segunda-feira, 29 de junho de 2015

Onde andará o poema?

Onde andará o poema?

Rogel Samuel


Estou numa Lan-house, um pouco quente, e vim ao blog para dar conta de uma coisa: minha postagem diária.

Rubem Braga produzia suas melhores crônicas quando não tinha assunto. Ele era o mestre. Um dia entrou pela manhã, bêbado, na nossa faculdade de letras. Entrou na biblioteca, falava alto.

- Vocês têm meus livros? gritou.

Ivete, a diretora da Biblioteca, mandou que os serventes expulsassem aquele bêbado.

- Mas é o Rubem Braga, dissemos.

E fizemos uma roda em torno dele e ele falou de sua vida particular, íntima, desabafou, quase chorou, contou coisas que não se podem publicar.

Quando eu o chamei de Embaixador, ele se irritou. Ele tinha sido Embaixador do Brasil, recente.

No fim apaixonou-se por nossa colega e minha amiga até hoje, Maria Alice Capucci, que é uma loura belíssima.

Escreveu um poema para ela. Onde andará o poema?

domingo, 28 de junho de 2015

Curiosidade: primeiro texto de R. Samuel publicado

Curiosidade: primeiro texto de R. Samuel publicado



"O jornal", Manaus, 9 de novembro de 1958, aos 15 anos de idade.


TUA RESPOSTA

(corrigido em 22 de junho de 2009)

Rogel Samuel

(Do Grêmio Gregório de Matos)

Se responderes SIM, todo o vigor e toda doçura desta palavra se coloriu de uma coruscante
tradução. É a interpretação da felicidade, interpretação do amor. A vida tão cruelmente
castigada quando na plenitude de suas dores se descambará, libélula inquieta, num raio
policromado, coagulado, como se a noite se liquidificasse e tombasse, encachoeirada, com
todas as suas culminâncias, de sua luminosidade, com toda glorificação de suas estrelas!
Sim, completamente plena, a minha felicidade se resume na palavra!
Sim, este SIM será o convivente único do meu júbilo, onde brilham os sentimentos humanos,
longe dos canhões da noite, e onde nossa humanidade na sua satisfação se embebeda das carícias perfumadas e das delícias estonteantes reais, tão reais como a fluorescência do dia sobre a suavidade da noite que lentamente vai revestindo e enlutando as montanhas.
Mas se responderes NÃO a tua palavra vai penetrar-me pelos poros e aniquilar o meu amor,
e eu me tornarei surdo como os peixes solitários abandonados no fundo dos poços, eternamente sós.
(Ilegível) Não, e está tudo consumado. É a voz estéril das paredes.
Por isso, creia, um não seria mortal. 

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A morte de um ícone em 25 de junho de 2009 (Rogel Samuel)



A morte de um ícone em 25 de junho de 2009 (Rogel Samuel)

( ESCRITO NO DIA DA MORTE DO CANTOR)

Senti a morte do cantor. Porque muito me recordo dos tempos daquele menino Michael Jackson cantando tristemente. Ele fazia parte de uma cultura de todos nós, jovens da época. No Brasil apareceu até um grupo rival, os "Golden Boys", que eram também muito bons. Morre com ele toda uma geração de ouvintes. Foi o primeiro cantor negrinho que desafiou o mundo do pop e se tornou rei. Era o melhor dançarino, desde Fred Astaire. Tinha uma voz belíssima e dançava como ninguém. Pequeno vulcão magrinho, um dos poucos que valia a pena ver e ouvir. A media o massacrou até na hora de sua morte. Vítima de todos os preconceitos de cor e de sexualidade. Não foi a toa que quem anunciou sua morte foi um site de fofocas. Mas a sua arte é eterna, não se iludam. Morre numa boa hora. Na era de Obama.

terça-feira, 23 de junho de 2015

TRECHO DE "O AMANTE DAS AMAZONAS"



TRECHO DE "O AMANTE DAS AMAZONAS": "Quando a urutu pica, dói muito e incha a carne, que vai ficando escura e roxa, até o aparecimento da hemorragia e da morte. Já a picada da cascavel ataca o sistema nervoso central, a dor desaparece, a vista se perturba, vai ficando cega lentamente, começa a perder os movimentos do corpo, a princípio os dedos. Aí vêm dores na nuca, cada vez mais fortes, a paralisia vai subindo, a gente via ferver o progresso da morte, das extremidades para o centro, o corpo ficando rijo, duro, a morte vem pela rigidez viscosa, por asfixia, quando o diafragma enrijece. A morte vence o corpo, e a coral, obra de ourivesaria, é linda, vermelho-amarelo, cores vivas, e presas curtas, mas raramente pica. Mas não seja enganosa esta beleza, pois picando, mata. Mas pior de todas é a surucucu, grande, agressiva, forte e que, ao contrário das outras, vem e ataca. Tem muito veneno e permanece na tocaia das margens escuras de rios e lagos".

A SURUCURU (ROGEL SAMUEL)



A SURUCUCU (ROGEL SAMUEL)

As excelentes e raríssimas fotos de uma surucucu por Gisele Alfaia me fizeram lembrar de muitos fatos que passo a relatar.
A maioria das cobras foge ao sentirem nossa aproximação. Ao contrário da surucucu, que vem e ataca em grande velocidade.
ELA TEM 15 VEZES MAIS VENENO DO QUE UMA JARARACA E 30 VEZES MAIS QUE A CASCAVEL, DIZ CARLOS ROCQUE.
As serpentes eram causadoras do maior número de mortes no Amazonas. Meu pai, que viajou durante 40 anos pelo interior da mata, carregava sempre um kit contra cobra: um bisturi (para sangrar o local picado afim de que o veneno saia) e uma injeção antiofídica). 
Ele contava o terrível fato de um lavrador japonês que cortou a perna de seu filho picado por cobra.
Mas uma simples aranha armadeira matou a esposa de um professor da UFAM que foi meu aluno no mestrado. A aranha estava dentro do sapato dela e não havia remédio adequado na região. 
Como bom amazonense, até hoje no Rio de Janeiro eu bato os sapatos antes de calçar. E não meto a mão em gaveta vazia sem olhar. Mesmo assim já fui picado por uma centopeia pequena na minha própria sala. Foi no calcanhar, não doeu, senti como uma picada de agulha e o bichinho veio do jardim do prédio por uma passagem que depois descobri e tampei. Mas em São Paulo capital há um tipo de aranha marrom muito venenosa.
Quando pesquisei para escrever “O amante das amazonas” li cerca de cem livros, entre os quais havia sobre venenos de cobras, índios, arquitetura, história, memórias da Amazônia. Até hoje os leio. 
Mas nunca tinha visto a fotografia colorida de uma surucucu como aquela.
Bravo, Gisele!


A soma de todos os afetos


A soma de todos os afetos


Um repórter perguntou à poeta Cora Coralina o que é viver bem. Ela lhe disse:
"Eu não tenho medo dos anos e não penso em velhice.
E digo pra você, não pense.
Nunca diga estou envelhecendo, estou ficando velha. Eu não digo.
Eu não digo que estou velha, e não digo que estou ouvindo pouco.
É claro que quando preciso de ajuda, eu digo que preciso.
Procuro sempre ler e estar atualizada com os fatos e isso me ajuda a vencer as dificuldades da vida. O melhor roteiro é ler e praticar o que lê. 
O bom é produzir sempre e não dormir de dia.
Também não diga pra você que está ficando esquecida, porque assim você fica mais.
Nunca digo que estou doente, digo sempre: estou ótima.
Eu não digo nunca que estou cansada.Nada de palavra negativa. 
Quanto mais você diz estar ficando cansada e esquecida, mais esquecida fica.
Você vai se convencendo daquilo e convence os outros. Então silêncio!
Sei que tenho muitos anos. Sei que venho do século passado, e que trago comigo todas as idades, mas não sei se sou velha, não. Você acha que eu sou?
Posso dizer que eu sou a terra e nada mais quero ser. 
Filha dessa abençoada terra de Goiás.
Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para exercerem seus direitos. 
Sei que alguém vai ter que me enterrar, mas eu não vou fazer isso comigo.
Tenho consciência de ser autêntica e procuro superar todos os dias minha própria personalidade, despedaçando dentro de mim tudo que é velho e morto, pois lutar é a palavra vibrante que levanta os fracos e determina os fortes.
O importante é semear, produzir milhões de sorrisos de solidariedade e amizade.
Procuro semear otimismo e plantar sementes de paz e justiça. 
Digo o que penso, com esperança.
Penso no que faço, com fé. Faço o que devo fazer, com amor. 
Eu me esforço para ser cada dia melhor, pois bondade também se aprende.
Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir."

domingo, 21 de junho de 2015

17. A PANTERA (Rogel Samuel)



17. A PANTERA (Rogel Samuel)


O mundo estava mudado quando chegamos ao Rio. Mesmo assim, tomei todos os cuidados para não chamar muita atenção sobre nós, e acabamos saindo novamente do país.
Fomos para Frankfurt.
Ao chegarmos, recebidos no Aeroporto por um amigo que trabalhava há muitos anos naquele país e morava na pequena cidade de Walldorf.
Depois de alguns dias em Walldorf passamos para Frankfurt, na Mendelson Strass, no apartamento de outro amigo. 
Depois visitamos a estátua Germânia. 
Meus amigos gostaram de Jara, e ela se deu bem com eles. Chegou a sorrir, coisa muito rara nela. 
Um dia, fomos a Strasburg com Jara e eles no carro. 
Havia uma chuva fina que molhava o chão das ruas e punha as folhas das árvores pensativas. 
Meu avô, que era alsaciano, transbordou sua mulher e filho para um navio inglês que passava. O menino ficou em Strasburgo. 
Ele cresceu perto da Catedral.  Acordava ao som de seus sinos. A catedral, maior do que a  própria cidade.  
Lá esperei as 18 horas dentro da Catedral.  
A primeira coisa que aconteceu foi abrir-se uma portinhola e dali sair  um boneco mecânico, um esqueleto vestido de Morte, que martelou um sininho. 
Aquilo ecoou por toda a nave. 
Era o início da festa.
O grande sino da Igreja respondeu, solene, grave.  
Às 18 horas o relógio funcionou. Os sinos badalaram, foi uma consagração.
Dias depois visitamos um castelo onde foi filmado “O nome da rosa”, que é uma vinícola.
Mas foi quando recebi um recado vindo do Brasil de meu tio Carlos.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Já estamos no inverno



Já estamos no inverno

Rogel Samuel

Frio e chuvisco, no Rio de Janeiro. Ou nublado. Antigamente eu era suscetível ao tempo. Dia escuro, como este, me deixava melancólico. Depois de 2007, mudei. Fiquei 30 dias no Reino Unido, em Bournemouth. Pesadas chuvas diárias. Frio. Nuvens carregadas. Mas a paisagem bela, as praias belas, o mundo sorria debaixo de chuva. Aprendi que a chuva não muda o espírito, como o sol. Nós, brasileiros, somos filhos do sol. Nós, cariocas, adotivos ou natos. Filhos do sol, da praia, da feijoada, do Maracanã, do Carnaval que vem aí. 

