sábado, 31 de janeiro de 2015

Retrato do artista quando coisa


Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.
MANOEL DE BARROS

Designo - CLARISSE DE OLIVEIRA



Designo - CLARISSE DE OLIVEIRA


O Pior,
é o teu silencio...
Um Esquife do Silencio,
é a Tua Verdade.
Ainda me conformo que tens
para mim,
Uma Verdade!
Se a Tua Sinceridade,
está sendo embalsamada,
para que reste num Templo,
ou num Museu,
o que sobrou, acompanha
minha Vida,
para que o meu Existir,
tenha um Eco
em Alguma Parte do Universo,
até a chamada
do deus Seth
do Antigo Egito
que embaralhou o meu Destino,
como faz com tantos outros
Destinos,
para que a Sabedoria
represente para
mim 
o reflexo divino
da minha oferta
à Divindade.
clarisse 

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II – um sertão inesquecível





Neste capítulo em especial, examino hipoteticamente a atuação de um determinado escritor sertanejo e do seu personagem-narrador, aproximando-os conscientemente. Barthes (evidentemente, o Barthes da primeira fase cientificista) diz que não se deve confundir o narrador com o escritor, já que o narrador é personagem também, mas, o leitor-intérprete das obras de Guimarães Rosa, ao penetrar no texto, dialeticamente descobre que o narrador roseano atua como intermediário entre a História e o Ficcional, sob o comando de seu criador. O narrador, como porta-voz de uma entidade demiúrgica, há de transmitir pensamentos, questionamentos, dúvidas, todo um elenco de emoções que fazem substancialmente parte de seu universo interiorizado e imediato ou, talvez, sentimentos não imediatos, que provêm de raízes profundas e metafísicas. O narrador roseano, como personagem do Sertão, não pode ser confundido com o Artista Literário Guimarães Rosa, no que diz respeito a uma narrativa que tente registrar a vida do Homem como personagem histórico. O Artista Literário Guimarães Rosa, cidadão do mundo, mas nativo do sertão, pode projetar-se em seus personagens, fazendo emergir suas raízes sertanejas. Nhô Augusto, Joãozinho Bem-Bem e o narrador, todos os personagens do seu universo ficcional representam as várias faces/fases de seu próprio país. Neste caso, o narrador sertanejo atuando como o autêntico herói moderno de Lukács71, porque ele é historicamente, também, o indivíduo que faz parte da sociedade moderna (núcleo deteriorado que determina as atitudes externas de seus componentes), sociedade que exige determinadas representações dos indivíduos em suas relações sociais; sociedade de valores esteriotipados, na qual o valor maior é o valor do modo de produção e da apropriação de um capitalismo agrário.

O narrador de Guimarães Rosa de A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA (aqui, envolvo também em um invólucro só todos os narradores das inúmeras narrativas de Guimarães Rosa) procura valores humanos autênticos em seu momento e não os encontra, conhece um mundo perfeito já distanciado da realidade moderna e, graças ao poder das recordações, procura significar esse mundo e consegue em determinados trechos da narrativa, mas sua própria fragmentação interior, fragmentação existencial de indivíduo, ligado também à movimentação histórica, o desvia para um final discursivo, questionador e poético. Colocando o narrador em evidência, o ficcionista moderno transforma o herói Nhô Augusto em joguete do destino, submete-o às exigências de uma ficção-arte refletora de uma modernidade sem rumo.

Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas viajoras. Agora, amiudava-se o aparecimento de pessoas — mais ranchos, depois, arraiais brotando do chão. E então, de repente, estiveram a muito pouca distância do arraial do Murici.
  Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós
vamos, porque estamos indo é com Deus!...72

A trajetória de vida do personagem repete a trajetória existencial do narrador enquanto face ficcional do Artista. Este é proveniente de um espaço sócio-substancial moderno, mas que conserva um elevadíssimo grau de primitividade. O poder do narrador roseano é plurissignificativo, pois é possível observar nele as diversas fases/faces de poder do Homem e do Mundo. O alter ego do escritor moderno analisa esse poder, que é seu próprio poder, enquanto refletor de uma sociedade indefinida e contraditória, ao mesmo tempo agrícola e burguesa. O sertão mineiro do século XX, em sua concretude, é um espaço conflituado, de onde, em princípio, o narrador procura recuperar unicamente o universo comunitário de sua matéria de análise, servindo-se da memória. Nos primeiros parágrafos da narrativa, percebe-se tal intenção. Ele apresenta o sertão que se insere em seu momento sócio-substancial, mas, ao mesmo tempo, apresenta a matéria mítica existente nesse mundo, remanescente de um mundo primitivo, já distanciado no tempo. O mundo roseano de A hora e vez de Augusto Matraga é um núcleo perfeito, e seu personagem também, mas a ótica do narrador se encontra fragmentada, e seu personagem sofre as variações dessa fragmentação, que se evidencia posteriormente mediante um discurso insólito, mesclado (trovas, exclamações, indagações, poesia e prosa). É o discurso roseano que faz a mediação entre o mundo perfeito e mundo inacabado; é o discurso que evidencia o conflito do narrador moderno, indivíduo problemático cercado por uma sociedade desestruturada. Por isto, o narrador abandona o tom oral normativo do início, instaurando o conflito narrativo (medos e questionamentos da autocrítica burguesa).

Em meio à plenitude de vida, e através dessa plenitude, o romance dá notícia da própria desorientação de quem vive.73


A desorientação do narrador de Rosa, personagem moderno, se caracteriza pela desorientação verbal, discurso diferente e agressor, se penso nos estranhamentos lingüísticos, distantes dos padrões normativos. "Não me submeto à tirania da gramática"74, diz Rosa a Lorenz. Seu narrador também não se submete, porque não se trata mais de desenvolver o ato metódico de contar uma estória acontecida, mas preencher os vazios de uma narrativa insólita, na qual os inesperados ocorrem sem que o narrador os conheça, mas que são criados e idealizados pelo escritor pós-moderno. A narrativa é insólita, e os inesperados ocorrem, porque o narrador roseano foi obrigado a criar novas atitudes discursivas que representassem as faces desencontradas da decadente sociedade moderna, sociedade de aparências. Descobrindo o poder da palavra multifacetada da pós-modernidade, ele descobre o poder do discurso ficcional como representante de um mundo diferente, porque mais verdadeiro em seus questionamentos. Assim, desempenha um papel diante dos leitores e, implicitamente, exige que os observadores de seu verdadeiro eu o levem a sério, porque ele levou a sério a impressão que quis transmitir. O narrador de Rosa impõe sua ótica, pede aos leitores que acreditem nos atributos de seus personagens e na grandeza desse Sertão que é somente dele; exige que se ouça a sua voz para além das exigências sociais. Se o sertão, em sua concretude, não é exatamente assim, o Sertão de sua representação é o que ele idealizou. O narrador-ator, personagem-narrador, se movimenta à vontade nesse espaço idealizado, porque está consciente da verdade que deseja transmitir, está convencido "de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade"75.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

