quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Evaristo Carriego


FONTE ESTADO


Não é culpa de Evaristo Carriego ter passado à posteridade como personagem de Jorge Luis Borges. O poeta Carriego teve existência breve e real. Nasceu em 1883 na província de Entre Rios e cedo a família se mudou para Buenos Aires. Os Carriego moravam no bairro suburbano de Palermo, assim como os Borges, de quem foram vizinhos. Em vida, Carriego publicou apenas um livro de versos – Missas Hereges, em 1908. Morreu de tuberculose, em 1912, e, no ano seguinte, saiu o livro póstumo La Cancion del Barrio. Em 1930, Borges lhe dedicou um estudo, Evaristo Carriego, no qual analisa a obra e faz especulações sobre o homem e seu mundo.
No Brasil, conhecemos Carriego através dessa obra de Borges. E é tudo. Ou era, até a publicação deste pequeno e precioso Poesia Herege, com organização e tradução de Claudio Cruz e Liliana Reales. O miolo do livro é uma seleta com 11 poemas de Carriego. Antes deles vem o texto Apresentando Carriego, de Claudio Cruz. E, após os poemas, o estudo de Liliana Reales Leitura de uma Leitura de Borges: Evaristo Carriego. O volume, de 70 páginas, é editado pela Universidade Federal de Santa Catarina e custa R$ 15.
A ideia do livro, claro, é iluminar a persona de Carriego e tirá-la um pouco da poderosa sombra que lhe faz Borges. O poeta tem importância em si e não apenas porque virou objeto de estudo de um grande escritor, um dos maiores do século passado. Ele teria sido, no quadro da literatura do país vizinho, o primeiro a representar literariamente o “arrabal portenho”. Ou seja: os bairros populares, os valentões, as mulheres “que deram mau passo”, os desafios de guitarra e faca, as milongas e o tango, então nascente. Borges se interessa por esse universo, em especial em sua fase mais nacionalista. Esse mundo está presente em contos famosos como O Homem da Esquina Rosada. E está, de maneira orgânica e vital, em Carriego, por mais de uma razão. Primeiro, porque o modelo do arrabal adotado por Evaristo Carriego era Palermo, onde também morava a família de Borges. Aliás, o pai e Borges foi amigo do autor de La Canción del Barrio. Segundo porque, como descobre, a partir de Palermo pode olhar o mundo, de maneira mais ampla.
Esse bairro de Palermo, tanto imaginário quanto real, constitui o ponto central da obra do poeta. Está não apenas no que talvez seja o mais famoso desses poemas, A Alma do Subúrbio, mas em O Guapo, A Surra, No Bairro, O Beco de Nossa Casa, Voltaste, A Costureirinha que Deu Aquele Mau Passo, Uma Surpresa, e outros que fazem parte da edição. Trata-se de uma seleção refinada, que busca o melhor de Carriego, versos expoentes em uma obra que, de acordo com Claudio Cruz, pagou preço alto ao modernismo hispano-americano, o que relativizaria seu valor estético aos olhos de hoje. Há, no entanto, esse núcleo duro na obra de Carriego que vale ainda a pena ser lida ainda hoje, como testemunho das “vozes periféricas” ou como exemplo das “culturas subalternas”, revalorizadas nos dias de hoje, com a relativização dos cânones.
O próprio Borges diz que Carriego demorou a encontrar sua voz. Quando o fez, falou como ninguém da sua gente e da realidade à sua volta. Essa voz, dizem os críticos, foi encontrada a partir El Alma del Arrabal, seção de Missa Herege composta de onze poemas entre os 47 que compõem o único livro publicado em vida.
A essa voz, Borges foi sensível. A ponto de levá-lo a produzir um ato crítico que ressoa até hoje. As motivações para esse ato crítico podem ser discutidas – Liliana Reales encontra em Carriego a ressonância de um tema caro a Borges: o culto à coragem. Algo típico nas manifestações do gaucho argentino, que perde espaço em sua inserção social no processo de modernização da Argentina do final do século. Da economia agropastoril para a industrialização, do deslocamento do campo para a cidade, o personagem viril assimila-se ao marginal urbano. Seu campo de atuação seria o arrabalde portenho, que ganha assim uma localização no imaginário do continente americano comparável à do sertão brasileiro e ao Velho Oeste dos Estados Unidos. São localizações não apenas geográficas, mas sobretudo simbólicas e emblemáticas, com suas funções de abrigo aos mitos fundadores da nacionalidade.
