não diz algo?
— Do que se trata tudo isto?
— Hei, Al. — gritou Max — Este menino esperto aqui quer saber do que se trata tudo isto.
— Por que não lhe conta? — ouviu-se a voz do da cozinha.
— Do que acredita que se trata?
— Não sei.
— O que acha?

Enquanto falava, Max olhava todo o tempo o espelho.

— Não o diria.
— Hei, Al, o menino esperto aqui diz que não diria o que pensa.
— Está bem, posso ouvir. — disse Al da cozinha, que com uma garrafa de ketchup mantinha aberta a portinhola pela qual se passavam os pratos — Me escute, menino esperto, — disse a George da cozinha — se afaste do balcão. Você, Max, vá um pouquinho à esquerda. — parecia um fotógrafo dando indicações para uma tomada de grupo.

—Diga-me, menino esperto. — disse Max — O que pensa que vai acontecer?

George não respondeu.

— Eu vou contar. — seguiu Max — Vamos matar um sueco. Conhece um sueco grandão que se chama Ole Andreson?
— Sim.
— Deve comer aqui todas as noites, não é?
— Às vezes.
— Às seis em ponto, não é?
— Se vier.
— Já sabemos, menino esperto. — disse Max — Falemos de outra coisa. Vai ao cinema?
— De vez em quando.
— Devia ir mais seguido. Para alguém tão esperto como você, é bom ir ao cinema.
— Por que vão matar Ole Andreson? O que lhes fez?
— Nunca teve a oportunidade de nos fazer algo. Jamais nos viu.
— E vai nos ver uma só vez. — disse Al da cozinha.
— Então por que vão mata-lo? — perguntou George.
— Fazemos isso por um amigo. É um favor, menino esperto.
— Cale-se. — disse Al da cozinha — Falam demais.
— Bom, tenho que divertir o menino esperto, não é, menino esperto?
— Falam demais. — disse Al — O negro e meu menino esperto se divertem sozinhos. Tenho-os atados como um casal de amigas no convento.
— Tenho que supor que esteve em um convento?
— A gente nunca sabe.
— Em um convento judeu. Aí você esteve.

George olhou o relógio.

— Se vier alguém, diga que o cozinheiro saiu, se depois disso ficar, diga que você cozinha. Entendeu, menino esperto?
— Sim. — disse George — O que nos farão depois?
— Depende. — respondeu Max — Essa é uma das coisas que nunca se sabe no momento.

George olhou o relógio. Eram seis e quinze. A porta de rua se abriu e entrou um condutor de bondes.

— Olá, George. — saudou — Servem-me o jantar?
— Sam saiu — disse George — Voltará em torno de uma hora e meia.
— Melhor eu ir à outra quadra. — disse o chofer. George olhou o relógio. Eram seis e vinte.
— Esteve bem, menino esperto — disse-lhe Max — É um verdadeiro cavalheiro.
— Sabia que lhe voaria a cabeça — disse Al da cozinha.
— Não, — disse Max — não é isso. O que acontece é que é simpático. Eu gosto do menino esperto.

Às cinco para as sete, George falou: — Não vem mais.

Outras duas pessoas tinham entrado no restaurante. Em uma oportunidade George foi à cozinha e preparou um sanduíche de presunto com ovos “para levar”, como tinha pedido o cliente. Na cozinha viu Al, com seu chapéu de feltro para trás, sentado em um banco junto à portinhola com o cilindro de uma arma apoiado em uma saliência. Nick e o cozinheiro estavam amarrados costas com costas, com toalhas em suas bocas. George preparou o pedido, envolveu-o em papel manteiga, o pôs em uma sacola e o entregou, o cliente pagou e saiu.

— O menino esperto pode fazer de tudo. — disse Max — Cozinha e faz de tudo. Faria de alguma garota uma linda esposa, menino esperto.
— Sim? — disse George — Seu amigo, Ole Andreson, não vai vir.
— Vamos dar outros dez minutos — respondeu Max.