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NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II – um sertão inesquecível



Passo aqui a dialogar com os meus leitores: analisemos esta afirmativa: "o mundo em que vivo é o sertão"65. Evidentemente, ele não se refere ao mundo burguês, que se encontra longe do sertão, enquanto algo remanescente do mundo medieval. Fala do sertão que está dentro dele, de um mundo só dele, onde pode expressar-se sem falsos valores, único mundo no qual ele realmente é. Assim, sua literatura é autêntica, pois nasceu de sua verdadeira vida. Como indivíduo, que representa uma determinada classe social, não poderia jamais expressar-se como sertanejo, pois acarretaria a rejeição do grupo, que não o aceitaria em seu despojamento. Se a sociedade está organizada para projetar falsos valores, a saída de um homem sensível e inteligente é projetar os valores verdadeiros do sertão por meio da literatura, sem que, com isso, macule a impressão que o grupo social já formou a seu respeito. Valendo-se do narrador, impõe seu verdadeiro Sertão ao grupo que o cerca, manipula as impressões sobre o sertão, direciona o olhar deles, encena um espetáculo, em que o ato principal é realçar a grandeza de um espaço, que, de ordinário, não é muito valorizado. Pensemos, por exemplo, no falar do sertanejo, motivo de risos nas anedotas populares.

O narrador representa a face ficcional do Artista (ficção-arte). Se ele não pode demonstrar sua verdadeira aparência, a sua verdadeira maneira de ser, pois estaria incorrendo numa provável queda em seu status social, como indivíduo que se projetou positivamente diante de um determinado grupo, só mesmo a recriação de um outro mundo, seu verdadeiro mundo, para viver coerentemente a sua íntima realidade e se sentir autêntico.

Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade.66

Eis o conflito do sertanejo (oriundo de uma autêntica estrutura comunitária) que se tornou intelectual (ser solitário da individualizada sociedade moderna). Eis aqui um Artista cultíssimo, poliglota, mas distanciado de certos intelectuais.

(...) não suporto essas figuras intelectuais, das quais se espera que a qualquer momento lhes brotem da boca bolas de papel. Inteligência, prudência, como eu as interpreto, cultura elevada, tudo isto está bem, pois o escritor atual deve possuir todas estas qualidades. Mas não deve se transformar em um computador. Não deve abandonar as zonas do irracional, ou então deixa de produzir literatura e só produz papel. Flaubert, Dostoievski, eram sacerdotes da palavra; Zola, ao contrário, foi apenas um charlatão e, por isso, hoje, nada significa para nós, pois a necessidade que suas palavras expressam não existe mais. Assim acontece com todos os que ligam à necessidade do dia-a-dia o seu chamado compromisso e além disso não possuem as faculdades lingüísticas necessárias para poder fazer literatura.67

Este indivíduo da Entrevista já alcançou credibilidade diante do grupo e diante do mundo. Agora, ele pode desempenhar seus diversos papéis e, ao mesmo tempo, transmitir uma parcela de autenticidade que se incrusta em seu próprio ser (autenticidade de um homem nato de um mundo verdadeiro). Apesar das impressões que projeta para um determinado núcleo, pode dar-se a conhecer intimamente, porque já convenceu o grupo quanto à grandeza de seus vários papéis na vida. Assim sendo, não é ele que se encontra diante de um grupo para ser avaliado, já superou tal fase; o foco de avaliação parte dele em direção a um determinado grupo. Aquele que se projetou positivamente agora pode julgar esses indivíduos e, ao mesmo tempo, ser aceito. Claro está que essas figuras não se colocam numa posição depreciativa, simplesmente porque acreditam no papel que representam. Como diz Goffman, "somente um sociólogo ou uma pessoa socialmente descontente terão dúvidas sobre a 'realidade' do que é apresentado"68. O Artista, é uma pessoa socialmente descontente com tais indivíduos e pode, graças à interação positiva que emite, demonstrar seu descontentamento. Já se conscientizou da multiplicidade de seus papéis na vida e na ficção; não tem dúvidas quanto à realidade desses papéis e da aceitação do grupo (do mundo) quanto a sua atuação. Para que isto ocorresse, foi necessário recontar-se em várias narrativas e, como João, personagem do sertão, decalcar na literatura a sua verdadeira face, nata, não elaborada. "Às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um conto contado por mim mesmo. É tão imperativo"69.

O escritor conta e reconta seu verdadeiro personagem, por intermédio de todos os personagens de seu mundo ficcional, porque todas as informações que o grupo buscou a seu respeito alcançaram credibilidade; apenas a sua verdadeira informação, a informação de suas raízes sertanejas, não pode aparecer explícita no seu dia-a-dia existencial. Já que o desejo de se revelar é autêntico, a ficção supera os obstáculos, faz o Artista encontrar-se intacto num mundo onde as aparências prevalecem, definindo positivamente uma situação de vida que, se realizada concretamente, seria paradoxal.