Bach - Sonatas & Partitas for Solo Violin

quarta-feira, 17 de junho de 2015


16. A PANTERA (Rogel Samuel)

Mas logo voltamos para o Rio, peguei dinheiro, e de lá para Manaus, onde comprei uma pequena lancha e partimos para o alto Rio Negro até aquele lago onde morei e onde conheci Jara.
A pantera estava esperando, na margem. 
Ao ver-nos, pulou do seu ganho e desapareceu na floresta.  
A casa em ruínas.
 Por isso, resolvemos morar na lancha que, apesar de apertada, nos oferecia melhor proteção.
Ali havia duas camas, pequena cozinha, um banheiro, janelas teladas.
À noite se ouviam estranhos ruídos, cânticos da floresta, a Mãe da Lua, ou urutau, canto sinistro como a morte; o uivo do rasga-mortalha, ou suinara.
Um dia, em pleno dia, ouvimos um longínquo berro, que Jara disse: - É matintaperera...
Mesmo não acreditando no monstro peludo de um olho só, aquilo me deu um arrepio e eu logo me armei com uma espingarda. 
Jara riu e disse:
- Não se preocupe, está passando pelo outro lado do rio...
Eu não gostei. 
Fiquei apreensivo. 
Agora, aquela mata agora me parecia estranha, inóspita. Vieram alguns guerreiros, dias depois, a procura de Jara, que tratou com eles não sei o quê e depois os mandou retornar. Não me olharam.
Os animais noturnos nos ameaçam. Eu não consiguia dormir. Jara não falava, companhia silenciosa. 
Assim voltamos para o Rio de Janeiro, juntos...

terça-feira, 16 de junho de 2015

Miguel de Unamuno



Miguel de Unamuno



DEL SENTIMIENTO TRÁGICO DE LA VIDA



EL HOMBRE DE CARNE Y HUESO
Homo sum: nihil humani a me alienum puto, dijo el cómico latino. Y yo diría más bien, nullum hominem a me alienum puto; soy hombre, a ningún otro hombre estimo extraño. Porque el adjetivo
humanus me es tan sospe choso como su sustantivo abstracto humanitas, la humanidad. Ni lo humano ni la humanidad, ni el adjetivo simple, ni el sustantivado, sino el sustantivo concreto: el hombre. El hombre de carne y hueso, el que nace, sufre y muere -sobre todo muere-, el que come y bebe y juega y
duerme y piensa y quiere, el hombre que se ve y a quien se oye, el hermano, el verdadero hermano.
Porque hay otra cosa, que llaman también hombre, y es el sujeto de no pocas divagaciones más o menos científicas. Y es el bípedo implume de la leyenda, el ... de Aristóteles, el contratante social de Rousseau, el homo oeconomicus de los manchesterianos, el homo sa piens de Linneo o, si se quiere, el mamífero vertical. Un hombre que no es de aquí o de allí ni de esta época o de la otra, que no tiene ni sexo ni patria, una idea, en fin. Es decir, un no hombre.
El nuestro es otro, el de carne y hueso; yo, tú, lector mío; aquel otro de más allá, cuantos pensamos sobre la Tierra.
Y este hombre concreto, de carne y hueso, es el sujeto y el supremo objeto a la vez de toda filosofía, quiéranlo o no ciertos sedicentes filósofos.
En las más de las historias de la filosofía que conozco se nos presenta a los sistemas como originándose los unos de los otros, y sus autores, los filósofos, apenas aparecen sino como meros pretextos. La íntima biografía de los filósofos, de los hombres que filosofaron, ocupa un lugar secundario. Y es ella, sin
embargo, esa íntima biografía la que más cosas nos explica.
Cúmplenos decir, ante todo, que la filosofía se acuesta más a la poesía que no a la ciencia. Cuantos sistemas filo sóficos se han fraguado como suprema concinación de los resultados finales de las ciencias particulares, en un período cualquiera, han tenido mucha menos consistencia y menos vida que aquellos otros que representaban el anhelo integral del espíritu de su autor.
Y es que las ciencias, importándonos tanto y siendo indispensables para nuestra vida y nuestro pensamiento, nos son, en cierto sentido, más extrañas que la filosofía. Cumplen un fin más objetivo, es
decir, más fuera de nosotros. Son, en el fondo, cosa de economía. Un nuevo descubrimiento científico, de los que llamamos teóricos, es como un descubrimiento mecánico; el de la máquina de vapor, el teléfono, el fonógrafo, el aeroplano, una cosa que sirve para algo. Así, el teléfono puede servirnos para comunicarnos a
distancia con la mujer amada. ¿Pero esta para qué nos sirve? Toma uno el tranvía eléctrico para ir a oír una ópera; y se pregunta: ¿cuál es, en este caso, más útil, el tranvía o la ópera?
La filosofía responde a la necesidad de formarnos una concepción unitaria y total del mundo y de la vida,
y como consecuencia de esa concepción, un sentimiento que engendre una actitud íntima y hasta una
acción. Pero resulta que ese sentimiento, en vez de ser consecuencia de aquella concepción, es causa de
ella. Nuestra filosofía, esto es, nuestro modo de comprender o de no comprender el mundo y la vida, brota
de nuestro sentimiento respecto a la vida misma. Y esta, como todo lo afectivo, tiene raíces subconscientes,
inconscientes tal vez.
No suelen ser nuestras ideas las que nos hacen optimistas o pesimistas, sino que es nuestro optimismo o
nuestro pesimismo, de origen filosófico o patológico quizá, tanto el uno como el otro, el que hace nuestras
ideas.
El hombre, dicen, es un animal racional. No sé por qué no se haya dicho que es un animal afectivo o
sentimental. Y acaso lo que de los demás animales le diferencia sea más el sentimiento que no la razón.
Más veces he visto razonar a un gato que no reír o llorar. Acaso llore o ría por dentro, pero por dentro acaso
también el cangrejo resuelva ecuaciones de segundo grado.
Y así, lo que en un filósofo nos debe más importar es el hombre.
Tomad a Kant, al hombre Manuel Kant, que nació y vivió en Koenigsberg, a forales del siglo xviII y
hasta pisar los umbrales del XIX. Hay en la filosofía de este hombre Kant, hombre de corazón y de cabeza,
es decir, hombre, un significativo salto, como habría dicho Kierkegaard, otro hombre -¡y tan hombre!-, el 
salto de la Crítica de la razón pura a la Crítica de la razón práctica. Reconstruye en esta, digan lo
que quieran los que no ven al hombre, lo que en aquella abatió, después de haber examinado y pulverizado
con su análisis las tradicionales pruebas de la existencia de Dios, del Dios aristotélico, que es el Dios que
corresponde al ~oov zoAlrlKóv; del Dios abstracto, del primer motor inmóvil, vuelve a re construir a Dios,
pero al Dios de la conciencia, al autor del orden moral, al Dios luterano, en fin. Ese salto de Kant está ya en
germen en la noción luterana de la fe.
El un Dios, el Dios racional, es la proyección al infinito de fuera del hombre por definición, es decir, del
hombre abstracto, el homb re no hombre, y el otro Dios, el Dios sentimental o volitivo, es la proyección al
infinito de dentro del hombre por vida, del hombre concreto, de carne y hueso.
Kant reconstruyó con el corazón lo que con la cabeza había abatido. Y es que sabemos, por testimonio de
los que le conocieron y por testimonio propio, en sus cartas y manifestaciones privadas, que el hombre Kant,
el solterón un sí es no es egoísta, que profesó filosofía en Koenigsberg a fines del siglo de la Enciclopedia y de
la diosa Razón, era un hombre muy preocupado del problema. Quiero decir del único verdadero problema
vital, del que más a las entrañas nos llega, del problema de nuestro destino individual y personal, de la
inmortalidad del alma. El hombre Kant no se resignaba a morir del todo. Y porque no se resignaba a morir del
todo, dio el salto aquel, el salto inmortal de una a otra crítica.
Quien lea con atención y sin anteojeras la Crítica de la razón práctica, verá que, en rigor, se deduce en
ella la existencia de Dios de la inmortalidad del alma, y no esta de aquella. El imperativo categórico nos lleva
a un postulado moral que exige a su vez, en el orden teológico, o más bien escatológico, la inmortalidad del
alma, y para sustentar esta inmortalidad aparece Dios. Todo lo demás es escamoteo de profesional de la
filosofía.
El hombre Kant sintió la moral como base de la escatología, pero el profesor de la filosofía invirtió los
términos. Ya dijo no sé dónde otro profesor, el profesor y hombre Guillermo James, que Dios para la
generalidad de los hombres es el productor de inmortalidad. Sí, para la ge neralidad de los hombres,
incluyendo al hombre Kant, al hombre James y al hombre que traza estas líneas, que estás, lector, leyendo.
Un día, hablando con un campesino, le propuse la hipótesis de que hubiese, en efecto, un Dios que rige
cielo y tierra, Conciencia del Universo, pero que no por eso sea el alma de cada hombre inmortal en el sentido
tradicional y concreto. Y me respondió: «Entonces, ¿para qué Dios?» Y así se respondían en el recóndito foro
de su conciencia el hombre Kant y el hombre James. Sólo que al actuar como profesores tenían que justificar
racionalmente esa actitud tan poco racional. Lo que no quiere decir, claro está, que sea absurda.
Hegel hizo célebre su aforismo de que todo lo racional es real y todo lo real racional; pero somos muchos
los que, no convencidos por Hegel, seguimos creyendo que lo real, lo realmente real, es irracional; que la
razón construye sobre las irracionalidades. Hegel, gran definidor, pretendió reconstruir el universo con
definiciones, como aquel sargento de artillería decía que se construyeran los cañones: tomando un agujero y
recubriéndolo de hierro.
Otro hombre, el hombre José Butler, obispo anglicano, qué vivió a principios del siglo xvni, y de quien dice
el cardenal católico Newman que es el hombre más grande de la Iglesia anglicana, al foral del capítulo
primero de su gran obra sobre la analogía de la religión (The Analogy of Religion), capítulo que trata de la
vida futura, escribió estas pequeñas palabras: «Esta credibilidad en una vida futura, sobre lo que tanto aquí se
ha insistido, por poco que satisfaga nuestra curiosidad, parece responder a los propósitos todos de la religión
tanto como respondería una prueba demostrativa. En realidad, una prueba, aun demostrativa, de una vida
futura, no sería una prueba de religión. Porque el que hayamos de vivir después de la muerte es cosa que se
compadece tan bien con el ateísmo, y que puede ser por este tan tomada en cuenta como el que ahora estamo s
vivos, y nada puede ser, por lo tanto, más absurdo que argüir del ateísmo que no puede haber estado futuro.»
El hombre Butler, cuyas obras acaso conociera el hombre Kant, quería salvar la fe en la inmortalidad del
alma, y para ello la hizo independiente de la fe en Dios. El capítulo primero de su Antología trata, como os
digo, de la vida futura, y el segundo del gobierno de Dios por premios y castigos. Y es que, en el fondo, el
buen obispo anglicano deduce la existencia de Dios de la inmortalidad del alma. Y como el buen obispo
anglicano partió de aquí, no tuvo que dar el salto que a fines de su mismo siglo tuvo que dar el buen filósofo
luterano. Era un hombre el obispo Butler, y era otro hombre el profesor Kant.

