quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Interpretar a Divina Comédia?




Rogel Samuel

Escreveu Otto Maria Carpeaux: “O próprio Dante distinguiu quatro níveis de interpretação e compreensão do poema: o sentido literal e histórico; o sentido alegórico e tipológico; o sentido topológico ou moral;e, enfim, o sentido analógico ou místico. Mas será este último jamais acessível a nós mortais?” (“Meu Dante”). Mas creio que o grande poema não necessita de interpretação, nem classificação. Basta-se a si próprio. Ou melhor, seu melhor sentido é “veja-me”, “eis-me”. Ou seja: “leia-me”. O poema máximo diz:”Veja como sou bem construído, perfeito”, pois Dante é muito bom de ler, afinal ele conta algo, uma estória, tem um “enredo”, é um livro de viagem, uma viagem fantástica, extraordinária, em versos de certo modo claros, bons de ler, onde se vai a algum lugar, a um certo fim, a uma finalidade, onde se espera chegar em paz, talvez à morte, ou ao eterno, pois vida é uma vereda perigosa, onde os rochedos desabam, desmoronam (...e poucos, só poucos podem dizer no fim: “e ao brilho caminhamos das estrelas”), e esta estranha estrada não diz aonde leva, aonde vai, nem que:

Se prosseguir agora vos apraz,
passai por esta grota, onde se abriu
uma vereda, e chegareis em paz.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

LUA



FOI NUMA NOITE EM SETEMBRO (ROGEL SAMUEL)



foi numa noite em setembro 
que apareceu a tal lua 
os lábios naquela água 
o corpo dado aos amantes 
amantes não sabem nada 
que há tempos não se via 
a gargalhada menina 
da lua de rica rima 
poetas que não se fiem 
poetas nada sabem 
que é até mesmo uma pena 
que esta caneta tão prima 
não seja feita mais fina 
como ponta de punhal


lua (rogel samuel)



hoje em lua cheia 
lua de setembro, plena 
no meu lago vc aparece
No pátio, o luar 
passeia no silêncio 
do gato

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

noite de sedas, noites de segredos (rogel samuel)




noite de sedas, noites de segredos
noite de cartas, de telefonemas
de amplos laços esgarçados
noite de fogos, de revelações
soube trazer na noite os mesmos passos
soube fazer naquela mesma taça
velha taça de prata familiar
o sonho o resumo o aparecer na planície
entre o branco das sedas e o azul deserto
quando a praia se abre em grandes constelações
em grandes flores-palácio
e escrito está na glória das belezas
o teu sorriso claro das estrelas plenas
noite de sedas, noite de surpresas 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

VARANDA DE PÁSSAROS DE JORGE TUFIC

OH, ABRE ALAS, PARA O CARNAVAL ...



OH, ABRE ALAS, PARA O CARNAVAL ...


Rogel Samuel

«Oh abre alas, que eu quero passar!...»  A lembrança mais antiga, a do carnaval de rua. Levavam cadeiras de casa para ver o desfile. Na Avenida. Nada de escola de samba. Blocos, carros, sem alegorias, só fantasias. Só alegria. Serpentinas, confetes coloridos. Muita lança-perfume. De vidro, de metal. Grandes, médias, pequenas. «Oh abre alas, que eu quero passar!...»  A Camélia, enorme boneca, passava. Saía do Olímpico. Pandeiros. No baile chic, ou de classe-média. Os ricaços da época tinham seu carnaval no Club, no Municipal, no Copa, classes sociais, distintas. Castas. O carnaval dos pobres não era ali. Pobre, pacífico no cotidiano, quando bebe quer brigar. Briga de morte. Basta uma gracinha para a sua «dama», sai morte, facadas, escopetadas, tiros. O álcool libera a morte, animal feroz. No dia seguinte,   

Acorda Maria Bonita 
Levanta, vem fazer o café, 
Que o dia já vem raiando 
E a polícia já está de pé

Assistimos à passagem do carnaval-alegria para o carnaval-espetáculo. Carnaval-mercadoria. Mecanizado. A degradante comercialização da arte do carnaval-bum-bum. A vendibilidade, dessacralização do popular. No carnaval as mulheres eram mais belas nas cabeças dos cabras embriagados: 
Se você fosse sincera, 
Ô ô ô ô, Aurora 
Veja só que bom que era, 
Ô ô ô ô, Aurora 
Um lindo apartamento 
Com porteiro e elevador 
E ar refrigerado 
Para os dias de calor 
Madame antes do nome 
Você teria agora 
Ô ô ô ô, Aurora... 