Escrevendo, ele desempenha um papel decisivo no sentido de influenciar o grupo, ou seja, seus leitores. Escrever é a representação do verdadeiro eu do Artista do século XX na vida cotidiana, cujo objetivo é alertar quanto à degradação do mundo hodierno, mundo que apenas realça valores externos e deteriorados. As situações reais ou insólitas são intencionalmente arquitetadas dentro do percurso narrativo, para demonstrarem a validade da modéstia e da simplicidade. O grande escritor, o médico, o soldado, o diplomata, o poliglota não exibe seus atributos intelectuais ostensivamente, prefere antes mostrar a sua autêntica humanidade de homem provindo do sertão. "A alquimia do escrever precisa de sangue do coração. (...). Para poder ser feiticeiro da palavra, para estudar a alquimia do sangue do coração humano, é preciso provir do sertão"70. A influência, portanto, é autêntica, graças ao desempenho do escritor, que soube/sabe buscar o respeito e a confiança dos que o cercam. O seu ponto de vista ficcional induz o narrador, determina sua atuação, obriga-o a um papel que o faça ser aceito pelos leitores. O narrador é sertanejo, o dono do narrar nasceu sertanejo, tornou-se citadino e intelectual. A atuação do narrador sofre o jugo do Artista, e este deseja pôr em prática uma verdadeira representação, que seja um aviso, um alerta contra prováveis rupturas sociais.

Verifiquei, com Goffman, que o Artista é manipulador da impressão que causa no leitor, quando intenciona revelar o Sertão. O Sertão como um lugar que possui limites como qualquer núcleo social. O narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, agente (ou intermediário ou alter ego) do Artista, expõe um determinado Sertão, definindo também a situação desse espaço. Mostra aos leitores a parte externa desse lugar como ele a vê. Vigia e recria a região dos fundos, impedindo-os que vejam a face decadente do antigo e heróico sertão mineiro, submetido às imperfeições da modernidade. Impede, nesse espaço recriado, que os leigos em Ciência da Literatura observem um sertão já há muito abalado pelas investidas do progresso. Este tipo de representação (o da exposição dos valores degradados da realidade sertaneja) não está nos impulsos criadores do Artista, aquele que é proveniente de um espaço imaculado, localizado nas impressões da infância. Advindo desse sertão, é natural que se torne membro ativo da equipe de atores/personagens que o compõem. Por isso, a familiaridade do narrador, a solidariedade para com os personagens, o desejo de ressaltar um determinado e ímpar Sertão e guardar segredo absoluto das imperfeições que já existem concretamente nesse espaço. O Sertão ficcional de Rosa é um universo particular perfeito, circundado pela imperfeição do progresso. É lícito guardar segredo das imperfeições modernas, que prejudicam a representação de um Sertão idealizado, quase medieval. Assim, descobre-se o acordo tácito entre narrador e leitor (ator e espectador). A recriação do sertão é verdadeira, porque acredita-se nessa perfeição. O narrador sustenta essa credibilidade, define a situação do sertão, que foi projetada no intuito de desvelar a face poética e mística de uma anteriormente região incomum.


quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II – um sertão inesquecível

Muitos exemplos são oferecidos na Introdução de Goffman, mas o que fica claro é a idéia de que o processo de comunicação do indivíduo é semelhante ao desempenho do ator: há encobrimentos e descobrimentos, revelações falsas e redescobertas, e, como ator, o sujeito manipula o próprio comportamento, transmite espontaneidade e segurança, observa as reações que desperta. Nesse momento de observação, levará vantagem sobre o ator, influenciando e dominando os que se encontram em sua volta. Destaca também a possibilidade de posteriores contradições, em relação às posições iniciais dos diversos participantes. Durante o percurso da influência, poderão desenvolver-se situações embaraçosas, que tornarão o indivíduo-ator desacreditado diante do grupo-platéia, mesmo sendo ele, nesse momento, o indutor da análise. Quando tal situação ocorre, a "interação face a face entra em colapso"59. Ao falar de projeção, realça o fato de que "não devemos passar por cima do fato essencial de que qualquer definição projetada da situação tem também um caráter próprio"60, ou seja, qualquer definição projetada procura ressaltar o caráter moral das projeções.

A sociedade está organizada tendo por base o princípio de que qualquer indivíduo que possua certas características sociais tem o direito moral de esperar que os outros o valorizem e o tratem de maneira adequada.61

Evidentemente, esse indivíduo não se considera pequeno dentro da escala social, porque a própria sociedade já o avaliou e o aceitou. É correto salientar que há vários graus de aceitabilidade dentro da escala social. Mesmo sem saber em que patamar se encontra, se ele já se considera melhor, e a sociedade o acolhe, certamente, graças à organização social, esse indivíduo espera que o valorizem e o tratem de maneira especial.

Há, ainda, o indivíduo que projeta a impressão de possuir certas características sociais. Esse indivíduo terá de demonstrar possuir de fato tais características, se quiser conquistar o respeito do grupo. Penso que, mesmo possuindo tais atributos, mesmo tentando demonstrar ser o que é, se não convencer o grupo, jamais será aceito. Se ele deseja ser o que realmente é, sem falsos atributos, será tratado de acordo com o que projeta sobre si mesmo, ou seja, não será valorizado, porque o grupo não o aceitará em seu despojamento. A sociedade está organizada para projetar falsos valores, e os indivíduos que a compõem são guiados no sentido de os projetarem também.

Para evitar tais embaraços, há práticas preventivas. Dentro dessa categoria, há as práticas corretivas, que são empregadas no sentido de corrigir as "ocorrências desabonadoras que não tenham sido evitadas"62. Quando isto acontece, a prática corretiva passa a ser denominada prática defensiva; o sujeito da ação se defende, procurando corrigir a ocorrência desabonadora. Há também a chamada prática protetora. Nesse caso, um outro sujeito, participante do grupo, procura proteger o indivíduo, resguardando-o de uma possível má impressão.

Goffman fecha suas teorizações, demonstrando que, para evitar possíveis rupturas, pré-existem nos grupos sociais "brincadeiras e jogos nos quais são intencionalmente arquitetadas situações embaraçosas que não devem ser levadas a sério"63. Há um estoque de fantasias e contos, cujo teor serve de aviso, procurando alertar os indivíduos, persuadindo-os a serem modestos em suas pretensões.

Como já observei no início, Goffman só realça seu objetivo de trabalho no final da Introdução, na página vinte e três. Depois de desenvolver implicitamente tal objetivo, ou seja, todas essas questões que foram recuperadas até agora, ele define claramente a sua matéria teórica. A interação face a face é a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, é o encontro, ou por outra, é o embate que se faz presente, quando dois ou mais indivíduos se encontram face a face.

Desempenho, para Goffman, é definido "como toda atividade de um determinado participante, em dada ocasião, que sirva para influenciar qualquer um dos participantes"64. Assim, desempenho é a representação propriamente dita. É a representação do eu na vida cotidiana. É o indivíduo procurando pôr em prática uma determinada atuação diante de uma determinada platéia. É o indivíduo representando um papel que o faça ser aceito pelo grupo, que o faça obter impressões positivas desse grupo, que o observa e julga.