domingo, 14 de junho de 2015

15. A PANTERA (Rogel Samuel)



15. A PANTERA (Rogel Samuel)

De Katmandhu voei com Jara para Paris. Ficamos no Hotel Fondary, na rua do mesmo nome. Ao lado morava minha amiga Annie, que nos convidou para seu apartamento.
Jara se recusou a entrar no elevador, que era pequeno e ameaçador. Subimos os sete andares de escada, eu e ela.
Annie nos serviu um maravilhoso chá com torradas. Era uma mistura que só ela sabia fazer. 
- Quando chegaram? – perguntou Annie.
- Ontem, respondi. Viemos de Katmandhu...
- Ahh – fez Annie – com uma expressão de espanto e admiração.
Ficamos um tempo em sua sala e depois saímos em direção à Torre Eiffel que não estava longe. Jara elegante, no seu casaco tibetano. Atravessamos a praça Duplex, por baixo do metrô e nos metemos numa daquelas ruas. Ao passar pela Avenida Motte Picquet 52 parei para mostrar para Jara a galeria “Paris-Manaus”. 
No dia seguinte, tomamos o café no hotel e fomos, eu e ela, conhecer um pouco de Paris.
Almoçamos no “Le Roi du Couscous” e nos mudamos para o Hotel Du Petit Louvre, ali perto, mais conveniente e onde ficamos um mês.

The marriage of Sofia Hellqvist to Prince Carl Philip of Sweden could help resurrect the once-banned Elfdalian tongue


Discurso de Posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras

Discurso de Posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras

Discurso de Posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras



Discurso de posse

Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: “os pastos da Vista Alegre". Santo, um "Padre Mestre", o Padre João de Santo Antônio, que recorria atarefado a região como missionário voluntário, além de trazer ao raro povo das grotas toda sorte de assistência e ajuda, esbarrou ali, para realumbrar-se e conceber o que tenha talvez sido seu único gesto desengajado, gratuito. Tomando da inspiração da paisagem a loci opportunitas, declarou-se a erguer ao Sagrado Coração de Jesus um templo naquele mistério geográfico. Fê-lo e fez-se o arraial, a que o fundador chamou "O Burgo do Coração". Só quase coração – pois onde chuva e sol e o claro do ar e o enquadro cedo revelam ser o espaço do mundo primeiro que tudo aberto ao supra-ordenado: influem, quando menos, uma noção mágica do universo.

Mas, por "Cordisburgo", igual, verve no sério-lúdico de instantes, me tratava, ele, chefe e o amigo meu, João Neves da Fontoura. - "Vamos ver o que diz Cordisburgo..." - com o riso arroucado, quente, dirigindo-se nem reto a mim, senão feito a escrutar sua presente sempre cidade natal, "no coração do Rio Grande do Sul". Provinciano - no justo traço psicológico e moral, que não no social e político - buscasse, aqueles momentos, uma reinsuflação de lá, entre o aconselhamento. Dessa Cachoeira, que o formou, que ele constante amou, a que como Prefeito prestou devotado e afincado anos de vida, refazendo-a, e pronunciando-se ainda filho devedor, dela orgulhoso; como, pensando "rio-grandensemente", diz ser o Rio Grande "orgulhosamente província". Ribeiro Couto, saudoso mais hoje conosco, e que a ponto co-adotara o hipocorístico, de Belgrado vem vez me telegrafava: "Pouso Alto se embandeira e toca os sinos em honra de Cordisburgo". João Neves, porém, nosso Embaixador e Chanceler - requerendo o interior e a província, onde firma residir ainda "a força do Brasil, especialmente nos maiores Estados", reclamando seu trato como necessário para quem aspire a exercer qualquer notória influência, imputando às metrópoles levarem "ao diletantismo, à superficialidade, ao epicurismo", e professando nada conhecer "que melhor exprima a vontade do povo em geral do que o povo municipal", - entendíamos juntos, do modo, o País entrançado e uno, nosso primordial encontro seriam resvés íntimos efeitos regionais. Para Paris, escreveu-me: "Vi uma fotografia da entrega de credenciais do Carlinhos. Nela você aparece no fundo ostentando uma gravata de listas vivas, que tanto pode ser fabricação do Sulka, como comprada no armarinho da Main Street de Cordisburgo”. Via-me lento e desacostumado mineiro capiau, indeformado, ou o-quê, segundo seu avaliar, xará e caçula companheiro no sentir de homem lá-de-fora ou lá-de-dentro; isso nos concertava. Às quandas, equivocava-se e dava-me “Barbacena" - a sagaz e espiritual, onde, em tempos diversos, ambos residíramos gratamente, e tão-então não menos um nosso "lugar geométrico". Por mim, freqüente respondia-lhe topando topônimos. - "Cachoeira concorda?" - se bem que, no comum, o chamasse de "Ministro". Escuto-o: - "E agora? Que há com Cordisburgo?"

- Muito, Ministro. Muita coisa...

De fim a fundo. Digo, conto o que de João Neves da Fontoura, por afortunada aproximação, me foi dado colher - o transordinário na experiência humana ordinária, idéia e impressão, singelo testemunho simples, do ato ao fato – na memória mais sentida. Para tanto, terei de à-pauta citar-me. Embora. No que refiro, sub-refiro-me. Não para a seus ombros aprontar minha biografia, isto é, retocar minha caricatura. Não eu, mas mim. Inábil redutor, secundarum partium, comparsa, mera pessoa de alusão, e há de haver que necessária. O espelho não porfia brilhar nem ser; mas, por de-fim, para usação, bem tem de relustrar-se. Direi.

Dele devo, por exemplo, datar o que recebi, com mãos menores. Da valia intelectual e dos rastros de cumprida vida pública - sua vasta capacidade inquieta, sua folha de batalhas, seus breves postos em poder e frementes empenhos de antagonista, seu inteiro atuar na política brasileira, tantas horas decisivo, tensa sua figura histórica - discorrem e esclarecerão, a olhos gerais, os anais, arquivos, livros, esplêndida informação autobiográfica. Esse o metal já amoedado - não permitido a alguma espécie de desaparecimento e esquecimento. Duvidemos, isto, dos que o não souberam compreender; a traça não pode com a alfazema. Tenho, sim, muito pouco, um tantésimo, um quantésimo. O que devo portar por fé.

Nem o que queria atinjo. Como redemonstrar a grandeza individual de um homem, mérito longuíssimo, sua humanidade profunda: passar do João Neves relativo ao João Neves absoluto? Sua perene lembrança - me reobriga. O afeto propõe fortes e miúdas reminiscências. Por essa mesma proximidade, tanto e muito me escapa; fino, estranho, inacabado, é sempre o destino da gente.

