sábado, 28 de fevereiro de 2009

Escrever, para quê?








Escrever, para quê?

Rogel Samuel


"Não tem importância nenhuma escrever um poema", diz Azenha. E com isto ela sacramentou a verdade da causa secreta do poema, sua metafísica, sua origem, a fenomenologia de sua aparição.

Por quê o poema?

Azenha toca na essência da criação poética, onde tudo é segredo, labor oculto, o insondável do mistério, seu lacre, seu selo, seu silêncio.

O poema deve ser o que é, já se disse, não tem origem nem destino.

Nem tem razão, ou explicação.

O poema é "logos", e Logos, diz Wittgenstein, significa um discurso que não pode falar de si mesmo, a não ser que se coloque antes da possibilidade do próprio discurso. O processo do poema se concentra no interior dessa dimensão ilimitada de logos.

E essa ipseidade, a propriedade histórica da linguagem, da idéia do vôo de sua cultura.

Mas para quê?

"não tem importância nenhuma escrever um poema
a não ser a possibilidade de o não ter escrito."

A poesia luta com esta tendência de se ter e de se ver e de se perguntar pela utilidade de tudo. E utilidade com preço no mercado.

Pois, e se eu fizer algo da mais profunda inutilidade? E se eu mostrar o âmago a beleza do inútil?
Eu não quero melhorar a sociedade (pelo menos com o poema), eu não quero melhorar a mim mesmo.

Eu nada quero.

As árvores estão parindo gritos de flores, e ninguém, nenhum economista pergunta para quê, para quem.
As flores estão cobrindo os campos e não se cogitam em benefício de quem.
Qual a utilidade de uma flor? Melhor ainda: qual a utilidade do seu azul, da alegria de um céu de radiante beleza?
Aí está: o grande perigo, o terrorismo supremo é este - o ser que diz "nada quer", nada busca, e revela a beleza deste não buscar.

O homem que nada quer é o ser mais perigoso. Porque livre.
“Ninguém pode prender um homem livre, diz Khrisnamurti. Podem colocá-lo no fundo da masmorra, mas interiormente ele continua livre”.
É a liberdade, a liberdade da espera de nada, que rebenta qualquer amarra, qualquer muralha. Ilimitada.
A liberdade dos homens livres, os poetas, os profetas, os santos.
A crítica de Nietzsche vem justamente do conceito de valor.

Sua genealogia determina conceitos de valor, noção de valor que implica num investimento crítico contra os valores que aparecem como princípios pressupostos e contra valores de que derivam ava1iações.

O pensamento crítico de Nietzsche tem dois movimentos - todas as coisas e todas as origens de qualquer valor se referem a valores; para depois referir esses valores a outra coisa que seja a origem dos valores e que decide o valor dos valores.

Mas quem o juiz, qual o tribunal que decide o valor dos valores?

Aí está.

E se nada vale?

O método genealógico de Nietzsche busca a origem do próprio valor dos valores de onde emana a avaliação.

Ele se opõe a um valor absoluto e a um valor utilitário.

“Não encontraremos nunca o sentido de qualquer coisa (fenômeno humano, biológico ou mesmo físico), se não conhecemos qual é a força que se apropria da coisa, que a explora, ou que nela se exprime”, diz ele.

E quanto à arte?

Nietzsche não pergunta: “O que é o belo?”. Mas: “Quais as forças que o tornam belo ao apropriar-se dele?”

Assim, a essência da arte reside na descoberta da força que a possui e que se exprime nela.

No nosso caso, a força da liberdade, a força do sentido do silêncio da liberdade.

Que quer o poema? Mas o que é que ele quer?

O que é que quer aquele que ama ao amar, aquele que fala ao falar, aquele que crê?
O que é que quer aquele que se diz “desinteressado”? O que é que quer aquele que pensa isto? que procura a verdade?

- A vontade de poder, responde o filósofo, que não procura o poder, mas que o dá.
A vontade de poder concede poder. E não o arresta.
O método de Nietzsche é diferencial. Diante das coisas, pergunta: “Quem?”
Nele, a vontade de poder é um princípio ativo, plástico e genealógico. A vontade de poder não é a força, mas o elemento diferencial que determina uma relação das forças (a quantidade e a qualidade das forças em questão).

A beleza é uma força.

Significa a afirmação do múltiplo, do devir, do acaso.

É o acaso é o que está no poema de Maria Azenha. O acaso das árvores a parir as flores, a parir gritos gratuitos de flores. Gritos livres. Gritos do poder da ciência materna, do silêncio que há em tudo o que nos cerca.

O múltiplo, o devir, o acaso do universo, na sua ordem misteriosa, onde "só o amor flutua".