O carnaval do Rio na Rio Branco. Vinha da Central, descia a Presidente Vargas e terminava na Cinelândia. Ou melhor, terminava no Aterro, o dia nascendo, grande banho de mar à fantasia na praia do Flamengo. O Aterro, na madrugada, vivia o verdadeiro Carnaval, a orgia do Carnaval, liberado, reinando Baco. Não era iluminado, como agora. Agora predomina o mau-gosto, o grosseiro, a música automática da cultura de massa carnavalizada.

Bom era ver a descida do Salgueiro, do morro até a Saens Peña. Aquela majestade salgueirense, cantava: 

Apesar
de não possuir grande beleza
Chica da Silva
surgiu no seio
da mais alta nobreza
O contratador
João Fernandes de Oliveira
a comprou
para ser a sua companheira
E a mulata que era escrava
sentiu forte transformação
trocando o gemido da senzala
Pela fidalguia do salão

Talvez o mais belo samba-enredo de escola de samba de todos os tempos. Saiu da genialidade de Noel Rosa de Oliveira e Anescarzinho, em 1963. A fantasia de Chica, usada por Isabel Valença, custou um milhão e trezentos mil. Tinha uma cauda de sete metros. As anáguas precisaram de armação de aço. A peruca media um metro e dez centímetros de altura. Ornada de pérolas. O Salgueiro investiu 40 milhões e 200 mil cruzeiros. Governo Lacerda. O enredo teve a colaboração de Joãozinho Trinta, a convite de Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona. Foi seu primeiro trabalho. 

Eu sou da lira
Não posso negar

Rosa de Ouro
é quem vai ganhar

Os novos sambas-enredo seguem o molde morto do que já é aceito. O carnaval-espetáculo, belo,  de rua, sucumbe ao excesso de luzes, de refletores, dos olhos das TVS.  Sucumbe à busca da fama, um fantasma, contrário á beleza do anonimato  singelo da arte popular. Da arte do tempo árabe dos Bailes no Sírio e Libanês.

Atravessamos
o Deserto do Saara
O sol estava quente
E queimou a nossa cara


Sim, gloriosa, Emilinha Borba, cantando, do mestre Braguinha, o hino do existencialismo: 
Chiquita bacana 
Lá da Martinica 
Se veste com uma casca 
De banana nanica 
Não usa vestido 
Não usa calção 
Inverno pra ela 
É pleno verão 
Existencialista 
Com toda razão 
Só faz o que manda 
O seu coração 

O carnaval nasceu do culto da dança coletiva. Liberdade em expansão, é nele que um povo se exprime. Emilinha era rainha do povo, heroína de uma consciência social aceita. Ele era linguagem da liberdade de uma opressão de canais de comunicação sentimental, imagem social. No carnaval se ouvia cantar:
Se a canoa não virar 
Olê-olê-olá 
Eu chego lá 
Rema, rema, rema, remador 
Quero ver depressa o meu amor 
Se eu chegar depois do sol raiar 
Ela bota outro em meu lugar 

Era a disposição irreverente que responde à realidade, desde «Oh abre alas, que eu quero passar!...», ate «é hoje só, amanhã não tem mais».

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A PANTERA 24



A PANTERA 24

ROGEL SAMUEL



Não mais vi Jara. Gastei muito pagando expedições no Amazonas em busca da desaparecida. Aquilo começava a chamar atenção da mídia e era falado em Manaus.

Sem Jara, fiquei em Paris no fundo da mais sombria noite de grande depressão. 