No capítulo dedicado às representações, ou seja, o papel que o indivíduo representa diante de um grupo, Goffman compara tal atitude com a representação do ator frente à platéia. Fala de fachadas, dramatizações, idealizações, representações falsas, mistificações, realidade e artifícios.

Minha propedeutica é sobre o Artista e o texto literário; evidentemente, não pretendo analisar o comportamento humano dentro de uma perspectiva antropológica ou social, detenho-me no comportamento dos personagens ficcionais, refletores de atitudes humanas e, muito especialmente, intento observar o comportamento de um determinado personagem da narrativa A hora e vez de Augusto Matraga: o narrador. O narrador aqui é o meu objeto de análise (ou sujeito) e, segundo minhas teorizações, atua com muito poder dentro da narrativa, delegando ao personagem Augusto Matraga a função de coadjuvante. Utilizando-me das idéias de Goffman, quero ressaltar que esta aproximação não é aleatória, se penso que efetivamente o narrador roseano possui uma dupla feição: é um ser social, na dialética da comunhão e do conflito com seu espaço substancial, portanto, ser histórico, graças a sua função de outro eu do Artista e, ao mesmo tempo, participante ativo da realidade ficcional, participante de um determinado núcleo social, envolvido na movimentação das seqüências evolutivas desse mundo. O narrador, usando os postulados de Goffman, funcionaria como máscara, encobrindo a verdadeira face do Artista, aquela que se localiza na infância, na qual se encontram as bases de sua estrutura de vida. O narrador como mediador de duas realidades, ansioso por não transgredir a perfeição do sertão, observando-o com os olhos da recordação, mas impotente em relação a si mesmo, ser fragmentado que é, espectador de um mundo decadente, testemunha da degradação da sociedade burguesa, ainda que sertaneja.


Não estou, neste exame teórico-crítico da matéria ficcional de Guimarães Rosa, analisando o comportamento humano, mas não aceito furtar-me a analisar, hipoteticamente, o comportamento do Artista Literário, pelo prisma de seu eu ficcional. Penso no Artista como um cidadão contemporâneo, viajado, culto, cosmopolita, todos os atributos que o fazem respeitado diante de um determinado núcleo social, projetando uma boa impressão, manipulando as inferências do grupo, demonstrando possuir grande influência ante os outros, visto que alcançou altas honrarias na escala social, graças ao desempenho de seus diversos talentos: médico, soldado, diplomata. Entretanto, esse Artista é nato de um mundo não valorizado pela sociedade elitista; suas origens estão no sertão mineiro (sertão ainda rude); em sua concretude, ainda não-poetizado. Há colisão, choque, conflito, diferentes forças que atuam em seu próprio íntimo, enquanto singularidade ativa do seu núcleo social, inseparável da ação do mundo que o cerca. Esse Artista de criativos textos ficcionais, enquanto indivíduo, conhece o papel que representa diante da sociedade; sua inteligência o direciona no sentido de que o grupo o leve a sério em sua atuação. Mas, e o sertão da infância, localizado em suas recordações mais importantes? E o Sertão, casa íntima do Artista? Aquele Sertão que não se esquece, aquele Sertão da Entrevista ao crítico Lorenz, em que o sertanejo/citadino Guimarães Rosa afirma que leva o sertão dentro dele e que o mundo em que vive é também o sertão.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O AMOR

O AMOR
          O amor depende de condições. Exige duas pessoas. Nem uma, nem três, quatro, cinco. Seu número fixo é dois.
          Exige coincidência de duas vontades. Mútuas. Não uma que dá, outra que recebe. Ou o contrário. Tem de haver recíproca vontade. Mão dupla. Nem atração. Mas vontade mútua.
          Se há possuidor e possuído, não há amor. Mas sado-masoquismo.
          O amor não é infeliz, quando ativo. Amor existente, e infeliz, é contradição de termos. Como um quadrado redondo. Se há amor, há felicidade, instantânea, imediata, mesmo passageira (e qual felicidade não é passageira?). Energia, liberdade.
         No amor não pode haver prisão. Há controle? Não há amor. Há fraqueza? Amor não há.
         O Padre Vieira define, sabe bem o amor. Ainda que Padre não ame, como nós, leigos, ele conta do amor místico. Mas é amor, e,  em certo sentido, êxtase. O amor é êxtase. (Abro um parêntese: Com o levantamento de casos muito antigos colocados nas manchetes, nas capas das revistas, que serve para enfraquecê-la, a Igreja deve atualmente estar sofrendo uma retaliação política. Não é preciso ser cientista político para saber por quê).
         Na época de Vieira, o Brasil era  "paraíso" do amor. Não havia pecado debaixo da linha do Equador (pecado mata o amor, ao nascer). Todo amor é puro. Principalmente o sexual. Nosso clima brasileiro, praias, frutas, a cândida nudez indígena, o exotismo, o afastado das gentes... O Brasil nasceu sob o signo do erótico. Basta ler "Casa grande & senzala", de Gilberto Freire.
         Vieira, grande padre, grande pregador moralista, deve ter mantido a castidade. Mas a castidade do amor também é amor.
         O amor não se corrompe, não se compra. Não tem idade, sexo, limites. Nem é cabível em definição. Não é conceitual, teorético. O poetas são os que dele dão conta. Definem os amantes, que "se amam cruelmente, e com se amarem tanto não se vêem", diz Drummond.
         Em "Amor e medo", o poeta Casimiro diz do amor:

Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amôres:
— Meu Deus! que gêlo, que frieza aquela!”

Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segrêdo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela - eu moço; tens amor - eu mêdo!

Tenho mêdo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas sêcas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me entumece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.