Eis o poema:

"não tem importância nenhuma escrever um poema
a não ser a possibilidade de o não ter escrito.
abrigo-me entre árvores prestes a parir gritos em flor,
na materna ciência do silêncio,


onde só o amor flutua."

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Os limites da luz de maio




Os limites da luz de maio


Rogel Samuel


Mas você conhece a luz dos dias de maio? Já viu o céu e aquela luz filtrada em transparência luminosa, aquela luz azul, radiantemente azul, de um azul tão alto, tão nobre, tão vasto? Sabe de que é feito aquela imensa luz do universo em festa? Sabe de como tudo se transmuda em cristais de límpido brilho dos pequenos córregos que caem das altas montanhas como crianças bailarinas e jóias lantejoulas? E sobre as cidades como sobre os campos a luz de maio deita seu limo de íris e de poesia irisada. Já ouviu a música da luz de maio? A "rosa de maio", os lúcidos arpejos dessa temporada em que amamos e em que nosso espírito dança? Pois merecemos viver o mês de maio e suas fragrâncias, nos sagrados bosques de nossas florestas interiores e nos recolhimentos de nossos sonhos renovados...
A visão do mar me lembra uns versos de Valery:

"Que lavor puro de brilhos consome
"Tanto diamante de indistinta espuma
"E quanta paz parece conceber-se!
"Quando repousa sobre o abismo um sol,
"Límpidas obras de uma eterna causa
"Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Valery escreveu esses versos no longo poema "Cemitério marinho", tão difícil de compreender, mas tão fácil de amar, de sentir. Mas creio que a "função" do poema é esta: a de ser sentido.
Terá a poesia alguma "função"? Precisa o poema ter certa compreensão intelectual?

"Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
"Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
"O meio-dia justo nele incende
"O mar, o mar recomeçando sempre.
"Oh, recompensa, após um pensamento,
"um longo olhar sobre a calma dos deuses!"

A tradução é de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia, que conheci na FNFi nos dias de estudante.
Olhar o mar é isso: ver a calma dos deuses, nas faiscações de pasta de prata. O mar acende seus pandeiros de prata, sua luz miraculosa azul.

"Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
"O sopro imenso abre e fecha meu livro,
"A vaga em pó saltar ousa das rochas!
"Voai páginas claras, deslumbradas!
"Rompei vagas, rompei contentes o
"Teto tranqüilo, onde bicavam velas!"
...............

'Tesouro estável, templo de Minerva,
"Massa de calma e nítida reserva,
"Água franzida, Olho que em ti escondes
"Tanto de sono sob um véu de chama,
"- Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
"Cume dourado de mil, telhas, Teto!"



Que a última estrofe de «O cemitério marinho» de Paul Valéry assim canta:

«Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas! »

Uso a extraordinária tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.
O poema enorme, difícil.
Desde que o li, pela primeira vez, há mais de quarenta anos, tento penetrar no mar de seu sentido. Às vezes, parece entender-se. Outras vezes, inatravessável é o seu mar. Mas sempre o sinto, o que importa. O que importa é sentir um poema. Não «interpretá-lo». Os intelectuais matam o poema, intelectualizam-no. Por isso Barthes foi tão bom crítico. Barthes fazia o texto falar, deixava-o falar-se.

«Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
um longo olhar sobre a calma dos deuses! »

Seja como for, Valéry nos abre à imaginação o grande oceano da morte. Mas «recomeçando sempre». Sempre, «sobre a calma dos deuses».
Sei que não é algo para ser lido assim, mas que tema mais religioso do que a morte neste túmulo do oceano de «tanto diamante de indistinta espuma », onde «quanta paz parece conceber-se!».

«Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria. »


O poema tem ímpetos de infinito, abre-se para a eternidade, «massa de calma e nítida reserva»:

«Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!»

Valery disse que seu poema é sua «poesia verdadeira», mesmo as passagens mais abstratas. Disse que via ali uma espécie de «lirismo» , algo «abstrato mas de uma abstração motriz mais que filosófica».


Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Diz da vida, do amor, da ordem e desordem da vida e do amor, do mar e do sol, das colinas das ondas, da chave do mistério do «mar de nossa conversa», como dizia Cabral:


Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

É uma reflexão sobre o tempo:


Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.


É uma reflexão sobre os movimentos das ondas da vida:

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

O poema foi publicado no número de junho de «La Nouvelle Revue française», mas ele deve ter trabalhado no poema desde muito tempo.


Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.


Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.



Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

É esta tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A última dor



A última dor

Rogel Samuel



Ele se predispõe: «Posso escrever os versos mais tristes esta noite», diz, e pode, que produziria versos tristes como a noite, mas a noite não está triste, a noite está estrelada, sim, «e tiritam, azuis, os astros, à distância».