Continuei meu curso de costura na “Ecole” e já fazia pequenos trabalhos em diversos ateliers  além de dar aula na própria escola. Era fácil desenhar e costurar roupas para aquelas modelos altas e magras. Difícil era fazer o que eu fazia, trabalhar com senhoras de meia idade, ou mesmo idosas, algumas gordas e barrigudas como as freguesas de minha mãe. Mas eu conseguia que elas se sentissem elegantes. Sabia realizar aquele milagre. Era o que eu ensinava na escola, uns truques, com poucos alunos. Mas aquelas senhoras milionárias podiam pagar o trabalho de um estilista de alta costura.

A minha especialidade foi logo reconhecida.

Eu não era um novato, vinha de longe, e a escola reconhecia logo quem sabia fazer o difícil, os melhores em cada especialidade. E nisso era eu um consumado mestre.



Então compreendi havia algo em Jara que sempre dizia - sou livre, sou um animal selvagem, um caçador solitário da floresta.

Sim, Jara era livre, uma solitária pantera.

Mas eu quase morto, no fundo de mim algo morrera para sempre. O meu âmago chorava diariamente.

Mas resolvi esquecê-la, apesar de procurá-la pelo telefone. Depois, nem isso. A pantera é um animal solitário. Ninguém alcança no fundo da noite. Eu sabia disso.

Toquei minha vida. Sempre fui um sobrevivente, um guerrilheiro.

Não mais vivia às custas do dinheiro dela, que tinha acabado. Comecei a ganhar alguma coisa  como professor, estilista, costureiro.

Passava a gozar meus instantes. Vivia modestamente. Tomava o café de manhã em casa, ia para as aulas na Escola. Voltava para casa. Dava aulas noturnas. Lia até bem tarde. Era o meu cotidiano.

Apesar do trabalho, vi que meu dinheiro era pouco. Paris é uma cidade cara. Comecei a pensar em morar num quarto no subúrbio.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

balada para todo amor


balada para todo amor


rogel samuel


todo amor é assim, plágio 
cópia de cópia de si, no mesmo 
sim na sua visibilidade 
no seu sexo. Porque todo amor 
é aquela alegre repetição 
doença de sonho e de tensão 
acontecimento que tanto faz 
se desfaz. De que não posso 
dizer o que quero, ou o que vale 
nem mesmo vale a pena 
[O amor, seu troco.] 
O caro, o espaço, o caroço 
o que sobra o que falta e o falho. 
Todo amor falece. Não cresce. 
Não é o que se espera. 
Dele nada sobra. Além do gozo. 
Da calma, da cama, do colo 
da palavra: só as notas altas 
o cantam. As baladas mais. 
A exultação mais plena. 
Pois todo amor é outra vez 
o mesmo amor. É sempre. É pouco. 
E só se estabelece quando 
impossivelmente fala a falta 
do tolo amor, que já é lembrança 
excessiva. Que todo amor costura 
um tédio. E tem a surpresa da morte. 
Somos suas presas em suas levezas. 
Corre o fundo tempo por seus lodos 
mostra a sua sede à noite morta. 
Quem me crê sabe o que digo: 
o amor já vem perdido, pois perder-se 
é o destino amante. Dele vem logo 
o mote o trote o corte a espada 
que o amor tem em seus dentes 
pois sua loucura é o nada.
[Em 14 de maio de 2.000]