Vai para 40 anos; e era momento de juventude. Súbito, o povo guardava brado e gesto, um começo de começo. Foi a 5 de agosto de 1929. Aparecia para o Brasil, deste tamanho, um nome - o do destravador, servo dá palavra e de prender fogo. (João - que nem os Crisólogos, Crisóstomos, donde ouro qual tal: Fons Aurea, Fonte áuria, Fontoura; alvo - Neves - em nitidez. Davam os jornais, eco centelhar de fragmentos, sua fala na Câmara, de três horas, discurso-suma de toda uma esquipada: "... Vamos para o prélio aceso das urnas, e quiçá para o prélio sangrento das armas." Vocava "uma crença nas forças imortais do espírito de renovação." Reportava-nos os da altiva marca meridional, de rajadas, rasgos, verticalidade e ímpeto, robusta evolução cívica: ... "os rio-grandenses, que traçaram as fronteiras da Pátria a ponta de lança e pata de cavalo..." - o gaúcho de brio e cerne ao ar livre. Trazia a Paraíba, valente em entono em sonância, "até às montanhas de Minas Gerais. Minas pacífica, Minas vitoriosa!" Tomamo-lo a tento. Ele ardia. Ia, no entreassomo, mas no eito do arremesso:

"Sonhava nesta geração bastarda
Glórias. . . e liberdade!
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O gênio das pelejas parecia..."
- o de ÁLVARES DE AZEVEDO, no "Pedro Ivo". Mas, de quem, então:

"A fronte envolta em folha de loureiro
Não a escondamos, não!"

Na convibração, no momento, comportávamos, nós outros, seja ou não, sobeja exaltação e fantasia. Seduzia-nos assim entanto, imantados, o pregador, o Orador por antonomásia - que acudira das assembléias de sua terra, politizada e parlamentária, sobressaído em quanto âmbito de acústicas e toda sorte de embates, medalhado já de fulgor e forma, desde as pugnas de estudante senhor da tribuna. Vinha-se mais de ouvi-lo, frente às artes-mágicas do fatual e retendo-o daí como haraldo de um futuro em faces limpas. Seu discurso - seus discursos "liberais" - rota de obrigação - trem e incessar de lumes. Neles podia-se experimentar não apenas a comensura de facúndia e talento: mas coragem, de cor, ânimo, de alma. Tive-o, imediato, antes que outro incorporando em si o movimento que arrancava. Todo o mais adiante foi confirmação. Graças por este sóbrio meu não desacerto.

Seguiu-se, meses altibaixos, o comando do líder, causa avançadora daquelas jornadas, que tangeram o remate da Primeira República. Reconhece-se e unânime refere-se que João Neves da Fontoura - promotor da inteligência com Minas e, a todo e próprio risco e quase rituar mística significação, com Minas firmador do pacto da Aliança - susteve e alentou, inarredado, infatigável, insobrossoso, o rojão da campanha até à revolução e o triunfo. Dele foi a representação em relevo. Dele se retraiu - modo algum por machuque em melindre, frustração ressentida ou rancor de ambição, sei-quê; senão por drástico realismo conforme desconfiado desencanto, - sempre operário todavia tentando servir a uma então impossível congraça ou enquistando-se na vigilância mais lúcida. Dele não desmentiu ao conspirar a pronta reconstitucionalização de um Brasil renovado na ordem democrática - e a sustentar, verbo, o glório São Paulo de 1932, para onde arriscara-se a abrir o arco, num mixe aviãozinho de aluguel, em expediente dramático qual leal declaração de firmeza e vivo audaz como labareda metáfora. Nem o denegriu, já depois no exílio, publicando-se desabusado acusador; menos ainda, mais tarde, ao repor-se com o Governo, porquanto flui, outro-e-outro, o rio humano, certo se no álveo do árduo de propósitos, e: quem pensa no Brasil, e no povo do Brasil, vezes quantas rebeija pedras e santos. Notável esse mirável João Neves. Voltava, em 35, remanente líder, à Câmara, da Minoria, de novo facho e voz.

Esta era uma vontade, frágil alta força.

"Orador, foi dos maiores senão o maior, do nosso tempo" - consigna Afonso Arinos de MeIo Franco. Depõe: "João Neves da Fontoura... oriundo dos mais ilustres troncos sulinos... o fulgurante paladino de 1930... o mosqueteiro gaúcho... contou com um incomparável instrumento: a sua verdadeira e magnífica eloqüência. João Neves chegara dos pagos com fama de temível orador. A brilhante campanha oratória de João Neves por esse tempo, que transformou, afinal, a oposição em revolução, não encontra talvez nada superior, e pouco haverá de comparável, em toda a história parlamentar do Brasil. Quantas vezes o vi e outras tantas o admirei."

Por mim escutei-o sempre com alegria alertada. Ver era vê-lo partir a falar, sem manhas de virtuose que soberbas de ás, vezos nem rompante: cumprindo apenas correto informar o recado, propor sua pleita, dar conta. Ele, que meditava e redigia os discursos, drede botava-os sob contido arranjo, alinhando tópicos reflexivos, conceitual o pensamento, lisa correntia a linguagem, lhano o teor cogente. Lidos, pegavam logo disciplinada periodicidade e velocidade uniforme: nanja boleações, arrastos, retóricas ou vocais surpresas; por-pouco nenhum ornato. Sérias serenas as feições, também ele não se prometia em porte e aspecto; retreito de gestos, não mimava a jogo. A voz, antes desbrilhada, só insistência e volume, forjando-se hirta ou adensada se entornando, dados foscos subtons, tocava as frases num andamento ascendente quase invariado, seqüência de pontuais cortes e simétricas modulações, homofônicas.

Então. E, em instante, brusco ou gradual, baixavam-lhe outras veras, estalo, faculdade, fôlego, expediam-se-Ihe por volta anjos novos da guarda, caboclos, gênio, verbigênio, apolínica chispa, o "duende", o "daimon"? Erguia-se e erguia-nos, por comoção e impacto, raptura. Erecto - mínimo vulto, mais mente e menos matéria - maludo e esmarte agora, ao ápice e às ordens, no tinir do metal, centro de círculos até que em fecho enfim o circuito único encantatório, por efluxo também invariável -: daquela presença e intensidade anímica. Induzia, convencia; impressionava, quando não, encostando em respeito adversários, e nos sem-jeito os emparedadamente insensíveis. Isto: isto é, sabeis, o orador, o fluido e o halo. O que responde igual, mas circumpatia e nimbo espúrios, a outras dicções, que não menos sojigam e enfeitiçam - a pítica, a hipnótica, pseuda e só-Iabiosa, a elemental ou animal, mesmo a vesânica. Não a dele. Sua palavra era lavada forra do ideal sobre o contingente.

Assim aqui, assim lá, nas alienas e internacionais reuniões. Ao abrir, inesquecivelmente, a IX Interamericana, de Bogotá, por lembrar. Ou, na Conferência da Paz, em Paris, quando acorçoados o espiávamos assumir a tribuna, do mundo, convocado pelos "grandes", Bevin, Bidault, Molotov, que alternados ali presidiam: - "I call upon the Representative of Brazil, Mr. da Fontoura..." - "Je donne Ia parole au Premier Délégué du Brésil, Monsieur Da Fontoura..." - "Imiéiet slóvo Pêrvyi Brazílhskii Delegat Gospodin da Fontoura..." Ah, Ministro! Como cabe tanta coisa nos meus olhos?

Dessa oratória e eloqüência - quais o mérito e crédito, o mando, o móbil? De onde fura a fonte? Diga-se: valor. O altamente impessoal, quer dizer, o personalissimamente profundo. Da cauta, recolhida verdade do sentimento - era o que se externava - veemência ética, a sinceridade mais descoberta e em fé. Tão a fio mormente seu raciocínio, tanto mais a emoção legal certeira. Tenência. Integro, falava com uma autoridade; a de quem sabe ser vedor puro e por vezes pasmo da própria e movida grandeza. Retitude permeio e a fim, enraiz de convicção, sem regateio ou preço. Devoção à diáfana carne moral dos princípios. Mas à base então - a angústia pelo bem comum, a paixão da Pátria. Esse, dado a ver, o segredo do orador João Neves da Fontoura. Alma exercida, disse. E coração. Coração, é indispensável; todos sentimos por quê. O dever, mesmo, vem dele. Entanto que dever e pudor compelem-no a pelejar oculto.

Volto. Vai para 30 anos. Vim aqui, por causa de um prêmio, tinha de fazer discurso, cheguei tímido e cedo. Dei no saguão com grupo de acadêmicos. Deles, um, talvez não o mais próximo, endireitou para mim. ("Um acaso? Uma coincidência?" - ele é quem indaga, noutra ocasião e por diferente passo, em de seus livros: "Melhor é acreditar que uma harmonia secreta domina..." - conclui.) Encontrávamo-nos, primeira vez. Dispôs: - "Vai o poeta tomar chá conosco." Subimos, me apresentou aos pares, de mim curou todo o tempo. (Lembro-me: Adelmar Tavares, afável, glosava-me o "... nome certo para poeta..." -; guardei, tudo quanto há com nomes me apanha.) Em 29 de junho de 1937. E, a 12, ele, João Neves, tivera posse, apresentando sobre Coelho Neto estudo crítico abarcador, com achados, perdurável por substância e senso. "Assim, terçando motivo rigorosamente literário, vós - o expoente, - provais quanto merecem e têm direito, as individualidades da vossa esmerada categoria, ao convívio acadêmico, selecionador e acertado" - saúda-o Fernando Magalhães. (Expoente - e máximo - de um gênero; contudo como aspado "expoente" inajeitadamente quem-sabe se balanceasse, usando por vezes intitular modo curto a entidade: "Academia Brasileira"; e entretanto, já pois ainda antes das "MEMÓRIAS", pondo rancho arriba nas Letras do país.) E estava, eu disse, em sua doce lua com a Academia? (Mas, se sempre esteve, melenluarado e dos mais, tais querer e apreço prestava à Casa...) Me lembro - tributava jovial reverência ao mestre Antônio Austregésilo, outrora seu médico. Relembro, mais, Ataulfo, Roquette, Múcio, Alceu...? E eu enxergava o tido herói - aquém Ì nas aparências: corriqueiro, trêfego prazenteiro, leve, leviano que qual? Mais lembro! Tudo o que era, a olhos cheios, uma coisa - caseira, desusada, despercebida: bondade. O que ele endereçou, a uns e outros, natural e ágil, toda a vida. Não adamantino: barro. Mas do melhor humano. Sua real simpatia humana, ativa, principal. Ele era bom. Será que faz ainda sentido a palavra?