         Eis Amor. Tememos amor. É a dissolução do "eu". Quando amamos, mergulhamos em abismo. Nos perdemos. A felicidade apavorante do amor. Que quer tanto, é tanto, que eu, um reles cronistazinho de fim de semana, e pretensioso, meti-me a falar do que não sei, do amor, caindo no ridículo de todo amante.
         Certo é, e também, que há amores trágicos. Ou tragédias amorosas. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda.
         Certa vez tentei assistir a uma impressionante adaptação de Romeu e Julieta. Ele era um jovem palestino muçulmano; ela era uma menina judia israelense. Em plena guerra!        Atravessando barreiras e fantasmas!
         Num dos mais belos poemas de amor, Tristão e Isolda, Wagner diz mais ou menos assim: "Para matar-me basta que ele me olhe! Se eu vir a tristeza de seus olhos, seu olhar penetrará meu coração como um punhal!" Eis o grande Amor, acima da vida e da morte, sobre as limitações humanas!
         O amor, nobre, importante sentimento, que, como toda Arte, só aprendemos na Obra de Arte. A arte nos ensina a amar.
         Ou então, como disse certa vez Drummond: "Amar depois de perder". Aprendemos depois da perda.
         "Triste sina, estranha condição".
         (Diz Camões).


Rogel Samuel

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

28 ANOS DE FALECIMENTO DE J. G. DE ARAÚJO JORGE

28 ANOS DE FALECIMENTO DE J. G. DE ARAÚJO JORGE

28 ANOS DE FALECIMENTO DE J. G. DE ARAÚJO JORGE

28 ANOS DE FALECIMENTO DE J. G. DE ARAÚJO JORGE Dia 27 de janeiro de 1987 falecia no Rio de Janeiro o poeta José Guilherme de Araújo Jorge, o “poeta de massas de maior projeção no Brasil”. Ano passado a Academia Acreana de Letras celebrou o centenário de nascimento do poeta, nascido a 16 de maio de 1914, na então Vila Seabra, hoje Tarauacá (AC). 

OS VERSOS QUE TE DOU...

Ouve estes versos que te dou, eu os fiz
hoje que sinto o coração contente,
- enquanto o teu amor for meu somente,
eu farei versos... e serei feliz ...

E hei de faze-los pela vida em fora
versos de sonho e amor, e hei de depois
relembrar o passado de nós dois,
esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura
são versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás de escutá-los, sem ninguém
que possa perturbar nossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás de um dia, mais tarde, revive-los,
nas lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los... com saudade, em tua dor,
hás de rever, chorando, o nosso amor,
e hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido
e outros versos quiseres, teu pedido
deixa ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá, novamente, então tu fores,
podes colher do chão todas as flores
pois são versos de amor que ainda te dou!..


J. G. DE ARAUJO JORGE

A ÁRVORE DA MORTE - CLARISSE DE OLIVEIRA

A árvore da morte




Aos nos dirigirmos à árvore de Pequi, cujos frutos eram os preferidos do Dr. Lund, o dinamarquês que retirou esqueletos de animais antidiluvianos da Lagoa Santa, Minas Gerais, afim de sermos filmados numa homenagem do Centro de Arqueologia Brasileiro, me apontaram imensa árvore, me dizendo:
- Naquela árvore, Fernão Dias Paes Leme, enforcou seu filho, que estava sempre ameaçando se apoderar da chefia da Bandeira.

Sertão: Casa da Infância

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II – um sertão inesquecível

II.1 - Sertão: Casa da Infância


As máscaras primordiais e ficcionais do universo da primeira fase criativa são a garantia de segurança emocional do Artista sertanejo que convive com os valores da modernidade. Disfarçado de narrador do sertão, ou mesmo diluído em seus personagens, ele retoma seu mundo de origem e se protege das prováveis críticas depreciadoras. Essas máscaras, que garantem sua segurança emocional no mundo moderno, têm a vantagem de se situar num plano diferente do plano da história contínua. A máscara virtual, diferente da máscara real, que "não se engaja verdadeiramente num processo de dissimulação"46, que é a pura negatividade do ser, que permite o mascarar-se ou ser desmascarado, na fenomenologia do ser que se dissimula, representa o desejo de alcançar a segurança total da máscara. Enquanto diversas máscaras habituais, são "incessantemente tomadas e retomadas, sempre incoativas"47, sempre prontas a um novo começo de proteção. O ficcionista, indiscutivelmente criativo, se protege das situações insólitas do cotidiano moderno, recriando o sertão da infância e todos os seus habitantes. Esses habitantes do sertão, recriados, são partículas íntimas de seu interior sertanejo. A dissimulação do Artista Literário, sertanejo e pós-moderno, é uma conduta intermediária, oscilando entre o oculto e o visível. O Artista se oculta nos meandros de sua infindável narrativa, ou seja, em todas as suas narrativas da fase criativa, ao mesmo tempo em que revela sua face verdadeira.

Posteriormente, mostrando o sertão da infância, já transmutado pela matéria poética das recordações, ele se sente intimamente protegido e reconfortado. Ele agora está confortavelmente instalado no cogito(3) da individualidade consciente e não pretende ultrapassar esse limite, que ainda possibilita uma saudável convivência com o grupo da alta intelectualidade. Subir mais um degrau seria ultrapassar os limites vitais e se projetar no vazio da pura espiritualidade, seria propiciar uma cisão irreversível com o mundo dos valores aceitáveis, o mundo dito normal. Logo, é um indivíduo ainda aceito pelo grupo, ainda não marginalizado, que se vislumbra na última fase, mesmo apreendendo-se, nesta última fase, narrativas de alto teor de insolidez, tais como "Meu tio, o Iawaretê", "Reboldra", "Mais meu Sirimim" e outras que compõem o corpus de Essas histórias, Tutaméia e Ave, palavra.

Os personagens da primeira fase criativa (não estou a referir-me à primeira fase ligada à imaginação formal, imaginação linear, registrada nas narrativas de Sagarana, excetuando-se naturalmente a última narrativa A hora e vez de Augusto Matraga) fornecem a máscara primordial do ficcionista do sertão. É sua fisionomia de homem do sertão que se encontra dissimulada ao longo das narrativas A hora e vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas; são suas vivências primeiras que se destacam e se escondem; são fatos acontecidos e desrealizados pela ação do tempo, mas poetizados no plano das recordações e dos sonhos bem sonhados. A hora e vez de Augusto Matraga e Grande Sertão: Veredas marcam um momento de mudança narrativa, revelando a relação de profunda integração do escritor com sua obra e, por acréscimo, com o sertão material.