Max olhou o espelho e o relógio. Os ponteiros marcavam sete em ponto, e então sete e cinco.

— Vamos, Al — disse Max — Melhor sairmos daqui. Não vem mais.
— Melhor esperamos outros cinco minutos — disse Al da cozinha.

Nesse meio tempo entrou um homem, e George lhe explicou que o cozinheiro estava doente.

— Por que diabos não conseguem outro cozinheiro? — repreendeu-o o homem — Por acaso isto não é um restaurante? — então partiu.
— Vamos, Al. — insistiu Max.
— O que fazemos com os dois meninos espertos e o negro?
— Não vai haver problemas com eles.
— Tem certeza?
— Sim, já não temos nada que fazer por aqui.
— Eu não gosto nada disso — disse Al — É imprudente, você fala demais.
— Ah, Qual é o problema? — replicou Max — Temos que nos entreter de algum jeito, não é?
— Mesmo assim, falam demais — insistiu Al. Saiu da cozinha, a arma lhe formava um ligeiro volume na cintura, sob o sobretudo muito ajustado que ajeitou com suas mãos enluvadas.
— Adeus, menino esperto — disse a George — Na verdade, teve sorte.
— Com certeza. — adicionou Max — Deveria apostar em corridas, menino esperto.

Os dois homens se retiraram. George, através da janela, viu-os passar sob o poste da esquina e cruzar a rua. Com seus sobretudos ajustados e esses chapéus de feltro pareciam dois artistas de variedades. George voltou para a cozinha e desatou Nick e o cozinheiro.

— Não quero que isso volte a me acontecer. — disse Sam — Não quero que volte a me acontecer.

Nick se levantou. Nunca antes tinha tido uma toalha em sua boca.

— Que diabos...? — disse pretendendo segurança.
— Queriam matar Ole Andreson — contou-lhes George — O matariam com um tiro nem bem entrasse para comer.
— Ole Andreson?
— Sim, ele.

O cozinheiro apalpou os cantos da boca com os polegares.

— Já foram? — perguntou.
— Sim, — respondeu George — já se foram.
— Eu não gosto. — disse o cozinheiro — Eu não gosto nada disso.
— Escutem — George se dirigiu a Nick — Tenho que ir ver Ole Andreson.
— Está bem.
— Melhor que não tenha nada que ver com isso. — sugeriu-lhe Sam, o cozinheiro — Não convém se intrometer.
— Se não quiserem não venham. — disse George.
— Não vai ganhar nada se envolvendo nisso. — seguiu o cozinheiro — Mantenha-se à distância.
— Vou vê-lo. — disse Nick — Onde vive?

O cozinheiro se afastou.

— Os jovens sempre sabem o que querem fazer. — disse.
— Vive na pensão Hirsch. — George informou a Nick.
— Vou para lá.

Lá fora, as luzes da rua brilhavam por entre os ramos de uma árvore nua de folhas. Nick caminhou pela beira do meio-fio e perto do poste de luz seguinte tomou uma rua lateral. A pensão Hirsch se achava a três casas. Nick subiu os degraus e tocou a campainha. Uma mulher apareceu na entrada.

— Ole Andreson está?
— Quer vê-lo?
— Sim, se estiver.

Nick seguiu a mulher até um patamar da escada e então ao final de um corredor. Ela bateu na porta.

— Quem é?
— Alguém que vem a vê-lo, Sr. Andreson — respondeu a mulher.
— Sou Nick Adams.
— Entre.

Nick abriu a porta e ingressou no quarto. Ole Andreson jazia na cama com a roupa posta. Tinha sido um boxeador peso pesado e a cama ficava pequena. Estava deitado com a cabeça sobre dois travesseiros. Não olhou Nick.

— O que aconteceu? — perguntou.
— Estava no “do Henry”, — começou Nick — quando dois tipos entraram e ataram a mim e ao cozinheiro, disseram que foram mata-lo.