Semanas mais, deu-se-nos nova minúcia - senha ou casualidade?

(E ajuntemos delas, que é como a vida se faz.) Tudo o que, aliás, tutaméias peripécias, se passava nas ocasiões tão avulso, cabível sem antecedência nem conseqüência, que pôde me parecer até enganoso, fora de esquema, lapsos de improbabilidade; só no futuro iriam assentar nexo. Foi, foi que eu vinha distraído pela Avenida e sem rumor esbarrou à beira de mim um carro, alguém cordial falando-me: - "Aonde vai o poeta?" Era, claro, João Neves. Me fizeram subir - ele estava com Olegário Mariano e, por estúrdio que se tenha, jamais me acontecera convocação do jeito! - levaram-me a casa. No caminho... bem: - Você um dia será também acadêmico" - sisudo emitiu. - “Mas, mais tarde..." - retomou-se. Mesmo muito mais tarde (disto não sei se riu, do analógico) comentei: - "Na terceira vez, o sr. me içou foi a chefe de seu Gabinete..." E é episódio a contar; tanto dele revela.

Vem de mais de 20 anos. João Neves, até lá, percorrera muito, incluso nos espaços diplomáticos: membro da Delegação do Brasil à II Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas, em Havana; Embaixador em Missão Especial a Cuba e ao Panamá; e Embaixador do Brasil em Portugal. Eu, de mim eu andara por Alemanha e Colômbia, e agora, na Secretaria de Estado, tomava conta do Serviço de Documentação, valha dito, em taipa no meu hipogeu. Soube, vago, que João Neves da Fontoura ia ser o Ministro das Relações Exteriores. E - vede que homem. Vai, vai, um dia, o, saudosíssimo, Embaixador OrIando Leite Ribeiro, Chefe do Departamento de Administração, Chefe meu, me mostrou (- "Sabe de quem é esta letra?") tira de papel com o meu nome. Era uma escolha, acontecia meio algébrica, despessoal, certo modo abstrata. Escutai-me.

Em dadivada página das "Memórias", das que me honram maior e comove-me, põe ele o fato - de outra margem. E: "Rosa é um dos meus mais novos amigos. (...) Quando tive de escolher o chefe do meu gabinete, no Governo Dutra, inclinei-me por ele, por força da chamada 'dupla vista'. (...) Dou muita importância às pequenas coisas; mais do que às grandes." Já em artigo, num semanário, ele publicara: "Para a chefia do gabinete convidei o então 1º Secretário João Guimarães Rosa. Não o conhecia bem, mas, num lampejo ocasional, ele me apareceu como a pessoa de que precisava junto de mim."

Então explico. Nada quase corre simples, nesses casos, depois tremeiam-se lembranças e contralembranças; e há que, se o destino quer e faz, aplica luxo de lances, ataca por linhas simultâneas - disto sei recheados exemplos. O que ele grava nas "Memórias", certo a certo, deu-se. Mas houve mais, confluência, e eis aqui João Neves reavulta. Se bem que conhecedor de funcionários à altura no Itamaraty, ele, jogando seguro, pediu a Leite Ribeiro indicações (e, com um e outro, confirmei comprovada essa conversa.) Encomendava: "alguém que, chefe de gabinete, não se ensaiasse 'eminência parda' ou 'ministrinho' arrogando-se a ministrança..." Leite Ribeiro apontou diversos. "Mas: '... e que entrasse para a chefia com atitude de espírito igual à de quem sai..." Vindo ora a mim a vez, atentai para o que João Neves por cima perguntou. - "É de que Estado?" - "Minas." - "Fico com ele!" Assim considerava a minha mátria pátria, à qual devesse também pelo sangue, por sua avó materna. A ela se reconhece unido e grato: "Visitando muitas vezes Minas, aí por volta de 1929 e 1930, e falando ao povo em comícios apaixonados, nunca deixei de meditar sobre os insondáveis juízos da Providência: eu tinha ido dez anos antes àquela bendita terra buscar um pouco de saúde. . ." Prezava não tão-só "a doçura daqueles ares de montanha"; mas própria a gente: - "Vocês, mineiros, são diferentes de todo-o-mundo..." – repetia; apreciava mesmo "as tragédias mudas da política mineira." Assaz confalasse o mote de COELHO NETO: "A terra venerável de Minas, terra de abundância e de hospitalidade, fértil e amável como o doce e generoso país quenanita... " E, pois, dela nunca poderia ser dito duvidador ou menos amigo.

Desoferecido foi que fiquei, peado quase. A um mestre achei de pedir conselho, ao Embaixador Leão Velloso, o Ministro que deixava a pasta. - "Que fazer para ser um chefe de gabinete?" Ele, coloidalmente bondoso e dono de curtida sabedoria, não à-toa vivera anos na China. Ainda assim primeiro se pasmou, um átimo. Acudiu-me, porém com fino sorriso adequado: - "Sempre trate de não chegar depois dos outros. E de mais não precisa, quem é capaz de fazer essa pergunta..." Nem tanto. Desde cedo, apenas, também eu aprendera que "o sábio fia-se menos da solércia e ciência humanas que das operações do Tao". Muito junto do braseiro, gente há às vezes que não se aquece direito, mas corre risco de sapecar a roupa. Eu gosto do amarelo. Talvez enfim nunca pudesse ter sido chefe de gabinete, de ninguém; salvante mesmo só de um João Neves da Fontoura.

Não que para preposto caçasse ele homem de capim, anódino, esmorecido; estimava ao invés a franca contestação e resistência. Disso intuí nota, ligeiro. Contava eu aprender primeiro suas querências e movimentos: assunta-se o leopardo é de dentro da jaula. Mal me deu tempo. Mandara a despacho um decreto, sem que eu o visse; o que, em si, importava nada. Apenas, esse ato - e era, menina-dos-olhos, o que criou o "Curso de Preparação à Carreira de Diplomata", uma das conquistas institucionais da administração Dutra e da gestão Neves da Fontoura - suprimia, de golpe, os concursos diretos, deixando penivelmente por baixo os candidatos do interior, dos Estados. Vim estouvado opor-me; riscou-se o quadro a corisco, feito raspar de garrotes em escaramuça. Desfechou-me: - "Alguém de Barbacena ou Cordisburgo?" - "Ou de Cachoeira, por exemplo..." - tive de repontar. - "Isso nunca acontece!" - ele revirou. "Aconteceu comigo..." - pus ponto. Digo, pontuou ele, sussurrado só, numa de suas reações rapidíssimas: - "Talvez não seja mesmo democrático..." Solilóquio peremptório. O Ministro pediu de volta o decreto, para modificação; manteve o concurso de provas, excepcional e paralelo ao Curso, inventou bolsas de recurso aos estudantes desprovidos.

Sei, nesse entestar ficamos de verdade ligados. Descobrindo também que ele era, por constância e excelência, o democrata. Creio não ter encontrado outro assim inerentemente autêntico. Ideal, espírito, sentir democrático, possuíam-no - como respirada quantidade, fundamento e arraigo, sua característica. Por aí sofria, pensava, acertava ou se enganava, persistia. Escarafunchai-lhe a vida, e verificareis. Ralavam-no a engulho quaisquer conotações de regimes superados. Chegou a mandar proceder a original escrutínio no Itamaraty, a respeito de mudança de horário. Seu conviver demonstrava, porejante, a ingente crença. A mim, a quem o conceito da soberania do povo suscitava ainda visos meu tanto teóricos, ensinou-me que ela tem outrossim carne e canseiras, tarimba e pão, consolação; mas, principalmente, certeza criadora.

E esse - revolucionário, o removedor, exemplar de cultura e humanidade, dado ao esforço progressivo e aberto a quanto de construtivo, visando permanentemente ao bem da comunidade, admitindo a coexistência honesta das ideologias - desatentou na temática da transformação social, dela se desavisou ou dessentiu-a, a grau de merecer tacha e pecha, não andou com o tempo?" "A idade que vivemos é a da cooperação niveladora" - proferiu. Repetia-me citação: "Vivemos no seio de uma grande injustiça..." Detestava toda sorte de usurpação, não toleraria o mínimo retrocesso, o rejeito de nenhuma das duras e graduais aquisições nesse plano, no qual somente não colocava a urgência como um optativo categórico. Temesse, há de ser, qualquer sôfrega dissolução do genuíno no aleatório, receava o destabocamento, caos, a má ordem. De feita, apostrofou-me: - "Você pensa que a gente vive no Céu?!" Desde menino destinado, e desde a adolescência entrado à lida partidária, e por uma carreira de seis decênios na estacada, prisioneiro de cívicos intuitos - confez-se aos despóticos valores políticos da ação em superfície, sem pausa para esfriar-se do tumulto e da força adquirida - incicatrizado investindo sempre o imediato - e portador de um alarme.