KONCHOK CHIDU


segunda-feira, 14 de setembro de 2015

domingo, 13 de setembro de 2015

LEILA JALUL


LEIA O LIVRO DE LEILA JALUL CLICANDO AQUI

ROTEIRO DA TAPAJÓS



ROTEIRO DA TAPAJÓS

Afonso de Carvalho


Se voce der uma espiada na praça de Sao Sebastiao, principalmente acontecendo isto em noite de lua, voce poderá ver que ela deve ter sido uma praça bonita, no tempo em que esta era uma cidade risonha. Nao vamos falar aqui a respeito da noite, porque Manaus, toda ela, e uma cidade horrivel quando o sol se vai e é possivel que voce nem possa encontrar as praças e as ruas que nela existem, porque estao escuras, sujas, maltratadas, feias. A ausência da luz é sentida nessas ocasioes, a boa lua dos namorados, a lua dos que teimam em ser notivagos, e dos poetas, que ainda existem. Sao Sebastiao, deve ser dito, é uma praça amada. Ostenta o lindo monumento de bronze, as calçadas carijós e a igreja do santo, que foi capitao e foi martir, porque preferiu flcar do lado dos perseguidos, traindo a Cesar, de quem recebia soldo. Mas aqui, como o assunto nao é bem a praça, e quero me referir a rua que nasce dela, falarei nao só da igreja como tambem da mercearia de seu Manuel, que fica na outra esquina, para depois contar o caso em miudos, como é meu desejo assim fazer. A igreja de Sao Sebastiao, que é a nossa paróquia, ao que sei dela, foi construida por um frei Jesualdo Machetti. Na entrada, do lado direito, voce vera que tem uma placa de marmore e nessa placa, alem do nome do frei, há uma data em algarismos romanos: MDCCCLXXVIII, que uma pessoa entendida me contou que, traduzida para o nosso conhecimento, quer dizer 1878. A igreja pertence aos capuchinhos e todos os domingos la estamos, ouvindo a missa, quando frei Jose faz uma pregaçaozinha que ninguem entende, va1endo pela intençao. Tem pelas paredes murais de De Angelis e penso que São Sebastiao nao sera a única igreja da terra que possue vitrais. Frei Jose é um grande trabalhador e nesta condiçao deve ter visto o nascimento da rua dos Tapajos, que, como disse, nasce na igreja dele. Sou um tapajó, sabeis. Falo hoje dos tapajós e do que existe de bom na taba deles. Seu Manuel, no canto, vende sorvetes e aperitivos, trabalhando, ele me disse, 18 horas por dia. Um portugues simpatico, de cara alegre.Se ficar rico, que ninguem se admire. Sua mercearia é frequentada e seu Manuel sabe ser comerciante. Diz gracinhas para as domesticas das cadernetas, possue um jipe da marca Wills, e assim vai levando. Seu Manuel é homem respeitado na rua Tapajos, sua mercearia tem fama na redondeza, o que é merecido, sem duvida. Aqui, no fundo da igreja é a residencia dos capuchinhos e mais adiante, se voce for subindo, encontrara a Delegacia de Saude Federa1, confrontando a outra mercearia, que tem como dono um outro portugues, o sr. Monteiro. Deste lado esta o Luso, que apesar de ser "Sporting Clube" exibe apenas Pastorinhas e promove bailes retumbantes em datas certas do ano. As Pastorinhas do Luso sao famosas e dos bailes nem é bom falar. Animadíssimos, os soalho treme e a orquestra pode nao ser um primor, mas que ajuda, ajuda. No numero 154 moro eu, um dos tapajós mais antigos da taba. Com portas para a rua, de noite as cadeiras vão para a calçada e fica-se vendo as proesas da Tereca (é a gata).

(Vozes azuis. Manaus, Sérgio Cardoso, 1956). 

HOMERO - ILÍADA - Trad. MANOEL ODORICO MENDES





Imagem de ODORICO MENDES (São Luís do Maranhão, 24 de Janeiro de 1799 — Londres, 17 de Agosto de 1864).



LIVRO I.


Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles
A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orco lançou mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mirmidon divino.
Nume há que os malquistasse? O que o Supremo
Teve em Latona. Infenso um letal morbo
No campo ateia; o povo perecia,
Só porque o rei desacatara a Crises.
Com ricos dons remir viera a filha
Aos alados baixéis, nas mãos o cetro
E a do certeiro Apolo ínfula sacra.
Ora e aos irmãos potentes mais se humilha:
“Atridas, vós Aqueus de fina greva,
Raso o muro Priâmeo, assim regresso
Vos dêem feliz do Olimpo os moradores!
Peço a minha Criseida, eis seu resgate;
Reverentes à prole do Tonante,
Ao Longe-vibrador, soltai-me a filha.”
Que, aceito o preço esplêndido, se acate
O sacerdote murmuraram todos;
Mas desprouve a Agamemnon, que o doesta
E expele duro: “Em cerco às naus bojudas
Não me apareças mais, quer ouses, velho,
Deter-te ou retornar; nem áureo cetro,
Nem ínfula do deus quiçá te valha.
Nunca a libertarei, té que envelheça
Fora da pátria, em meu palácio de Argos
A urdir-me teias e a compor meu leito.
Sai, não me irrites, se te queres salvo.”
Taciturno o ancião treme e obedece,
Busca as do mar flutissonantes praias.
Ao que pariu pulcrícoma Latona
Afastando-se impreca: “Arcitenente,
Ouve, Esminteu, que Tênedos enfreias,
Crisa proteges e a divina Cila,
Se de festões colguei teu santuário,
Se de cabras e touros coxas pingues
Te hei queimado, compraze-me os desejos,
A tiros teus meu choro os Dânaos paguem.”
Febo, a tais preces, arco e aljava cruza,
Do vértice do céu baixa iracundo;
Vem semelhante à noite, e a cada passo
Tinem-lhe ao ombro as frechas. Ante a frota
Suspenso, a farpa do carcás descaixa,
Terrível o arco argênteo estala e zune:
Moles primeiramente a cães e a mulos,
Depois com vira acerba ataca os homens,
De cadáveres sempre a arder fogueiras.
As tropas dias nove asseteadas,
Ao décimo as convida e ajunta Aquiles;
Inspiração da bracinívea Juno,
Que seus Dânaos morrer cuidosa via.
Ele, em pinha o congresso, velocípede
Se alça e diz: “A escaparmos, julgo, Atrida,
Retrocedermos errabundos cabe:
Peste os nossos consome e os ceifa a guerra.
Eia, adivinho, arúspice, ou de sonhos
(Jove os envia) conjector se inquira,
Que explique a ofensa do agastado Febo:
Se a votos e hecatombes lhe faltamos;
Se, para desarmar-se, olor de assados
Cordeiros nos reclama e nédias cabras.”
A seu lugar tornou. De áugures mestre,
No passado e presente e porvir sábio,
Surgiu Calcas Testórides, que a Tróia
Por influxos de Apolo as naus guiara,
E concionando exordiou prudente:
“Mandas-me, ó caro a Júpiter, o agravo
Do grã frecheiro expor. Aqui prometas
Com braço e voz cobrir-me: o fel eu temo
Do amplo-reinante que domina os Graios;
E ao fraco se um monarca ódio concebe,
Cose-o e concentra, enquanto o não sacia.
Tu me assegura.” — “Afouto, brada Aquiles,
Vaticina. Por Febo, a Jove grato,
A quem rogas e oráculos te ensina,
Nenhum, desfrute eu vivo o térreo aspecto,
Nenhum violentas mãos te porá, Calcas;