Soou idiota dizê-lo. Ole Andreson não disse nada.

— Colocaram-nos na cozinha — continuou Nick — disparariam logo que entrasse para jantar.

Ole Andreson olhou a parede e seguiu sem dizer uma palavra.

— George acreditou que o melhor era que eu viesse e lhe contasse.
— Não há nada que eu possa fazer — Ole Andreson disse finalmente.
— Vou lhe dizer como eram.
— Não quero saber como eram — disse Ole Andreson. Voltou a olhar para a parede — Obrigado por vir me avisar.
— Não é nada.

Nick olhou o grandalhão que jazia na cama.

— Não quer que vá à polícia?
— Não. — disse Ole Andreson — Não seria uma boa ideia.
— Não há nada que eu possa fazer?
— Não. Não há nada a fazer.
— Talvez não o dissessem a sério.
— Não. Falavam sério.

Ole Andreson voltou-se para a parede.

— O que acontece — disse-lhe falando com a parede — é que não me decido a sair. Fiquei todo o dia aqui.
— Não poderia escapar da cidade?
— Não — disse Ole Andreson — Estou farto de escapar.

Seguia olhando a parede.

— Já não há nada a fazer.
— Não tem nenhuma maneira de solucioná-lo?
— Não. Equivoquei-me. — seguia falando monotonamente — Não há nada a fazer. Dentro de um momento vou me decidir a sair.
— Melhor voltar para o “do Henry”. — disse Nick.
— Tchau. — disse Ole Andreson sem olhar para Nick — Obrigado por vir.

Nick se retirou. Enquanto fechava a porta viu Ole Andreson totalmente vestido, atirado na cama e olhando a parede.

— Esteve todo o dia em seu quarto. — disse-lhe a encarregada quando ele desceu as escadas — Não deve sentir-se bem. Eu lhe disse: “Senhor Andreson, deveria sair para caminhar em um dia outonal tão lindo como este”, mas não tinha vontade.
— Não quer sair.
— Que pena que se sente mal. — disse a mulher — É um homem muito bom. Foi boxeador, sabia?
— Sim, já sabia.
— Não se perceberia a não ser por sua cara. — disse a mulher. Estavam junto à porta principal — É tão amável.
— Bom, boa noite, Sra. Hirsch. — saudou Nick.
— Eu não sou a Sra. Hirsch. — disse a mulher — Ela é a proprietária. Eu me encarrego do lugar. Eu sou a Sra. Bell.
— Bom, boa noite, Sra. Bell. — disse Nick.
— Boa noite. — disse a mulher.

Nick caminhou pela vereda às escuras até a luz da esquina, e então pela rua até o restaurante. George estava lá, atrás do balcão.

— Viu Ole?
— Sim. — respondeu Nick — Está em seu quarto e não vai sair.

O cozinheiro, para ouvir a voz de Nick, abriu a porta da cozinha.

— Não quero ouvir nada. — disse e voltou a fechar a porta da cozinha.
— Contou-lhe o que aconteceu? — perguntou George.
— Sim. Contei-lhe, mas ele já sabe do que se trata.
— O que vai fazer?
— Nada.
— Vão mata-lo.
— Suponho que sim.
— Deve ter se metido em alguma confusão em Chicago.
— Suponho. — disse Nick.
— É terrível.
— Horrível. — disse Nick.

Ficaram calados. George se agachou para procurar um pano de prato e limpou o balcão.

— Pergunto-me o que terá feito — disse Nick.
— Deve ter traído alguém. Por isso os matam.
— Vou sair daqui. — disse Nick.
— Sim — disse George — É o melhor que pode fazer.
— Não suporto pensar nele esperando em seu quarto sabendo o que lhe vai acontecer. É realmente horrível.
— Bom. — disse George — Melhor parar de pensar nisso.


Publicado no livro “Contos de Ernest Hemingway”, editora Bertrand Brasil, tradução de Enio Silveira.