João Neves vinha à direção dos negócios sabendo o aranzel do ofício. Dominara encargos e responsabilidades de sua missão e enorme experiência diplomática, de 1943 a 1945, em Lisboa, neutra, posto crucial pelo entrejogo de meias manobras, pressões, urgidas decisões ponderosas. Comandante, agora, e por duas vezes, desestreitado e no cIuso, deu-se à faina de nossas relações internacionais: de maneira forra, lúcida, objetiva, sutil, decente e oportuna. Sei que, a pensar e realizar, ele se adiantava em toda iniciativa e dignificava qualquer rotina. Documentado está o que pôde, conservado nos rascunhos e registros. Apenas, o meu Itamaraty, mansão de equilíbrio e mourejo, fiel e febril, muito mais do que fora se crê, e também uma Casa hierárquica, timbra seus assuntos - não por cavilosidade, culpas, má-fé, senão rigor de precaução essencial, moderação co-harmonizadora e universal regra específica de estilo - pelo selo de "secretos", "confidenciais" ou "reservados". Do que ele fez, sem subservir ou omitir-se, sem falsimilhanças, me penetro. Disto não darei parte; nem serei quem deixe de deixá-lo sub rosa. Mas aqui inscrevo, como premissa honrada e sustentada, a que, a 1o de fevereiro de 1951, em discurso de posse, foi seu juramento: "Convém tornar explícito que, na condução da política externa, o Governo - acima de tudo - velará para que aos interesses fundamentais do Brasil não se sobreponham, em quaisquer circunstâncias, interesses alheios."

Reevoco-o: vejo que trabalha, trabalha, à mão-cheia entusiasmada, no retângulo-arena de seu gabinete. Solto lépido, serviçal que nem jovem secretário-de-embaixada, e a todo tempo impartível da exata dignidade, e da amenidade de irmão da gente, ingênita gentileza. Fazia conta do bem-estar e das necessidades ainda que de servidores infimífimos. Manipulador agudo do concreto, descia, prático, a sugerir meios e aconselhar-nos na execução das tarefas; e eu me envergonhava da minha entorpecedora e distanciadora precisão do absoluto, nas ocasiões em que, enrolado ele mesmo a debater tropel de assuntos, em reuniões, tomava instante para passar-me expeditivos bilhetes de auxílio, - solícito espontâneo, valedor constante, servidor de seus servidores. Difícil de quadrar-se a tolhedores métodos, aparentemente um absorvedor individualista, lia tudo, tudo capturava e examinava, produzia e orientava, sem cessar, ditava com proba avidez. Arremetia grandes olhos a qualquer problema, não enjeitando a farinha por grossa nem o angu por duro, jamais avaro de si. Nunca o vi bocejar; se estremunhava era como despertado gato. Seguro de modos trastando exercitado autodomínio, inimigo de ênfases, dramaticidade ou imponência, nem com ensombrar meio rosto se traía, ou só em quebrado de segundo, no semicerrar o cenho; quando indicado, ensurdecia-se um pouquinho mais, polidamente. Temi, vez, que, devido a raso descoincidir de índoles e vistas, estivesse-o menos socorrendo que estorvando, e o interpelei: - "Ministro, como é que o sr. me suporta?" (Nessa manhã, de seguida, espalhara eu alguns de seus projetos, tendo-me como isolador ou mau condutor contra as descargas de bateria poderosa.) Retrucou-me: - "Porque nós nos completamos... Você é a minha consciência mineira..." Por certo assim ministrava-me sua natural generosidade, propinado automático agrado de político; vede, porém, que na tirada predominava pico do sense of humour, absolutamente indispensável e uma de suas riquezas. Senhor na indubiedade, sem intricantes vacilações, destorcido era que puxava pelos mais complexos fatos; nem se furtando de abrir janela ao vento. Discorria-os a fino e gume ardor inteligente, seja sobre a tábua da justa medida e bom senso. Sabia esperar, conquanto suponho achasse que esperar é dar-se em hipoteca. Nada desandava, entretanto, nem desconchavando mesmo a quem não afeito a esse ritmo e velocidade de espírito. Inteligência que ao auge resplêndida se exercia, quando no aperreio do arrocho e já a horas de estalar, sem beirada o prazo. Dele então se inesperava: faísca, a inédita idéia, terminante, ou a útil definição, saltada acima, brasa. Ainda mais se em contenda. Parece mesmo que, para com toda a eficácia fixar-se a escogitar coisa do correr comum, primeiro carecesse ele de atribuir-lhe sentido adverso hostil, para acometida e de vencida.

"Mas meu signo era claramente o da luta" - vem descobre. Decerto. Seu era o signo do Escorpião, sob cujo influxo hoje transpiramos, campo-de-força de Marte. Scorpio reparte a seus filhos, com senso extra dos deveres e força de vontade tremenda, a pugnacidade decidida, intrepidez, gosto da rusga e da guerra. Fazem aos punhados inimigos. São políticos perigosos. O sujeito do Escorpião desfaz no risco, não alui por temor nenhum, defende-se atacando, nutre-se do conflito, dele extrai renovada substância ao contrário de despender energia nervosa, resiste até à morte. João Neves, a gente encontrava-o amofinado, perrengue, pessimista, e já se sabe: embaraçava-o a apatia dos entreatos pacíficos, atolava-se na tranqüilidade. Ele não via o sol nos belos brejos, horizontais. Depois, a gente voltava, e eis ora o homem sem achaquilhos e o acessório, são, alegre esportivamente, suas forças todas enfeixadas. Pois então, é que de novo em patriótica briga - era o realizar-se e renitir - o entrevero! Disso deixa conhecimento: "a poesia da peleja", "o sabor agradável dos embates". Define-se? "Por uma longa experiência, estou convencido de que a consciência do perigo e a certeza de vencê-lo influem uma grande paz nos espíritos atribulados." Daí mais sua filosofia, ou, melhor, Weltanschauung, resoluta cosmovisão, que era já a de Jó, de Uz. Diz: "Toda segurança é aparente, todo bem-estar terrivelmente interino." "A escolha e a luta são nossas inseparáveis companheiras." Portanto; "andava sempre, como se diz, com sete sentidos". "A vida é uma perpétua emboscada." Só que com ainda escorpiônica sensatez, mas nada de supérfluas cautelas; e humano não é sinônimo de paradoxal? Refrega durante e em avante, sim, desembuçado respeito pelo contendor. Nem o estúrdio potencial de ódio do Escorpião podia com sua não menos inata magnanimidade.

Então - e ele e Vargas? E ante Aranha? A dúvida pertine e o ponto pertence, cortando aqui desconversa, porquanto dentre bando e numeroso escol - os brasileiros grandes do Rio Grande - plano adiante inscritos na mesma moldura: tríade que em conjunto giro insólito a História nos trouxe. Impende a pergunta. Resposta, Deus sabe, só sou contador. Vínhamos, por exemplo, de visitar Oswaldo Aranha - feérico de talento, brilho, genialidade, uai, e daquele total conseguido esculpir-se em ser - e Neves pauteou: "Você estava extasiado, empolgado..." Mas vi e já advertira em que não menos cedia ele à cordial fascinação. - "Sagarana (sic sempre), cuida disto para o João..." - telefonava-me Aranha alguma vez. Prezavam-se e queriam-se, alta, gauchamente; a despeito de quaisquer despiques, queixas, rixas, unia-os a verdade da amizade. Getúlio Vargas, muito falávamos a seu respeito, compondo uma nossa tese de controvérsia. Meu interesse, sincero, pela imensa e imedida individualidade de Vargas, motivava-se também no querer achar, em sã hipótese, se era por dom congênito, ou de maneira adquirida mediante estudo e adestramento, que ele praticava o wu wei - "não-interferência", a norma da fecunda inação e repassado não-esforço de intuição - passivo agente a servir-se das excessivas forças em torno e delas recebendo tudo pois "por acréscimo". - "Enigma nenhum, apenas um fatalista de sorte..." - encurtava João Neves, experimentando fácil dissuadir-me. Mas, apto ele mesmo ao mistério, sensível às cósmicas correntes, à anima mundi antiga, teria de hesitar, de vez em quase, também a memória cobradora beliscando-o. - "De fato, o Getúlio dá estranhezas, nunca ofegou ou tiritou, nem se lastimava de frio ou calor, que nós outros todos padecíamos, nada parecia mortificá-lo..." - concedia-me, assim, pequenas observações. Logo, porém, sacudia-se daquilo. Fazia pouco de minha admiração-esimpatia por Vargas, sem com ela se agastar. Diferença fundamental de temperamentos em contraste - o ousado opugnador sem coleios e o elaborador expectante do contempo - de incerto modo inconciliava-os: por um lado insofrido espenejar-se contra visco, de outra banda quieto apartar-se de picadas. Voltas e contravoltas de longo acontecer, as vãs vicissitudes, fizeram o resto. Ou injunções de foro íntimo, públicas concepções diversas. Aproximações, afastamentos, reaproximações, como termos periódicos, patenteiam nada de outro que uma forma do "kaempfende Liebe", de afeto combatente. Demais, não se pisaram nem cuspiram nos ponchos, haveriam de entender-se, dia ou dia, em fim; já não pelo hábito caroável e em tradição cavalheiresca, mas por vinculação predeterminada e obedecida, acima de dessemelhanças ou revergências no obscuro e ambíguo das causas transitórias. Lembremo-nos sempre do que ainda não houve. Retirou-lhes a tragédia a extensão dessa substância amorfa e escolhedora - o tempo. Esta horária vida não nos deixa encerrar parágrafos, quanto mais terminar capítulos. Entanto que, como viável esteira do próprio tempo, só nos resta, a nós, cegos rastreadores, o desconjuntado flou de uma má montagem. Recordo: "As coisas estão amarradinhas é em Deus" - entimema único que punha em acordo minhas Vovó Chiquinha, de Traíras, no Rio das Velhas, e Vovó Graciana, de um povoado do Paredão do Urucuia.

Mesmo em meio de política.