ULISSES, REIZINHO E BRUCUTU



ULISSES, REIZINHO E BRUCUTU


afonso de carvalho

Bem sabes que esta crônica que estou escrevendo, para o dia 4 que iremos viver, bem sabes que é uma divagação sobre a minha própria pessoa, mas toda ela está impregnada de ti, de tua lembrança imorredoura, e nesta crônica haverá muita música, porque agora, estou ouvindo a tua voz e por isso contarei uma história do que eu desejaria ser no dia 4. hoje que vai passar. Conto essa história, sim, porque sei que ela enternece os teus ouvidos, e porque essa é uma história que noutros tempos eu vivi. Lembrei-me repentinamente daquele Ulisses de Saroyan, sabes? E assim como me lembrei de Ulisses, poderia, também, me lembrar do ingênuo Reizinho das histórias de Soglów, ou do Capitão América ou mesmo do simplório e rude Brucutú, que estes são cavalheiros muito importantes, segundo eu penso. É que somos crianças, apesar de tudo, doce coração. Para que pensar em bombas atômicas? Para que pensar em delírios mortais de angústias humanas? ou em gemidos do sub-solo que, se os ouvíssemos agora, nos cortariam o coração? Para que? Não, voz amiga do terno sentimento. Ulisses pelo menos ficará aguardando a passagem da vida, metido nas suas calcinhas rotas de menino vagabundo, e estará contente quando o trem soltar o apito saudoso na curva da estrada, deixando o seu penacho de fumo bailando no ar. Então Ulisses irá embora, assobiando e tropeçando nau pedras do caminho, porque para ele a vida acabou, a vida é somente a paisagem do trem. Pois, assim mesmo doce coração, é a emoção que sinto por ti, neste 4 de novembro que iremos viver. Não haverá festas nem flores. 
Tudo será silêncio e indiferença. Estarei no exílio e não falarei com ninguém. De que me serve falar com alguém que não sejas tu? E de que poderia eu falar, se tenho a certeza de que ninguém ia. compreenderia, a não ser tu, Coração terno e querido? Também não desejarei ouvir palavras estranhas, assim como o Ulisees de Saroyan se despedia da vida à passagem do trem pela. curva da estrada. Em momentos como este é quando tudo perde a cor, e nada interessa, amada minha. Sem ti nada existe. A vida se transforma num vácuo os violinos permanecerão mudos, o sol esconder-se-á na paisagem silenciosa das sombras. 
O sorriso das crianças ó terna, ó infantil bondade de Ulisses, orai por nós.... 


(In Vozes azuis. Manaus, Sérgio Cardoso, 1956)

http://historiadosamantes.blogspot.com.br/search/label/AFONSO%20DE%20CARVALHO

sábado, 12 de setembro de 2015

MEU LIVRO NA MESA DA SALA DE UM AMIGO...


A Paixão segundo G.H.


A Paixão segundo G.H.


Clarice Lispector 


 estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas
não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi,
tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me
aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a
saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar
desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque
saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso
prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no
que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o 
tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei
perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser -
se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo
inteiro terá que se transformar para eu caber nele.
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é
mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma
terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que
fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E
voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca
tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é
que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta
e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por
mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta
minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me
aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um
campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na
minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de
um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É
difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei
depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de
novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma
idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu
me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de
construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de
minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e
agora? estarei mais livre?
Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de
novo penso porque tenho por objetivo achar - e que por segurança
chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de
saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de
entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei
para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado
levar, a menos que soubesse para o quê.
Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha
montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar 
perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o
que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar
pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como
é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em
relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se
explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o
que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só
porque a vida não é o que eu pensava e sim outra como se antes
eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal
desorganização?
E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos
sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas
construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a
um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz
porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era
bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a
esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O
medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que
não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o
sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.
No entanto na infância as descobertas terão sido como num
laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então
que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a
coragem infantil de me perder? Perder- se significa ir achando e
nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que
andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não
sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas
enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia,
aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?
Ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão
habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É?
Também , também.
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi
minha formação humana. Não sei se terei uma outra para
substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não
usar superficialmente uma nova terceira perna que em mim
renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de uma
verdade Mas é que também não sei que forma dar ao que me 
aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a
realidade é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me
aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só
acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não
existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas
uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa
desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma
forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à
substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos
loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos
dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a
loucura: será de novo a vida humanizada.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida. 

