segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Neuza Machado - Manaus da infância

(Detalhe do Teatro Amazonas)

A Manaus da ficção rogeliana saiu do arcabouço vivencial infanto-juvenil. O narrador principal foi testemunha dos últimos estilhaços do esplendor da borracha, do que restou da grandeza capitalista. Foi testemunha da decadência. Foi ele que viu, por intermédio de sua sensibilidade provinda naturalmente da infância, os “ratos”, como “um traço cinematográfico, contínuo”, se infiltrando “entre as frestas da construção carcomida”  de sua anterior realidade sócio-existencial. Assim, percebe-se a urgência em causar a morte do mito (autoritário, exemplar), adotando ficcionalmente o descontínuo existencial do momento, em prol de uma futura nova ordem fundamental (pós-moderna). Por este ângulo interpretativo, Paxiúba terá de morrer, “afigurado” como homem primitivo (Paxiúba, o Mulo). Alguém terá de apertar o gatilho e eliminar o mito, transmutado em ser primitivo, da face do Amazonas. Para tanto, o narrador delega esse poder a um outro personagem, o Benito Botelho. “Benito atirou no meio do tórax, matando-o. Benito o matou, sim. O morto era Paxiúba, o Mulo.”
Pela ótica da crítica literária cientificista-estruturalista, cerceadora, terá de existir uma razão para a morte do bugre. Por enquanto, fica a pergunta à moda fenomenológica: Qual foi o motivo (real ou ficcional) que levou o personagem Benito Botelho a matar Paxiúba? Sobre este assunto, indagarei no capítulo a ele reservado.

Nestas modificadas deduções reflexivas, a partir do capítulo intitulado SEIS: JÚLIA (alusão à entrada de um novo personagem no fluxo narrativo), e reconsiderando inclusive as diversas vozes narrativas recônditas que se interligam no todo da ficção rogeliana (em verdade, há outras vozes narrativas no romance, vozes ocultas, pari passu com os dois narradores visíveis), não distingo mais o personagem Ribamar de Sousa como narrador repleto de força e autoridade concretamente representativa, aquela face histórico-ficcional em primeira pessoa, exteriorizada (aquela diferente máscara narrativa ficcional de narrador exemplar à moda tradicional) dos primeiros capítulos. Isto, porque o outro narrador ─ o principal ─ já se avizinha.
No início, o Ribamar de Sousa representa ficcionalmente e historicamente o imigrante nordestino, fugindo da seca e da fome, buscando uma nova perspectiva existencial no Amazonas, lugar de muita água e, conseqüentemente, pelo ponto de vista da gratuidade da natureza, de muita fartura alimentar. Posteriormente, ainda em primeira pessoa, a voz narrativa apresenta-se como um ex-imigrante que alcança o podium requisitadíssimo da burguesia manauara pós-borracha. Pelo fim do romance, o Ribamar-narrador se submeterá a um segundo narrador, para que este conte a sua trajetória vitoriosa até alcançar, politicamente, o cargo de Senador da República do Brasil. Respaldada pelo segundo narrador (em terceira pessoa) e seguindo o desenrolar desta ficção que me movimenta, avançando em meus exames reflexivos, percebo-o, na terceira fase do romance, como personagem ativado, poderoso, submetido às induções criativas de outro narrador, porta-voz do escritor-ficcionista dos anos finais do século XX. A partir dali, um outro narrador (de onisciência ficcional) contará o trajeto existencial do primeiro narrador Ribamar de Sousa: da lama do Manixi, da primeira fase do “capitalismo selvagem” (exploração do trabalho diário em horas a mais, inumanas), à riqueza sem freios, pessoal (sem estruturas confiáveis), de um capitalismo em fase de transição, simplesmente político, para uma segunda etapa do próprio capitalismo, aquele conhecido também por “capitalismo selvagem” (o domínio das grandes empresas estrangeiras com o consentimento dos poderosos da região).

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