Salteai-o nos tomos de crônica comentada - "Borges de Medeiros e seu Tempo" e "A Aliança Liberal e a Revolução de 1930" - em que João Neves da Fontoura nos estende texto digno de estadista sarado, de marca. Asseado depoimento, razoado a rigor de cunho positivo, nas formas da lógica; entrediz-nos entanto, quando por zelo explanador ou afã de interpretação, o titubear do autor, testemunha ou personagem, frente ao desconforme improviso dos casos e rente ao ultrapropósito de acontecimentos. Tal quer-se transparente para objetividade e acurácia - e a transparência pressupõe fundo luminoso - tão logo tem de citar os "altos juízos", os "desígnios" da Providência, seu "império", o "papel" que ela lhe distribui. Alega antecipações, não pode "desviar o pensamento de certas forças imponderáveis", reitera menção de outroversas coincidências numerológicas. Duvida enfim do plano empírico: "Sonhos ou realidade? Será que a gente vê mesmo, com exatidão, as pessoas e as coisas?" Nem estamos em Alexandria ou Ásia, mas soletrando verídico relato de um americano latino, de idéias ordenadas.

Supersticioso, sim; é claro. Superstição não preconceito, o ilusório; antes quase poesia. Percepção e arejo, defensivo psíquico automatismo, uma respiração cutânea do espírito, talvez. Soubesse que poesia é remédio contra sufocação. (Acompanhei-o, primeira sexta-feira, aos franciscanos, achávamos benigno gesto sob apaziguadoras signas de ensalmo. Não empreendia longa viagem, sem à última folga visitar igreja, mas assim mobilizava-se era para o que der e vier do agir. De outra levada, voltávamos de Petrópolis, rodamos ao outeiro de São Bento, aplicaram-nos os monges a bênção de São Brás, 3 de fevereiro, acesas as velas cruzadas, era como em remoto em meu Cordisburgo sobre o Ribeirão-da-Onça, a gente reentrava a intacta confiança e infância.) Sabe-se disto - que justo os rijos fazedores, de maneira calada ou confessada têm de ser no particular susceptíveis ao mais, captem os cantos de todos os galos. Tudo, pela metade, é verdade. Os extremos já de si sempre se tocam, antes que tese e antítese se proponham.

Mas, esse tom intuicional, aquela atmosfera passada de eflúvios, compertencem ao que se espera de currículo descrito por homem público? Talvez não; tanto nuamente são mesmo é da vida.

Salvo dissermos ainda do individido discernis entre obrigação e vocação, tendência e necessidade. João Neves foi político por encaminhamento, determinismo ambiente, renovados ditames; não por vício. Melhor, por recorrente ecologia pessoal como inevitável campo de ação, a metade estática do fadário - seu dharma. Estou-lhe no eco: afirma que em política sempre caminhou e subiu dando as costas aos mais entretidos desejos, até mesmo aos propósitos mais fincados. Dela diz ter sido, "talvez hereditariamente", sua "fatalidade". Vê, nela litigando, a imposta relatividade que a macula - bem em intenção, mal necessário. Aí dá-se outra medida de sua nobreza e rareza. De fato.

Surpreendi-o, amiúde, no vivo. Uma vez, por exemplo, descansávamos, especulando disso e daquilo, chegou-se a confronto entre o político e o artista. Precipitei-me a grado de argumentos e exercício. Neves, repartido absorto, externou-se então em frases muito planas, não dissertava, recordava. Falou das obras que pudera promover na Cachoeira, de tanto que no Brasil precisava de urgente ser feito, imaginava humildes enormes realizações. De ato, entendi. O que ele pretendia e perseguia era a política substantiva, seu discreto cívico exercício e trabalhosa consecução, sacrifícios pelo cabedal coletivo, a concreta causa do povo: culto aprendido, desde quando contemplava famoso manifesto de Júlio de Castilhos, impresso em cetim branco, num quadro no escritório do Pai - que ele acompanhava, a cavalo, em suas idas de Chefe local do município. Colocava-a alta, mas na escala dos deveres, sem refugar nem reter seus aspectos subalternos.

Provável porém daí também decorram as constantes negativas que o embaraçaram na falácia das situações vitoriosas: um sobrevir de empecilhos "between the cup and the lips", entre a colher e a boca perdendo-se a sopa, e o obstinado opor-se da perfídia imanente às coisas, "die Tuecke des Objekts". Cabia-lhe, nas campanhas, "receber os primeiros e os últimos golpes", entanto que, "na hora das honrarias e dos postos", sofrer as "injustiças e preterições" - diz.

Tenho que o onerasse o handicap de excessiva sensibilidade, com a mobilidade, mercurial, conseqüente; mais alguma incontida impaciência de idealista. Faltavam-lhe, além da gana irracional que em vontade-de-poder se revela, blindagens grossas, densidade epidérmica, o quanto de macicez para o desempenho do calibanato. Da sensibilidade e inteligência tem-se sempre de pagar ingrato preço.

Por contra, que formidável campeador, quando na oposição, aquelas mesmas aparentes limitações o faziam, com destaque dado e conquistado! O que se pensava dispersivo, plástico e fragmentário, resolvia-se em flexibilidade presta, multiplicados meios e órgãos de movimento e ataque. A fartura de antenas sensitivas provia-o de incomparável tino, quase adivinhador. Funcionavam-lhe engenhadas as imaginosas aspirações, vezesmente, sem relaxe; tanto quanto jogando-o ao arranque de superação a própria experiência de reveses. Tremendo, ei-lo, contendor duro, conspirador sério, conferindo força de persuasão e evidência convincente, inchante fermento; pequeno polegar, malasarte, malino não maligno nem maquiavelhaco, mutuca - como Sócrates de si mesmo na "Apologia" diz-se "a mutuca de Atenas" - ou melhor na pressa não reta das abelhas em vôo, à mão-de-deus-padre de táticas inseguras e certeiros desatinos, fogo em todas as frentes, não lhe importando perda de chumbo ou pólvora. Espetáculo! Franzino a performar seus trabalhos-de-hércules. E, aqui, estamos no vértice do incontestável. Contai-os.

Revede, a etapas, o que dele guarda lasca e garra, e dívida à eficácia de sua impulsão sustentada exata, à ponta extrema. Recitem-se, 29/30, Aliança e Revolução; 32 a Epopéia da gente Paulista, que remeteu inadiável em prumo o Brasil; a vitória, 1945, da candidatura Dutra, por ele alevantada (e recusara filar em mãos a sua, própria, com manilha e trunfo, posta por Vargas); a campanha mesma pró-Vargas, 1950. Mas meramente marcos de geodésica, ou, devo, digo, rebojos que mexem à flor de correnteza estrênua. Drede detendo-me de algum juízo entre o quer-que de homólogo ou díspar, aí, eventos e causas. Quem julga? Apreendeu já alguém, sobre o fluxo dos fenômenos e dar-se de valores instantâneos, a ortografia das tortas linhas altas? Seja sim obediente então a intenção - em que quanta composta coisa se insere, coalesce e coere. Teste-se, no mais severo balanço, sem encarecimento, de João Neves da Fontoura: não um bélico tumultueiro, lansquenete, buscador de vantagens ou construtor de revanches. Só o servidor enxuto. Sete-capotes, rompe-gibão, tranca-porteiras, angico-branco, ouricuri que a queimada lambe e poupa, quebra-machado, tamboril-bravo. Até ao final, montou guarda.

Mas, política, tempo e modo, mudavam em antes não visto acelerar-se, ultrapassante, enquanto que a idade pegava-o já com meio frias meias mãos; tanto o viver vai maior e mais ligeiro que a gente. - "A vida é uma série crescente de restrições" - falava-me. Rejeitara ainda ser Ministro do Exterior do Governo Kubitschek. Na lonjura as trépitas festas de orador - e a diminuição auditiva (dizia-se ele um "hipoacúsico") toda maneira tolher-lhe-ia a tribuna polêmica. Embora, à altura, procurado sempre para opinião e conselho, irradiador, prezada mais sua presença condutora. Então entrou à imprensa que nem a outra paliçada. Formou de jornalista, dos pontualmente mais atuantes, em artigos e editoriais, coraçonados, escorridos, acertantes, de destopeteada bravura. Das coleções de O Globo, por mencionar, estariam de desentranhar-se, desses, volume e volume.

E envelhecia bem; isto é, tomava posse do passado. O passado também é urgente. Abriu-o em todas as páginas. Escreveu as "MEMÓRIAS". Narração e demonstração. O lutador conta - descreve as passagens de próprias guerras, fama devida... - perfila-se. Máxime. Não era homem de não prosseguir, ao sol-entrar, quando a lembrança cria exemplo. Fez grande, importante livro. Tirando-o de cadernos, maços de documentos, tanto quanto do tutano da memória, mesma, objetiva e afetiva, recuo montante. Mais de sua arte de rever e aviventar, forte honestíssima. Fiel às amizades e às inimizades; leal, acima, à verdade, perceba-se. Ivan Lins refere como João Neves fiou-lhe a ler os originais e tomou em rigorosa atenção todas as retificações; procedeu também assim com outros, igualmente íntegros e fidedignos. Quis ser justo, daí o escrúpulo e cuidados para com os fatos. Vereis que pôde falar, em desaparato, do muito que foi, "a contragosto, e o imenso que não quis ser". Seu ethos - o da era, que começa, dos comportamentos a descoberto - é o roteiro esforçado da fé e a dinâmica da humildade. A de homem culto: o que sabe pensar. Por outra parte, são as "Memórias" livro de que se honrará a nossa cultura. Relede-lo. Jamais enfara; cativa e gratifica, a cada volta; com ele se convive. Tudo põe e repõe, desenredado, simplificado, pormiudamente humano, com tacto e lisura, tanto bastante. João Neves nele confessa-se, espontâneo e discreto, desimpedido e comedido, como um recibo de entendimento, como o clamor de um cochicho. Vem franquear, a quantos, um fundo de consciência, o centro de sua personalidade. Ele mesmo - transretratado. Direi, escreveu-o para o Juízo Final, como todo livro deveria ser escrito.