As máscaras são sonhos fixados e os sonhos são máscaras fugazes em movimento, máscaras fluidas que nascem, representam sua comédia ou seu drama, e morrem.48

Para penetrar-se "na zona onde os acordos são incessantes"49, ou seja, ao centro no qual se desenvolve a verdadeira dialética da simplificação e da multiplicidade, segundo Bachelard, é necessário juntar a máscara inerte ao rosto vivo. O rosto vivo fornece os traços da fisionomia, possibilita a interpretação da máscara virtual, e o ato de interpretar a máscara virtual obriga o intérprete a penetrar numa dimensão diferente, na qual a formação da idéia e a sua representação "permutam infindavelmente suas ações"50.

Na fase seguinte, a partir de Primeiras estórias, a dialética da verdade e não-verdade se instaura nos escritos de Guimarães Rosa. Verdade e fantasia se misturam sob os ditames dos sonhos poéticos-ficcionais. Os personagens (verdades de um sonhador eu sertanejo) são máscaras profundamente sentidas pelo ficcionista e transmitidas ao leitor, compactuador e colaborador de seu ato de narrar; assim, são máscaras virtuais ativas, recriadas nos momentos de repouso fervilhante e concretizadas no instante seguinte da consciência singular, livres das conceituações do tempo vital. Essas máscaras ativas, ficcionais, se adaptam ao demiurgo que as criou, pois este, à semelhança do psiquiatra que "deve viver a máscara do doente, como deve viver os sonhos do doente"51, deve ele também viver a máscara de seus personagens, como deve viver também os sonhos dos personagens.

Nessa zona intermediária, o demiurgo detectou sua própria realidade psíquica de homem que se quer sertanejo. Servindo-se da ficção, reformou e formou sua própria máscara virtual, ou seja, o rosto, verdadeiro, do sertanejo que poderia ter sido no âmbito das probabilidades de vida; extraiu do passado, pela imaginação, verdades que estavam escondidas; pode transformar essas verdades em discurso ficcional, recriando as imagens do coronel autoritário, dos jagunços animalescos, ou mesmo, do cidadão do sertão, oscilando entre o primitivo e a pós-modernidade.

Que nos seja permitido assinalar de passagem a importância de uma fenomenologia do artificial. O ser que quer o artifício tem necessidade de uma tomada de consciência muito nítida. Essa tomada de consciência é tanto mais vigorosa quanto mais fluente é seu objeto. No problema do ser que se dissimula vê-se em ação a manutenção de uma consciência de dissimulação. Deve-se reconhecer, pois, nas interpretações de máscaras, maior estabilidade do que em outros fantasmas.52

Oferecer autenticidade ao artificial e inseri-lo no mundo dos fenômenos exige capacidade criativa. A criação literária, para manifestar-se com grandeza, necessita de um talento criativo extraordinário, reformulador de suas próprias realidades psíquicas. O Artista (aquele produtor de autêntica Arte Literária), agora indivíduo consciente, não aceita mais a convivência insossa com suas máscaras reais. Retomar ficcionalmente o rosto primitivo, diluindo-o em seus personagens, é um exercício de poder. É o poder daquele que se retrocede ficcionalmente ao passado e retoma o início de sua trajetória de dissimulação. Recupera conscientemente a máscara virtual, retirando-a do passado sob a forma de narrativa, e fragmenta-a em diversas novas máscaras. Cada personagem revela parcialmente um pouco do que foi visto e vivenciado nas origens. Cada personagem é parte viva de suas primeiras e verdadeiras realidades psíquicas. O Artista tem plena consciência dessa nova e intermitente dissimulação de seu próprio eu. Todos os seus personagens são partículas vivas de seu íntimo, por conseguinte, eles também, máscaras virtuais, passíveis de alcançarem vida estável no plano das probabilidades fenomênicas.

Em meio a suas diversas máscaras sociais, quis (e conseguiu) retomar o rosto da infância, com a colaboração da Arte Literária. Com esta atitude, refortaleceu-se socialmente, idealizando o sertão, recuperando-o sob novas imagens, fornecendo novos traços decisivos para a fisionomia do sertanejo secularmente rejeitado na hierarquização social.

A máscara nos ajuda a afrontar o futuro. É sempre mais ofensiva do que defensiva. (...) Se forçarmos um pouco as relações entre a figura e o rosto, se integramos a máscara, parece que a máscara pode ser a decisão de uma vida nova. Ela liquidaria de uma vez o ser que se oculta. Seria um motivo para afirmar uma segunda vida, um renascimento. Ainda que se examine o problema de muitas maneiras, é necessário chegar à mesma conclusão: a máscara é um instrumento de agressão; e toda agressão é uma atuação sobre o futuro.53

No decorrer da Entrevista ao alemão Günter Lorenz, Guimarães expõe suas convicções genuinamente verdadeiras. A retomada de seu antigo rosto, sustentada na sua criação literária, conscientizou-o de seu poder individual. Agora, o ser especial, oriundo de um pequeno burgo do sertão, não necessita defender-se do grupo citadino debaixo de diversas máscaras sociais. O escritor (médico, diplomata, soldado, poliglota e outros diversos talentos) sabe que já está temporalmente afastado de suas origens, mas sabe também que já adquiriu o direito de se nomear sertanejo, orgulhosamente afrontando um grupo de intelectuais pernósticos, que, segundo suas próprias palavras, só sabem transmitir “bolas de papel”54. Nesta vida nova, já conceituado pela elite sócio-intelectual e, inclusive, por esse mesmo grupo que finge não perceber a agressão do Artista, liquida de uma vez o que buscou ocultar em anos de convivência com o mundo citadino. Afirma assim uma nova vida, um renascimento, uma adesão aos planos superiores da pura individualidade.


II.3 – SERTÃO: CENÁRIO FICCIONAL DA VERDADEIRA
            REPRESENTAÇÃO DO ARTISTA

Na introdução de A REPRESENTAÇÃO DO EU NA VIDA COTIDIANA, Erving Goffman55, teorizando sobre o ponto de vista do grupo em relação ao indivíduo, informa que seu objetivo é definir a interação (influência) face a face, "a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros, quando em presença física imediata"56. Diz ainda que "uma interação pode ser definida como toda interação que ocorre em qualquer ocasião, quando, num conjunto de indivíduos, uns se encontram na presença imediata de outros"57. Goffman realça o objetivo já no final da Introdução, depois de desenvolvê-lo implicitamente ao longo do conteúdo introdutório.