Há algo muito distante, lá longe, nos astros, na distância das estrelas. Na realidade, distante está o Amado de amar: «Eu a quis e por vêzes ela também me quis.»

Exercendo o que mais o lirismo sabe fazer, ele se lembra: «Eu a tive em meus braços em noites como esta. / Beijei-a tantas vêzes sob o céu infinito.»

Sim, perdida está, seu lirismo, sua lembrança, «Ela me quis e às vêzes eu também a queria.»

Mas esta estranha palavra, essa estranha temporalidade, o que se interpõe: «às vezes». E o poema continua, sempre nas suas mudanças de humor, na bela tradução de Domingos Carvalho da Silva:


«Como não ter amado seus grandes olhos fixos?

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E desce o verso à alma como ao campo o rocio.

Que importa se não pôde o meu amor guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. À distância alguém canta. À distância.
Minha alma se exaspera por havê-la perdido.»


Pablo Neruda nunca foi tão simples, nunca tão perfeito, tão clássico como neste poema, o «20» dos «Vinte poemas de amor», de 1968.

Lá, parece que o Amado só se apercebe de que ela se foi quando a perdeu. Não a vê de perto, em si, há referência a uma mulher-lua, a um luar:

«A mesma noite faz branquear as mesmas árvores.
Já não somos os mesmos, nós os de outros dias.»

Esta obra da juventude de Neruda, que tinha 20 anos. Ele teve diversos amores em vida, as mais conhecidas foram Maria Antonieta Hagenaar, que ele conheceu na ilha de Java, Maria Del Carril e Maria Matilde Urrutia. O poema se encontra no seu livro «Veinte Poemas», seu mais popular e famoso livro, de 1924, que vendeu mais de um milhão de exemplares. Afinal, em 1971, Neruda ganha um Prêmio Nobel.
Mas o livro é a leitura preferencial, ideal de todos os jovens (e velhos) amantes do mundo inteiro em todas as línguas, pois para quase todas foi traduzido.
Em 1950, Neruda produziu seu CANTO GENERAL, monumental obra com 340 poemas, quando tematiza a América Latina, sua luta, sua pobreza, sua libertação. Lá se encontra o famoso poema «Alturas de Macchu Picchu», escrito depois de sua visita às ruínas de Macchu Picchu, em 1943. Ali ele se torna a voz dos povos Incas que ali viveram, que ali foram dizimados.

No poema 20, dos « Veinte Poemas», o amado está confuso, ela já não o ama, é isto o que verdadeiramente dói, apenas ele está triste porque ela não está ali: porque ela existia ali ele será capaz de entristecer-se, porém já não a ama, «talvez a queira», não sabe, porque o amor é breve, longo é o esquecimento do amor.
Afinal ele se desespera por havê-la perdido, mas sente e sabe o caso perdido, terminado, e que aqueles versos serão os últimos e que aquela dor será a última dor que ela lhe cause.
O mais é o espaço amplo da noite, as estrelas ao largo, o vento da grandeza escura, a solidão estelar onde será possível escrever os versos mais tristes, pensar que ela será de outro, para justificar o perdê-la, para justificar o não saber amá-la, porque o amor só ama o amor, e a voz que soa nos seus ouvidos dela são para o eco de si mesmo, aos seus olhos infinito

«Já não a quero, é certo, quanto a quis, no entanto.
Minha voz ia no vento para alcançar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos.

Já não a quero, é certo, porém talvez a queira.
Ai, é tão breve o amor e é tão extenso o olvido.

Porque em noites como esta eu a tive em meus braços,
minha alma se exaspera por havê-la perdido.

Mesmo sendo esta a última dor que ela me cause
e êstes versos os últimos que eu lhe tenha escrito. »

Carnaval

Carnaval

Rogel Samuel

Com dinheiro ou sem dinheiro, oh oh oh, eu brinco, e escorreguei foi numa casca de banana, mas a turma lá de trás gritou, oh, tem nego bebo aí, alalô oh oh, mas que calar, oh oh, e eu fui a uma tourada em Madrid, e quase não volto mais aqui, pra ver Ceci, mas a turma lá de trás gritou, hei, tem nego bebo aí, pois você que cachaça é água? Cachaça não é água não, pois disseram que voltei americanizada, com um burro do dinheiro, que estou muito rica, ai ai ai, está chegando a hora, é hoje só amanhã não tem mais, é hoje só amanhã não tem mais, Yes, nós temos banana, banana pra dar e vender, banana menina, tem vitamina, banana engorda e faz crescer.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