O escritor de crônicas



O escritor de crônicas


Rogel Samuel
  



   O escritor de crônicas é um construtor efêmero. Seu texto vai ser esquecido no dia seguinte. Diferente do romancista, que possui a ânsia de imortalidade. A crônica de jornal, no mesmo dia em que nasce, já está a morrer. Como as flores, dizia Shakespeare. Nada mais virtual. É claro que existiram Rubem Braga e Machado. Mas gênio não conta. Estão fora da regra, fora do parâmetro humano. Como Mozart, que estou ouvindo agora. Como referir-se sem exagero a Mozart? A crônica do acontecimento, principalmente, morre logo, cedo. "Eu não sabia que você gostava de escrever crônica", disse uma amiga. "Eu não gosto da sua poesia, disse outra (a Clarice), mas leio suas "crônicas de sábado". Quando eu era jovem, e ainda morava em Manaus, mantinha uma coluna diária na Gazeta, um jornal da época. Não tenho nenhum recorte disso. Lembro-me de que lá escrevia, "também",  Ramayana de Chevalier, autor de "No circo sem teto da Amazônia". Ele escrevia umas coisas violentíssimas contra o governo. Era pai de Scarlet Moon.  Quase toda a minha "produção" daquela época se perdeu (e não se perdeu grande coisa). Havia um cronista em Manaus chamado Afonso de Carvalho. Ele talvez foi o melhor prosador da literatura amazonense. Só publicou crônicas. Eu tenho vontade de pedir um dia para o dono do maior jornal de Manaus (que por sinal é seu parente), o matutino A crítica, onde Afonso publicou a maioria de suas crônicas para que o republiquem. Hoje ninguém o conhece. Nenhuma história da literatura. Nem mesmo os  professores de "literatura amazonense" da Universidade do Amazonas (matéria que existe mesmo). Nunca o leram! Nem ouviram falar... Eu mesmo testei, um dia. E por que? Porque era "apenas" um cronista (ainda que publicou seus livros de crônica). O único lugar em que Afonso, que foi meu amigo, pode ser lido, é no nosso Site (com direito a foto, com cigarro na boca, conforme o figurino de Clark Glabe da época). O único  intelectual que o reconhece é Luiz Bacellar. O poeta. Afonso de Carvalho publicou alguns livros. Só tenho "Vozes azuis" e "A lua é dos pobres". Nem no livro do Arthur Engrácio ele está (e onde estou). Engrácio também era meu amigo, embora nunca o vi. Nós nos comunicávamos por carta. Um dia, encontrei um conto dele numa antologia nos Estados Unidos. Ele nem sabia. Há vários escritores brasileiros conhecidos nos EUA. Em Portland, no Oregon, visitei a maior livraria que já vi. Tinha a dimensão de um supermercado de dois andares. Um quarteto de cordas tocava, ao vivo. Lá comprei Galvez, do Márcio, em inglês, para o meu amigo Christopher Schlindler, o pianista. Chris é um poliglota. Fala a maioria das línguas, inclusive japonês. Conhece tibetano. Fala um português quase sem acento. Sua mulher, Chrystal, se dedica ao latim e ao grego. A casa deles é de madeira. Pintada de vermelho. Americano tem mania de casa de madeira, antigas de cem anos. Quando se anda no segundo andar, toda a casa soa. Estremece. O porão é cheio de objetos e antiguidades que a Chrystal coleciona. Ela é avaliadora dessas coisas. A imensa biblioteca fica no térreo. E o piano. Com eles fiz, várias vezes, a deliciosa "garage sell", que é a venda de coisas que as donas de casa americanas não querem e as vendem, na garage, onde montam uma feira, certos dias. Tudo muito barato. A vida americana é calma e suave, ali em Portland, a cidade das rosas. Como em Poços de Caldas. Nada que se pareça com a violência dos filmes americanos. Dirige-se devagar. Algumas pessoas saem sem fechar as janelas de suas casas. Há flores e áreas verdes em toda parte. Tudo muito diferente de Miami. Detesto Miami. Terra de gangster. Em Miami a polícia nos olha, a nós sul-americanos, como se todos fôssemos bandidos. No Oregon não, você está em paz. Há montanhas pacíficas. Há o monte Hood, um monumento de neve, no horizonte. As camélias e os rododendrons. O republicanos colocam a bandeira americana no telhado. Nunca vi um brasileiro colocar o verde-amarelo estandarte no telhado no Brasil. Vai ver que é até proibido por lei.  