Antes, já informara sobre a atuação do indivíduo na presença de outros e que os outros, ao se aproximarem do indivíduo, procuram saber o máximo a seu respeito, interesses gerais, tais como se possui uma boa situação sócio-econômica, o que pensa de si e dos que o rodeiam, se é confiável. Essas informações, segundo o autor, definem a situação do indivíduo perante os outros e dos outros ante o indivíduo. É nesse momento que a interação será definida. Caberá ao indivíduo, que, no momento, se encontra sob suspeita, influenciar positivamente ou não o grupo que o examina. De acordo com a atitude do examinado, os examinadores se convencerão ou não da validade dos esforços pessoais para se fazer admirado ou respeitado. A impressão positiva é importante nesse momento de influência face a face, porque é exatamente nesse momento que os outros confiarão na informação que o sujeito procura transmitir. Portanto, expressão e impressão do e sobre o indivíduo são fatores prioritários para que o grupo infira positivamente e confie nele. Para que receba confiança, o examinado terá de expressar-se convincentemente, mesmo que, no fundo, transmita informações falsas. A influência face a face necessita de expressões que convençam. O sujeito emitirá tais expressões, mesmo que sejam falsas. Tais dissimulações são atitudes típicas do ator, que procura se utilizar das expressões que emite. A expressão transmitida se vale da comunicação, e esta se faz quando o indivíduo se encontra na presença de outros, transmitindo confiança ou rejeição, de acordo com as deduções do grupo. Procurando explicar melhor, Goffman divide a expressividade do indivíduo em duas categorias opostas: expressão que transmite e expressão que emite. Dentro da categoria da expressão que emite, estariam as dissimulações próprias do ator; na categoria da expressão transmitida, estariam as fraudes, abrangendo os símbolos verbais, usados propositadamente no intuito de transmitir impressões falsas.

Goffman, num segundo momento da Introdução, muda o pólo de concentração de sua tese, deslocando-se para o ponto de vista do indivíduo. Antes, teorizara sobre o ponto de vista do grupo. Por este ângulo, o indivíduo que se encontra diante do grupo, examinado pelo grupo, "pode desejar que pensem muito bem dele, ou que pensem estar ele pensando muito bem deles, ou que não cheguem a ter uma impressão definida"58; pode trapacear, confundir, induzi-los a erro. Conscientemente, o sujeito direciona as atitudes do grupo em relação a si mesmo, manipula as inferências do grupo, demonstra possuir grande influência ante os outros e, conseqüentemente, (segundo minhas deduções) terá aos poucos como demonstrar poder.

Falando ainda sobre expressões transmitidas e expressões emitidas, Goffman procura delimitar o seu trabalho, informando que se ocupará primordialmente com as expressões emitidas, ou seja, a atitude do indivíduo-ator diante de um grupo-platéia. Exemplificando suas idéias, cita um incidente romanceado, um episódio sobre um inglês em férias em uma praia, na Espanha. Narra as atitudes de Preedy (um indivíduo-ator e suas expressões emitidas) para se fazer notar, por meio de vários rituais, como um passeio pela praia que virara corrida e mergulho direto na água, a forma de nadar que consistia num apelo para ser visto, e outras ações ritualísticas, visando impressões múltiplas do grupo-platéia. Demonstra que as impressões variam e nem sempre coincidem com a esperada pelo indivíduo. Às vezes ele consegue projetar uma boa impressão e ser compreendido, às vezes não.


domingo, 25 de janeiro de 2015

Magia de Praga

Magia de Praga - CLARISSE DE OLIVEIRA


Magia de Praga
 

Ha um Lugar Mágico na Terra, cuja Magia Transcendental, está
ainda intacta para a Humanidade de Agora.... é Praga, capital da
Tchecoslovaquia...
A Magia de Praga está incrementada com a Magia Transcedental
de uma Espiritualidade na Musica, na Arquitetura e no Segredo dos
Magos que os "Bruxos" guardaram para sempre...
Se "Outro Planeta" descender deste,, da Terra, terá um Museu para
a Implantação da Nova Humanidade com "ele", assim julgo e me
responsabilizo...
Que Este Periodo de Festas
tenha sido Feliz
para
Todos

sábado, 24 de janeiro de 2015

ÁUREO MELLO

ÁUREO MELLO

ROGEL SAMUEL

Conheci Aureo Mello em Manaus, no Shopping. Apresentado por Luiz Bacellar. Era um bom papo. Contou-me a vida política, de como foi vítima de uma “armação” no Senado, mas de como saiu-se bem. Ele circulava na Internet, em Blocos on-line, ao contrário dos seus pares, outros poetas de sua idade.

Uma perda.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

FALECE ÁUREO MELLO






A vida é como um trem que vai passando...
Cada vagão é um ano transcorrido
Puxados por um coração sofrido
Aos poucos da estação se distanciando.

Esses tablóides cheios vão rodando
Nos trilhos do mistério indefinido,
Levando histórias do que foi vivido,
Do infante ao velho que já vai findando.

Às vezes passam mais de oitenta ou cem
Vagões repletos de produtos vários
(O conteúdo vivencial do trem)

E sempre apita um derradeiro adeus
Como se fosse um som de Stradivarius
 Se despedindo dos amores seus...







AUREO MELLO
(1924-2015)


Aureo Macedo Bringel Viveiros de Mello nasceu em PORTO VELHO, RO em 1924, mas viveu boa parte de sua vida no Amazonas. Poeta, advogado, jornalista, pintor e político (ex-deputado e ex-senador). Publicou, entre outros, os livros: Luzes tristes (1945), Claro-escuro (1948),  Presença do estudante Inhuc Cambaxirra,  As aureonaves (1985), Inspiração (1989),  O muito bom sozinho(2000),  Como se eu fosse um cantador (1999), Onde está Gepeto?(1999), Heliotrópios adamantinos lácteos: suco de estrelas (2004).

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL




II – um sertão inesquecível

II.1 - Sertão: Casa da Infância



As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de infinito. Vivo no infinito; o momento não conta.36

O Artista ficcional vive a aventura de vagar no infinito, dentro da ilimitação da criatividade poética. Entre o mundo objetivo e seu universo interiorizado, há a força da arte de escrever, exibindo palpavelmente o hiato criador que se encontra entre a aparência e a essência de uma realidade idealizada. Sua meta, unindo à narrativa linear o instante poético, é fixar a eternidade da arte num texto que, em princípio, apenas reproduziria o sertão. Para um escritor que vive no infinito e omomento não conta é fácil transformar o sertão em ficção poética. Quem vive no infinito são os Poetas.