No mar que nada tem a dizer






No mar que nada tem a dizer



Rogel Samuel




Jefferson Bessa escreveu um poema que diz:


Deixe-me no mar que nada tem a dizer



Deixe-me no mar que nada tem a dizer
Deixe enrolar-me
nas ondas que florescem
Cá na beira onde meu corpo
se dobra

Por lá não posso estar
Mas aqui na ponta do mar
desponta o que bate em mim
Em mim que não sou
Mas que sou com o mar o que brota
em cada baque
seu
neste litoral

Seu mar é seu próprio corpo, nomeado. Nomear é a presença! A impessoalidade é um fenômeno humanamente trágico, embora “normal”, visto no plano poético. Seu litoral é o limite de seu não-ser. Mas o impessoal, que se vê como mar, que tem a consciência de ser mar, ou que tem a sabedoria do vazio, é o poético. Esse vazio, ser mar, nada-ser ou não-ser-nada, quer ser algo: quer ser si mesmo, o resultado de seu esforço por ser-algo é o acontecimento de seu despontar "em mim que não sou".

O que o poema diz é: deixe-me ser como sou! deixe-me ser o que sou!

O nada, ao emancipar-se, ao passar a ser, esbarra na inutilidade de seus esforços
do despontar aquilo que brota a cada instante em si, em cada onda.

Todo esforço, que parte de algo que tende a explicar-se, é ser mais, portanto
na natureza do esforço mesmo de ser deixado em paz, a partir do nada, reside uma pretensão de emancipar-se, portanto de ficar em paz.

A realidade do poema: o sujeito é o objeto: deixe-me significar o que dei-me de mim a mim-mesmo o direito de ser.

O mar nada tem a esconder, a me dizer, pois sou eu-mesmo que me visto de oceano.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A morte no envelope



A morte no envelope


Rogel Samuel


Bach resumiu sua "poética" na "A Arte da Fuga" (que
tem seu nome: si bemol, lá, dó, si). Conhecida um século depois.
Mas A Arte da Fuga ficou incompleta. A última fuga não acaba; continua a rolar, sem fim. Vida breve. Infinita.
A vida é breve. O Brasil não tem tradição de literatura policial. Outros gêneros literários sumiram, também. A nova poesia, os novos contistas, o novo romance. Falta mídia? Não acredito. Faltam editoras? Não faltam leitores. Coelho Neto escreveu 112 livros e 50 peças de teatro. Vida breve. Humberto de Campos recebia inúmeras cartas. Escreveu obra gigantesca, hoje quase desconhecida. "A morte no envelope" de Luiz Lopes Coelho me vem à lembrança.
A literatura não morre no envelope, mas na estante. Coelho Neto e Humberto de Campos escreveram muito, como Camilo, um gênio, que ainda se lê, com prazer. Estilo rápido,
nervoso, elétrico. A grande massa da literatura morre, morreu, ou morrerá. Balzac escrevia por compulsão. Um dos mais bem sucedidos escritores do Brasil, Jorge Amado, produzia um bom livro a cada dois anos. Mas há autores de um livro só, como Manuel Antonio de Almeida.
Assis Brasil continua escrevendo. Mais de cem livros. Vive
de literatura, produz romances, ensaios, antologias. É um mestre. A "Tragédia burguesa", de Otavio de Faria, tem quinze grossos volumes. Elogiada por Mestre Alceu, hoje desapareceu. Ele era excelente crítico de cinema. Aliás, adorava cinema. Dizem que ele saía de uma sala de cinema e entrava noutra. Tobias Barreto, dono de respeitável obra, não mais se lê.
Escreveu obras filosóficas importantes. Onde estão seus livros? Vida breve. Bach resumiu a "poética" de sua música na "A Arte da Fuga" (que contém o seu nome: si bemol, lá, dó, si). Conhecida um século depois.
Mas a Arte da Fuga ficou incompleta. A última fuga era a morte.