Auriverde pendão de minha terra, 
Que a brisa do Brasil beija e balança, 
Estandarte que a luz do sol encerra 
E as promessas divinas da esperança... 
Tu que da liberdade após a guerra, 
Foste hasteado dos heróis na lança 
Antes te houvessem rôto na batalha 
Que servires a um povo de mortalha!... 

Eu sempre achei que, se Castro Alves tivesse escrito esses versos na época da ditadura militar brasileira, seria imediatamente preso, por ofensa à bandeira nacional. Mas não mais, crônica, que a lira tenho cansada, e a voz enrouquecida. E não do canto.  

(FOTO DE ROGEL SAMUEL)


MEDITAÇÃO DE NOVEMBRO



MEDITAÇÃO DE NOVEMBRO

AFONSO DE CARVALHO

A tua não será uma vida em berço de rosas e sempre haverá pequenos obstáculos através da estrada que se abrirá a teus pés de peregrina impenitente. Será pouco o arrimo com que contarás, e teus amigos serão ainda menos, porque foste escolhido sob o signo desditoso das traições. Tem cuidado com eles, portanto. A tua será uma luta solitária e deves confiar apenas no valor de tua moral, na altivez de tua consciência, na pujança dos teus próprios méritos pessoais, se algum tiveres a teu favor — foi assim que Ela me disse quando eu nasci. E assim tem sido, ó companheiro que me segue, ó corcéis do tempo que passam, velozes, carregados de essências cósmicas no rumo inacabável das noites sem fim. Sim, a vida é bela, ó companheiro, mas os lagos azuis estão encapelados e ouço um rumor de torrente através das idades, que nascem e desaparecem como espumas, e só duas vozes amigas eu encontrei: a tua voz, minha mãe, e a tua,- querido amor do coração. Terei, talvez, um destino luminoso? Ou serei o último dos facínoras? Ou o mais execrável e repelente dos monstros? Creio que o meu será o destino que quiseres, ó espírito humilde de minha mãe, ó coração bondoso do meu amor. Lançarei meu rosto sobre a poeira das estradas, calcarei um ferro em braza sobre o coração dolorido e por certo morrerei, amor, morrerei por ti. Que importa a dor suprema do holocausto? Ainda haverá pelo mundo uma valsa de Strauss, uma Apassionata de Beethoven, uma Serenata de Shubert e o riso cristalino das crianças, que estes nunca morrerão, querida amiga, nunca morrrerão. 
Minha mãe, e tu. meu amor, tão próximo e tão longe de mim. Chegou Novembro, o nono mês das meditações. O meu desejo e minha necessidade é apenas de preces. Estarei contente. 

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

AFONSO DE CARVALHO



Dias e noites (afonso de carvalho)


Os dias e noites são de uma tepidez mortal, e dias assim não convidam a pensar. Há uma exaUstão de ferro candente sobre as coisas do mundo, sobre a terra e sobre as águas, e os nossos corações sofrem as angústias de todos os tormentos das horas perdidas, as horas que não pudemos viver. É Novembro que se aproxima, amor. Bem sabes, querida, que este pode-ria ser um mês de alegrias, em que cantássemos aleluias de ressurreição, um mês em cujo inicio eu estaria te ofertando poemas de amor, em surdina, somente para as teus sentidos ou-virem, apenas para o teu coração comover. Não será assim, todavia, anjo meu. Para mim, o mês que se aproxima é uma quadra de recordações, e eis que me perco a meditar, não pen-sando nas glórias da existência, que não as quero, mas em ti, amor imortal, em ti somente. Que será de nós, amanhã? Pensamentos, palavras, emoções, tudo gira em torno de tua mara-vilhosa pessoa, tu, que és única, que és insubstituível, que estás presente em todas as minhas horas vazias, como uma obsessão e como uma loucura de que não me quero curar, para a qual não há remédio. Farei versos a ti. Novembro se aproxima, e com ele, e durante ele, meu velho coração não terá outro destino: só tu o ouvirás, só contigo ele estará. Ninguém mais.
(ele é um dos maiores escritores amazonenses - hoje esquecido - autor de vozes azuis_)