O instante poético é, pois, necessariamente complexo: emociona, prova — convida, consola —, é espantoso e familiar. O instante poético é essencialmente uma relação harmônica entre dois contrários. No instante apaixonado do poeta existe sempre um pouco de razão; na recusa racional permanece sempre um pouco de paixão. As antíteses sucessivas já agradam ao poeta. Mas para o arroubo, para o êxtase, é preciso que as antíteses se contraiam em ambivalência. Surge então o instante poético... No mínimo, o instante poético é a consciência de uma ambivalência. Porém é mais: é uma ambivalência excitada, ativa, dinâmica. O instante poético obriga o ser a valorizar ou a desvalorizar. No instante poético o ser sobe ou desce, sem aceitar o tempo do mundo, que reduziria a ambivalência à antítese, o simultâneo ao sucessivo.37

Os paradoxos expressam o instante poético de quem narra, aquele que um dia disse ao crítico Lorenz:

Como romancista tento o impossível. Gostaria de ser objetivo, e ao mesmo tempo me olhar a mim mesmo com os olhos de estranhos. Não sei se isso é possível, mas odeio a intimidade.38

Os dois aspectos do romancista: os paradoxos que caracterizam o caráter ambivalente do Poeta. Sua ficção poética valoriza o sertão mineiro e desvaloriza a modernidade. O escritor não está comprometido com seu momento histórico e, no entanto, é íntimo desse tempo, ao vivenciá-lo em seu cotidiano; mesmo assim, não pensa ideologicamente, de acordo com os padrões modernos, porque sua ideologia é autenticamente sertaneja.

O narrador, por exemplo, não enuncia mandamentos de vida, não emite sentenças ideológicas, apenas sonha o Sertão que se encontra dentro do sonho daquele o idealizou. O narrador de A hora e vez de Augusto Matragaadota a ideologia dos contos infantis, ao punir seu personagem, fazendo-o expiar seus pecados de homem rude e poderoso, mas, ao mesmo tempo, reserva para ele um final que transcende os limites da realidade substancial. Submetido ao sonho do artista, não pune Nhô Augusto com a severidade da justiça humana, ao contrário, transporta-o para uma realidade idealizada, poetizando o desenlace e redimindo-o por meio de uma morte glorificada. Portanto, é o Artista que valoriza os instantes finais de Nhô Augusto, ao invés de puni-lo com a dureza da razão.

No trecho narrativo que registra o retorno do personagem até o momento de sua morte, há a paixão superior da matéria lírica, impedindo o domínio total da razão ordenadora. Conseqüentemente, há o resgate de velhas frases convencionais, insolitamente inseridas num contexto caótico; o arroubo do narrador vivenciando cada pormenor narrativo na transmissão das minúcias de um sertão poético; o êxtase final, ao narrar a morte de Nhô Augusto, transportando-o para o plano da santificação. O narrador é, indiscutivelmente, representante do Artista literário, ou seja, expressa os sentimentos de um indivíduo paradoxal: sertanejo e moderno. Escrevendo sobre a vida e morte de Nhô Augusto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, escreve sobre si mesmo, narra as aventuras que correm dentro de seu universo interiorizado e sertanejo, sem deixar de ser um homem estabilizado dentro de seu núcleo social citadino.

O Artista é escritor e "pensa em eternidades", pensa sobretudo "na ressurreição do homem"39. Nhô Augusto ganhou, pelas mãos do narrador, sua hora e vez, ganhou o privilégio de morrer redimido, porque, pensando na ressurreição do homem (do personagem), o Artista pensa na sua própria ressurreição, consciente que está dos vários estágios de ressurreição que existem no plano espiritual. Transformando o final de sua narrativa, demonstra não aceitar o tempo do mundo, produzindo um outro tempo, tempo verticalizante, tempo do pensamento, que busca as profundezas da alma, a ascensão ao cogito(4), por entre o devaneio e o infinito da realidade idealizada, por intermédio das recordações poéticas da infância.

II.2 - O Artista e suas Máscaras

Neste capítulo, passo a verificar a relação do ficcionista da realidade sertaneja com a sua obra, considerando aqui que a obra abrange, em sua totalidade, mais especificamente, o sertão da infância, das recordações da infância. A obra literária de Guimarães Rosa tem com o sertão da infância, das recordações, uma relação interna indissolúvel, já que foi dito que o sertão é invenção da obra roseana, e o contrário também vale: o sertão roseano criou a obra literária roseana.

Nestas páginas iniciais, desenvolverei um pensamento centralizado na "ambiência do indivíduo moderno na representação do eu", repensando as idéias de Erving Goffman40, antropólogo americano, contando também com a fenomenologia de Gaston Bachelard, emO Direito de Sonhar41, sobre o tema das máscaras, as quais põem em prática a vontade de dissimulação do ser que se mascara, para alcançar segurança em seu meio social.

Especificamente, neste capítulo, detenho-me no comportamento do narrador de A hora e vez de AugustoMatraga, narrativa de transição para o cogito(2) (cogito transitivo, propenso a dialetizar as idéias vitais (pré-)estabelecidas), porque, de acordo com o meu particular ponto de vista, este personagem subsiste comomáscara, a primeira máscara, encobrindo a face ficcional do escritor, cidadão moderno mas nato do sertão. Devo esclarecer que os primeiros narradores docorpus de Sagarana representaram o repórter, dando as notícias do sertão e enfatizando as belezas naturais, exibindo um mundo comunitário, pitoresco, aos leitores da cidade.

Não intenciono analisar o comportamento humano por uma perspectiva sócio-antropológica, mas examinar hipoteticamente as atitudes e reações do criador literário, em seu meio comunitário, pelo prisma de seu eu ficcional. Assim, observarei uma das funções de Guimarães que, entre as várias que exerceu, o fez respeitado em seu núcleo social: sua atuação como escritor renomado e sua influência, realçando, por meio da literatura, a grandeza do sertão mineiro, espaço rejeitado pela elite da sociedade.