Toscanini e Furtwängler






Toscanini e Furtwängler

Rogel Samuel





Bernstein gemia e gritava ao reger. Como se estivesse morrendo. Com a sensibilidade das gravações de hoje se pode ouvir isso, um certo suspiro desesperado. A época dos grandes maestros acabou. E Bernstein foi um extraordinário músico, claro
e intenso. Como Toscanini: fale-se o que quiser, mas a regência de Toscanini era
precisa e clara, e ele era um homem desprovido de vaidade, pura música.
Recebeu críticas mordazes de Furtwängler: "faltam as pequenas nuances",
disse Furtwangler, a propósito da "Leonora" de Beethoven. Chega a chamar
Toscanini de "ignorante naïve". Diz que a música de Toscanini não é
"orgânica" - e ele estava tratando da "Eroica". Diz Furtwängler que
Toscanini só conhece duas coisas: "tutti e aria" - e o pior é que ele tem
razão. "É uma maneira de agir verdadeiramente primitiva". Argumenta que
ele é "exagerado, sentimental e homófono" e que "faz de seus defeitos
uma virtude". "Ao inverso de Nikisch, ele não tem talento manual inato,
mas sabe fazer uma consumação gigantesca do espaço, do que resulta que
seus tutti são todos parecidos". Diz que ele é "um grosseiro
mal-entendido", é só "um culto da personalidade", e seu sucesso deriva
da sua personalidade. Mas "seu sucesso é funesto, pois atinge até os
alemães" etc. Leio isto em "L'órchestre: des rites et des dieux" (Mutations. Paris,
Mai 1988].


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Drummond entrou pela porta dos fundos!


Drummond entrou pela porta dos fundos!

Rogel Samuel


Lembro-me de Drummond. Um dia, quando éramos aluno da FNFi, e como estudássemos sua obra, conseguimos que Drummond aceitasse a vir, na nossa sala, para conversar. Ele exigiu que ninguém soubesse, e que pudesse entrar pela porta dos fundos!
Incrível: um dos maiores poetas entrou pela porta dos fundos da nossa faculdade de letras. Mas Drummond não grande coisa. Parecia um funcionário público (que era), conversando. Trazia um guarda-chuva preto e vestia um terno cinzento. Sério, magro, seco, quase mal humorado. Disse, por exemplo, que perdia belas imagens e versos que lhe ocorriam no caminho de casa para o trabalho. Parece que ele andava de ônibus, de Copacabana para o Centro, no Rio. Quando eu lhe perguntei por que ele não tinha consigo um caderninho de notas, ele respondeu que "não fica bem alguém ficar escrevendo". Lembro-me de que nossa professora, D. Cleonice Berardinelli, que ia passando no corredor, o viu e, espantada, logo entrou na sala. Drummond, o gênio da nossa poesia, discorria singelamente, prosaicamente sobre sua obra. Nenhum brilho, nada de demonstrações de grandeza. Disse: "não sei por que fazem tanto barulho pela minha poesia, eu não vejo nada de especial nela" (as palavras eram mais ou menos assim). Disse horrores sobre o verso "no meio do caminho tinha uma pedra". E no fim, quando se despediu, eu lhe pedi um autógrafo. Ele logo se irritou comigo ao ver, na folha de rosto do seu livro, após o seu nome, que eu tinha escrito, a mão: (1920 - ..... ). "Esse aqui já está esperando a minha morte!", disse.
A última vez que o vi, foi em Copacabana. Eu bebia um cafezinho num botequim do Posto Seis que existe até hoje, quando ele passou. A cabeça pensativa, meio cabisbaixo. Eu fiquei extático, boquiaberto, imóvel, reverente, e mentalmente me curvava à Grande Poesia que passava.

Tarde de domingo

TARDE DE DOMINGO


Rogel Samuel



Tarde de domingo na praça. O menino chega com seu carrinho a vender-me sorvete. Agradeço. Apesar disso, senta-se no banco, ao meu lado. Tento continuar a leitura, mas parei num parágrafo mais difícil que a interrupção me desconcentrou. Fecho o livro, puxo conversa. Menino meio índio. 'Sou de São Paulo', diz. - Mora há muito tempo aqui? - estamos numa cidadezinha qualquer, de Minas. 'Três meses', responde. - Seus pais se mudaram... 'Não, corta ele, moro só'. Acho estranho e resolvo aprofundar as indagações pois estou diante de um grande personagem. Sério, problemas mentais ou depressão. Teria treze anos. Diz que mora numa 'pensão', num bairro que eu conhecia. 'Em frente ao Poliesportivo', acrescenta. Eu conhecia o ginásio. Lembrei-me da casa em ruína, bem em frente, que me chamou atenção pela bela arquitetura. Ali moravam famílias, mendigos. Bem, nisso ele não mentia. Indagado, e como era meio dia, respondeu que não costumava almoçar. 'Só lanchar', falou. Depois de acertar as contas'. Ganhava vinte centavos por picolé vendido. Nos meus cálculos, e com sorte, cinco reais por dia. Pagava cinqüenta reais de pensão; devia quase dois meses. - Como veio para cá?, pergunto. 'De carona', disse.
Durante uma semana naquela praça de belos jardins o encontro. Às vezes, trocávamos algumas palavras. No último dia pago seu jantar, num botequim. Lá, traça dois pratos cheios, como se há muito não se alimentasse, mostra-se satisfeito, agradecido e, pela primeira vez, feliz. Estava na mesma roupa suja. Pressionado, conta-me sua vida: A mãe, assassinada por seu pai quando tinha meses de idade. Acolhido pelo barraco da avó, que bebia muito, abandonava-o com fome. Os vizinhos chamam a polícia, o juiz o coloca numa instituição de órfãos, onde adotado por uma senhora 'má, que me batia muito'. Aos doze anos foge de casa, fica nas ruas de São Paulo.
No dia seguinte encontro-o e lhe digo que estava voltando para o Rio. Ele estremece. Vi que sentia a perda. Sua expressão modifica-se, abandonado. Dei-lhe meu telefone, que me telefonasse a cobrar, contasse como estava sua vida.
Dez dias depois me telefona. Estava na Praça da Sé, em São Paulo. Tinha voltado a ser menino de rua. Falamos muito pouco, rapidamente, pois eu estava com pessoas de cerimônia na minha frente, no escritório. Deve ter imaginado que não gostei do telefonema, rapidamente desligou. Nunca mais voltou a telefonar. Tinha voltado a ser menino de rua. Eu me senti inútil e, de alguma forma, culpado.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Um outro lugar