Dessa forma, é natural que Borges dê início ao seu Carriego pela descrição do espaço onde vive o poeta. Palermo de Buenos Aires é o primeiro capítulo do livro e tentativa de buscar as raízes do bairro. Fundado por um italiano oriundo da capital da Sicília, Palermo deve seu nome a esse procedimento não de todo incomum – aquele que emigra substitui seu sobrenome pelo da cidade de origem e, dessa forma, a leva consigo para a terra estrangeira. Esse tal de Domenico, ou Dominguez Palermo, teria chegado àquela área por volta de 1605 ou 1614. Borges descreve o nascimento mítico do bairro em páginas que subordinam o factual ao espírito poético, num procedimento de sobreposição de imagens que ele mesmo define como “cinematográfico”. Para concluir: “Palermo era uma despreocupada pobreza”. Emerge na imaginação do leitor esse bairro humilde, de casas baixas, pátios de tipo espanhol, as esquinas, os valentões, as mulheres oprimidas e ocupadas em casa com seus filhos e trabalhos de costura. Um ambiente tão próximo do real e, ao mesmo tempo, banhado por certa irrealidade. O próprio Borges avisa que esse retrato se deve muito à sua imaginação, mais que ao testemunho dos fatos: “Acreditei, durante anos, que tinha crescido num subúrbio de Buenos Aires, um subúrbio de ruas perigosas e de ocasos visíveis. A verdade é que cresci num jardim, atrás de grades com lanças, e numa biblioteca de inumeráveis livros ingleses”. No entanto, o menino intelectual, em meio aos livros da biblioteca paterna, sonha com duelos e valentias dos compadritos e gauchos armados com suas facas. Ouvia ao longe as seis cordas da guitarra.
Esse sonho com o distante, com o marginal, o levou a Evaristo Carriego – como conta seu biógrafo James Woodall (Jorge Luis Borges – O Homem no Espelho do Livro, Bertrand Brasil, 1999, 436 pags) para decepção dos seus pais, Jorge e Leonor, que esperavam tema mais nobre para as preocupações do filho. Ao contrário do que fez com outros escritos da época, Borges permitiu que seu Evaristo Carriego fosse republicado ao longo de toda a sua vida. Está incluído em suas Obras Completas. Isso significa que tinha apreço por um livro que, do ponto de vista formal, é considerado um Borges “menor” por alguns críticos. É, como escreve Woodall, um tomo estranho, cheio de defeitos, que hesita entre o jornalismo, a crítica e o pitoresco urbano. Mas não será justamente esse formato heteróclito que dá ao Carriego de Borges parte do seu encanto?
Em todo caso, ao estudar Evaristo Carriego, Borges enfrentava alguns problemas de sua própria trajetória. Um deles, em particular: como conciliar o tom local e suas aspirações de universalidade? Essa talvez esteja na origem da mais bela página do estudo, acrescentada em 1950 – Prólogo a uma edição das Poesias Completas de Evaristo Carriego. Nela, Borges imagina um Carriego sonhando com Dumas e pensando com inveja em algum outro lugar, a Europa talvez, Paris, suas festas, suas mulheres, seus escritores. A vida estaria sempre em outro lugar, pensava aquele autor “jovem, orgulhoso, tímido e pobre, e se acreditava desterrado da vida” em seu subúrbio portenho. Borges pensa que Carriego estava imerso nessa triste meditação ção quando ouve ao longe “um rasgado de laboriosa guitarra”; vê pela janela as casas baixas de Palermo e a rua, na qual o compadrito Juan Muraña passa e toca o chapéu em cumprimento a alguém. Muraña que, na véspera, havia marcado a navalha o rosto de um desafeto, o chileno Suárez. Vê um velho carregando um galo de rinha, a lua no quadrado do pátio. Carriego compreende então que o universo estava todo lá, em Buenos Aires, em Palermo, em 1904. Naquele momento, conclui Borges, Carriego é Carriego. E pode escrever seu barrio e sua gente.
Borges pensava Borges, através de Carriego.
El Guapo
El barrio le admira. Cultor del coraje,
conquistó, a la larga, renombre de osado;
se impuso en cien riñas entre el compadraje
y de las prisiones salió consagrado.
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O bairro o admira. Cultor da coragem,
Conquistou, há muito, renome de ousado;
Se impôs em cem brigas entre a malandragem
E das muitas prisões saiu consagrado.

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