Seu fervor literário, aliás, se extravasava sempre. Lido, lia em dia, fazendo das leituras a um tempo húmus para a mente e estímulo às idéias que povoavam-lhe aqueles retidos "territórios íntimos". Dividia-os, entanto, prazeroso pleno conversador, nos entremeios da ação, lembro-o de novo: quaisquer vezes, quando a gente corria - "Allons-y!" - estradas de Flandres e Holanda, ou passeando sós longo-praias de Ipanema e Leblon, ou tomando chá à beira do Marne, qual se sob sombra de um plátano à borda do Ilissos, quer debaixo de caraíba ou umbu, vendo a covilha ou a chapada.

Nem esqueço, em Bogotá, quando a multidão, mó milhares, estourou nas ruas sua alucinação, tanto o medonho esbregue de uma boiada brava. Saqueava-se, incendiava-se, matava-se etc. Três dias, sem policiamento, sem restos de segurança, o Governo mesmo encantoado em palácio. Éramos, bloqueados em vivenda num bairro aristocrático, cinco brasileiros, e penso que nem um revólver. Recorro a notas: "12.IV.48 - 22 hs. 55'. Tiros. Apagamos a luz." Mas, o que, com João Neves, por sua calma instigação, então discorríamos, a rodo, eram matérias paregóricas: paleontologia, filosofia, literatura; ou lembrava tropelias brilhantes de seu Sul, citava o saudoso nosso Dr. Glicério Alves, nobre tipo humano, do melhor gaúcho e amigo. E, todavia foi sua determinada e ativa decisão um dos ponderáveis motivos por que a IX Conferência se manteve na capital andina, adiante e a cabo.

Sua contenção derivava do bom gosto, essa forma ameníssima de renúncia; imolava-se, diário diuturno, com naturalidade. Daí a gentileza de espírito e elegância de maneiras - econômico de corpo mas nãonadamente mesquinho, petulante ou cosquilhoso - jamais vulgar nem em desclasse. E a permanente galanteria: portava-se com sua netinha Fátima como se perante uma lady ou um flirte. E no neto Joãozinho já visse futuro o adulto, seu continuador em renome, renhir, responsabilidades. Sob o afoito combativo, a gente acertava mais, sempre, a tranqüila sabedoria do medimento: sophrosyne. Não punha contra si em movimento os mecanismos da Nêmesis. Era quase como um menino que ele pedia alguma coisa à vida. Compreensivo, notava-se pela benevolência e de-sobra tolerância - "Ninguém muda ninguém..." - não julgava. Usava e dava a esperança. Imortal é o que é do sofrido e espírito; tudo, abaixo daí, é póstumo. As coisas que ele me disse não se afastam com o tempo.

E expande-se: "... cada alma vai sentindo, na descida do caminho, a ânsia de se devotar a deveres mais altos do que as paixões públicas." Tem-se então, imediato, avançando dos grandes fundos, outra extraordinária personalidade, Arthur da Silva Bernardes, que faleceu súbito, em meio à lida lúcida, mas deixando, como por toque de preconhecimento, num derradeiro bilhete: "O fim do homem é Deus, para o qual devemos, preferentemente, viver. Eu, porém, vivi mais para a Pátria, esquecendo-me d'Ele" - pedindo ainda aos amigos, correligionários, e aos de boa-vontade, que com orações o ajudassem a resgatar aquela falta.

João Neves, tão perto o termo, comentávamos, suas filhas e eu, temas desses, de realidade e transcendência; porque agradava-lhe escutar, ainda que não tomando parte. Até que falou: - "A vida .é inimiga da fé..." - apenas; ei-Io, ladeira pós ladeira, sem querer fim de estrada. Descobrisse, como Plotino, que "a ação é um enfraquecimento da contemplação"; e assim Camus, que "viver é o contrário de amar." Não que a fé seja inimiga da vida. Mas, o que o homem é, depois de tudo, é a soma das vezes em que pôde dominar, em si mesmo, a natureza. Sobre o incompleto feitio que a existência lhe impôs, a forma que ele tentou dar ao próprio e dorido rascunho.

Talvez, também, o recado melhor, dele ouvi, quase in extremis: - "Gosto de você mais pelo que você é, do que pelo que você fez por mim..." Posso calá-lo? Não, porque sincero sei: exata estaria, sim, a recíproca, tanto a ele eu tivesse dito. E porque deve ser esta a comprovação certa de toda verdadeira amizade - impreterida a justiça, na medida afetuosa. Acredito. Nem creio destoante ou mal assentado, numa solene inauguração de acadêmico, sem nota de despondência, algum conteúdo de testamento. Giremos a perspectiva.

Ainda talvez mais que eu, ele vos agradeceria minha presença aqui, aonde desejei vir – para o ver "claro e quieto" que Machado de Assis inculca. Só não cismando, há-de-o, que em sua mesma vereda, a subseguir, orgulhoso e transido, o elenco destes que ganharam vida difícil, trabalharam sem repouso e hora por hora renderam-se à intimação interna - escolha ou chamado. Eles, Neves da Fontoura, Álvares de Azevedo, o que morreu moço, poento de poesia. Coelho Neto, amoroso pastor da turbamulta das palavras. Tenho-os comigo. Pois não descendemos dos mortos?

Deferidos, entretanto, à simpatia dos vivos. Vós. Demais que vindo-me o bom modo de vosso agasalho pela palavra de um a mim bem próximo, admirado e querido, malungo, autorizado. Afonso Arinos de MeIo Franco -: capaz para pretender-se "mineiro, totalmente", por estirpe e por espécie, "das Gerais e dos Gerais"; idôneo de declarar que tudo o que sente de mais espontâneo e natural no seu espírito "tende a considerar intelectualmente e mesmo literariamente a vida"; autor de A Alma do Tempo, que fundo releio, para alongamento e consolo, um dos livros maiores do pensar e sentir brasileiros; originário dessa Paracatu - grande e memoriosa entre chapadões sertões -, e cuja estranha notícia, trazida por vaqueiros, boiadeiros, tropeiros, desde a meninice enriquecia-me a imaginação, qual outrotanta maravilhosa Tombuctu, a depois do Saara, sobrenomeada "a Rainha das Areias". Dele temo e alegra-me ouvir afirmações de doador muito entusiasmado; já que arriscado e conturbante é a gente se tirar das solidões fortificadas. Trar-me-á, igual, simbólico, vosso primeiro abraço, o escritor sem falsas e amigo sem falha: Josué Montello. Cumulo-me.

Nem agüentaria dobrar mais momentos, nesta festa aniversária - dele, a octogésima, que seria hoje, no plano terreno. Tanto tempo a esperei, e fiz que esperásseis. Relevai-me.

Foi há mais de quatro anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente, morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias profundezas. Morreu, com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias.

Mas - o que é um pormenor de ausência. Faz diferença? “Choras os que não devias chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta" - Krishna instrui Arjuna, no Bhágavad Gita. A gente morre é para provar que viveu. Só o epitáfio é fórmula lapidar. Elogio que vale, em si, perfeito único, sumário: JOÃO NEVES DA FONTOURA.

Alegremo-nos, suspensas ingentes lâmpadas. E: "Sobe a luz sobre o justo e dá-se ao teso coração alegria!" - desfere então o salmo. As pessoas não morrem, ficam encantadas.

Soprem-se as oitenta velinhas.

Mais eu murmure e diga, ante macios morros e fortes gerais estrelas, verde o mugibundo buriti, buriti, e a sempre-viva-dos-gerais que miúdo viça e enfeita: O mundo é mágico.

- Ministro, está aqui CORDISBURGO.

sábado, 13 de junho de 2015

PALÁCIOS DA BORRACHA


PALÁCIOS DA BORRACHA


Resenha de Rogel Samuel

A parte paraense do livro é excelente. A de Manaus deixa a desejar. Os palacetes da borracha de Manaus não foram mostrados (será que desapareceram?). Eu poderia apontar uns 10 - o dos Miranda Correia (já demolido), uns dois ou 3 na praça da Saudade, um em frente ao Ideal Clube, o castelinho de Adrianópolis, ao lado do de meu avô. Na rua Joaquim Nabuco há vários. Há o palacete de J. G. de Araujo Jorge ao lado da casa de Álvaro Maia. Na Sete de Setembro, além do Palácio Rio Negro há vários. Na rua Barroso, além da Biblioteca, há outros. Na Av. Eduardo Ribeiro também. Enfim, estou afastado de Manaus há mais de uma década, minha memória me trai. Mas a bibliografia é fraquíssima.
Apesar disso, o livro é belíssimo. E barato. 

quinta-feira, 11 de junho de 2015

MÃOS AO ALTÍSSIMO






"Uma menina síria de quatro anos teria levantado as mãos para o alto como se estivesse se rendendo ao confundir uma câmera fotográfica como uma arma. A imagem comovente foi compartilhada pela fotojornalista Nadia Abu Shaban no Twitter."

Mãos ao Altíssimo!

BERNARDINA DE OLIVEIRA


"Menina síria!
Olhar que derruba mundo em partes desiguais.
Olhar sábio de cores ingênuas.
Lábios afinados de tristeza,
Mãos sobre cabeça,punhos de anjo forte.
Emolduram homem que foge,
Choro contido
Sangra noite enluarada.

Holofote de longas franjas constrange,
Sopro no curso dos mares,
Desvio no ventre dos rios.
Burburinho nas cidades!

Faces coradas e belas,
Extrema-unção de estrelas ,
Agasalhada  discrição,
Ponto cego no voo da águia ,
Contorcida árvore aprisiona cenário:
Tijolos, saibro e céus.

Insígnia  cravada neste milênio de amarras.
Muito quente! Muito quente! Gritara a vietnamita!

Olhares são flechas,
Olhares são rosas sem espinhos,
Espinhos são olhares dentro de nós,
Estilhaços de cobre e chumbo.

Acendam verdes semáforos!
Curvem-se todos:
- Essa menina precisa passar!"

Bernardina de Oliveira