Um outro lugar

Rogel Samuel


Impossível agüentar o calor carioca. Calor de Carnaval. Estou de partida. A contragosto, pois o sossego maior é sempre em casa. Passarei numa pequena cidade montanhosa. Não sei se terei conexão. Por isso, só depois do Carnaval posso escrever aqui. Espero a “Celebração da paz”, de Holderlin, que traduzo em parte e diz:

O salão sagrado, familiar, construído há muito tempo,
É arejado, e cheio com o divino,
Ecoando suavemente, modulando música quietamente.
Uma nuvem de alegria envia sua fragrância
Por cima dos tapetes verdes. Brilhando à
Distância, uma fila esplêndida de ouro-engrinaldada
Arranjo de xícaras, bem arrumadas, cheias de frutas maduras.
As mesas ao lado, subindo para cima
Do chão nivelado. Agora, pela noite,
Os convidados do amor se juntam, vindo de longe.

E com olhos semi-cerrados eu penso poder ver
O príncipe do festival, ele,
Sorrindo do trabalho sério do dia.
Embora você goste de negar sua origem estranha,
E até mesmo quando você abaixa seus olhos, cansado
Da longa cruzada — esquecido, ligeiramente sombreado—
Você assume a aparência de um conhecido,
Ainda seja reconhecido por todo o mundo; apenas sua superioridade
força as pessoas a se por de joelhos.
Não sendo eu nada em sua presença, eu sei
Você não é mortal. Uma pessoa sábia pode
Explicar muito, mas quando um deus aparece,
Há claridade diferente.
E com olhos semicerrados eu penso poder ver
O príncipe do festival, ele,
Sorrindo do trabalho sério do dia.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Ainda o poema



Ainda o poema

Rogel Samuel

Devido ao interesse e pedido de uma leitora e amiga volto ao poema-enigma de Márcia Sanchez Luz, pois muito mais haveria que descobrir no seu mistério, e estas minhas crônicas diárias são por natureza muito curtas e eu sou um crítico de muito pouco alcance. Pois: o que significa que a ferida que nasce não seja no sujeito, mas na lua escondida, na fria e escondida lua negra e invisível? Na lua delirante rebenta uma ferida escondida, cuja dor a lua desintegra e pacifica e a transforma naquela belíssima “chuva de gaivotas”. Nesta primeira estrofe a dor é objetiva, apesar de dizer “amo demais”, é objetivada, toma existência no objeto lua fora do sujeito, mas se concebe no seu interior, portanto se faz quase épico do que lírico, é emoção objetivada. E é por isso que se sente logo de saída uma atmosfera camoniana. A segunda estrofe não, faz ver o sujeito que sofre. Sofre com a flor que viu nascer – do amor -, mas sofrer aqui com o sentido de admitir, permitir, tolerar, consentir, experimentar, não apenas padecer. Mesmo que “grota” significa depressão sombria e úmida, o sujeito nela não se esconde, mas se abre e não combate, não se fecha ao que atrai, ama e gera descompasso. Lua negra é lua uterina que, fecundada, explode numa chuva de gaivotas.

Amo demais que até ferida brota
na cálida, escondida lua negra
dos meus delírios (dor que desintegra
calma desnuda em chuva de gaivota).

Os olhos choram mares, geram grotas,
fabricam densa nuvem que se integra
ao corpo equivocado pela entrega
sofrida num adeus desfeito em gotas.

Amo demais, eu sei, mas o que faço
se de outro jeito não conheço o amor?
A minha sina é nunca combater

o que me atrai e gera descompasso.
Se por um lado existe o dissabor,
tenho da vida a flor que vi nascer.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Quando a lua é negra




Quando a lua é negra


Rogel Samuel


Em "Lua Negra", Márcia Sanchez Luz nos dá um poema anti-lírico, ou melhor, um soneto que é o negativo do sentido clássico de lua. É a foice, o unicórnio, o buraco negro,
inatingível, perigoso, que atrai, a solidão inacessível, o vazio, o elemento denso,
mas extremo, o fascínio, mas aniquilamento, o venenoso remédio da cura, o nefasto da
ferida, mas cuja dor nos fascina e ensina - sem esta lua o amor não existe, não atrai, não nasce. A lua negra é o lado escuro da alma, ou Lilith, o lado distante e obscuro da lua, perigoso, a lua bruxa, um buraco no Universo.

Na realidade ela é a anti-lua, sua parte sombria, por isso mesmo dissabor, descompasso e amor.


Amo demais que até ferida brota
na cálida, escondida lua negra
dos meus delírios (dor que desintegra
calma desnuda em chuva de gaivota).

Os olhos choram mares, geram grotas,
fabricam densa nuvem que se integra
ao corpo equivocado pela entrega
sofrida num adeus desfeito em gotas.

Amo demais, eu sei, mas o que faço
se de outro jeito não conheço o amor?
A minha sina é nunca combater

o que me atrai e gera descompasso.
Se por um lado existe o dissabor,
tenho da vida a flor que vi nascer.

© Márcia Sanchez Luz

As luvas no chão



As luvas no chão


Rogel samuel


Recebi de minha amiga X. uma magnífica foto da posse do Presidente Obama. Diz ela,
ex-jornalista experimentada da rede Globo: "Se você estivesse lá, não seria capaz de ter
esta visão. A foto, na verdade, é resultado de 220 fotos diferentes que foram digitalmente
agrupadas. O que é interessantíssimo, é que você pode utilizar-se do "zoom" e
ver detalhes incríveis como rostos de pessoas e até mesmo detalhes das partituras musicais
da Banda. OBSERVE BEM, e irá encontrar caras conhecidas nas diferentes platéias...
Utilize o link abaixo para acessar a foto e depois, use a função de
zoom à esquerda para "zoom in" e "zoom out".

Na realidade é possível ver até um par de luvas no chão, talvez porque o músico só
conseguisse tocar sem elas. É curioso notar que o Presidente Bush está ali, enquanto
Obama discursa. A sua cadeira é bem melhor do que as outras, tem mesmo uma mesinha acoplada com uma garrafa de água e um copo. Mordomia que os outros ex-presidentes presentes não têm. Mas se explica, até aquele momento talvez ele ainda era Presidente. Ao contrário do Brasil, nos EUA o Presidente é a personificação da Nação e é tão respeitado quando a bandeira. Aqui o presidente é tratado como um normal. Lá não se ataca o Presidente como aqui.

Mas aquela mesinha foi a última mordomia de Bush. Agora, as luvas já estão no chão.


VEJA A FOTO EM:

http://gigapan.org/viewGigapanFullscreen.php?auth=033ef14483ee899496648c2b4b06233c

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Passa a vida



Passa a vida

Nisia Nobrega


Era o rio?
Era a vida?
Era a ponte? era o lago?
Era o beijo? era o sonho?
Vibração de ternura em nossas mãos unidas
sobre o rio, sobre a ponte,
sobre a espera, sobre o lago.
Angústia de solidão,
nas nossas almas incomunicadas.
Azul tremor de frio no silêncio.
Por onde o impulso do desejo vago?
Passa o rio,
Passa a vida,
Onde a ponte?
Era o amado?


Nossa Querida Amiga Nísia Nóbrega faleceu no ano 2.000. O câncer a destruiu. Era uma mulher bonita, sabia receber, sabia conversar, escrevia muito. Nisia tinha uma qualidade rara: tinha grandeza. Nasceu em Mamanguape (foto), Paraíba, no dia 1 de maio de 1928, filha de uma família de ricos fazendeiros. Seu pai, porém, tomado de uma certa depressão, vendeu suas terras e trouxe a família para o Rio de Janeiro, onde tudo perdeu e onde veio a falecer. Assim a mãe teve de “costurar para fora”, como se dizia, e logo colocou o filho no Exército e Nísia tornou-se professora primária, e depois professora da Escola Normal. Quando do governo militar, seu primo Jarbas Passarinho, então Ministro da Educação, transferiu-a para a Rádio MEC onde Nísia teve um programa de entrevista durante muito tempo. Foi diplomata do Brasil no Chile e casou-se tardiamente com um empresário, um editor estrangeiro. Sabia receber, sabia valorizar o trabalho do outro, tinha uma qualidade rara: tinha grandeza. Escreveu vários livros de poesia, como Nos braços leves do vento (1951); Rosa distante (1953,); Completamente amor (1961); Ramo da saudade ( 1965, poesia); Isla-sin-raices (1971); Na flor da correnteza (1979), Mamanguape e muitos outros. Faleceu em 2.000. Camargo Guarnieri musicou seu poema Intermezzo em 1973. Escreveu estórias infantis, cronicas sobre a vida carioca.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Quem vai negar o holocausto tibetano?




Quem vai negar o holocausto tibetano?

Rogel Samuel

Negar o holocausto judeu dá cadeia e excomunhão. Certo. Não discuto. Mas quem vai condenar os que negam, omitem ou esquecem o holocausto do Tibet desde 1950? Tudo é uma questão política. Um milhão e duzentos mil tibetanos foram massacrados. Templos budistas foram até bombardeados. Sua Santidade Dalai Lama teve de exilar-se na India onde vive até hoje. O maior exército do mundo invadiu o Tibet. Houve massacre numa guerra de extermínio. A língua chinesa é hoje a oficial dentro do Tibet e não a tibetana. 85 mil tibetanos fugiram e vivem no exílio, a maioria passa fome nas favelas indianas. 6 mil mosteiros foram destruídos.

Que mais? Quem vai prender os que negam este holocausto?

6º Capítulo de "O Igarapé do Inferno"




LEIA HOJE:

Coluna de Rogel Samuel, com o 6º Capítulo de "O Igarapé do Inferno", romance sobre a Amazônia, pujante e pungente, somente em:

http://www.blocosonline.com.br/home/index.php
O MAIOR PORTAL DE LITERATURA DO BRASIL

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Os canibais amazônicos




Os canibais amazônicos

Rogel Samuel


Segundo a Folhaonline, os índios Kulina mataram e comeram um jovem na cidade de Envira, que, segundo me informaram, fica na margem direita do Tarauacá, alto Juruá, Amazonas: como os "numas" do meu livro "A amante das amazonas", os Kulina devoram um civilizado e penduraram sua cabeça na árvore.
O meus Numas não era exatamente canibais, mas exterminadores.
O que se sabe dos canibais amazônicos é que eles comiam o corpo dos seus inimigos dentro do crânio de suas cabeças. Não penduravam cabeças na árvore.
O crânio era importante, pois representava a passagem.
Isto foi magnificamente estudado em “Araweté: Os Deuses Canibais” de Eduardo Viveiros de Castro, Rio, Edições UFRJ/Zahar, 1986.
"Os yanomamis praticaram o endocanibalismo (comem gente da própria tribo). É uma cerimônia que reitera do compromisso de vingar o morto. "O ritual organiza um estado de hostilidade
permanente", diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, do Museu Nacional. "A cerimônia é quase uma eucaristia." Só os amigos sem laços de consangüinidade são convidados para o
funeral. O cadáver é pranteado e colocado sobre uma plataforma, fora da aldeia. A carne é separada dos ossos e cremada. Os ossos são limpos e moídos num pilão até virar cinza. No funeral, os vizinhos e aliados comem as cinzas com purê de banana.
"Ao contrário do culto cristão do ancestral", explica Viveiros de Castro, "a antropofagia yanomami realiza o apagamento total do antepassado".
Há um texto indígena antigo que cito de cabeça por não achar o livro que diz:
“Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça
Sobre tuas cinzas dançarei
E exultarei!”

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A lógica do quintal




A lógica do quintal

Rogel Samuel

Tem o verão sua lógica própria. Vejo as pessoas dentro daquela água imunda da praia e não gosto. O sol já está insuportável. Dizem que está cancerígeno. Tudo contribui para um verão desconfortável se eu não me adaptar à lógica dos nossos novos tempos de poluição. Ficar trancado no ar condicionado não, o verão impõe o ar, o andar.

Lembro-me do calor dos quintais. Dos fundos dos quintais, com galhinheiros e mangueiras. Luiz Bacellar traz os quintais de volta em:



PORTA PARA O QUINTAL

Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.
As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando
quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...


(Frauta de barro)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Veio d'água










Veio d'água


Rogel Samuel



O poema de Álvaro Maia é muito ecológico, amazônico, sonoro, sincopado, belo. Sua
póetica é muito boa, ainda que antiga, pouco importa. Álvaro Maia (1893-1969) era um poeta "pós-moderno", ou seja, nos anos 20 e 30 escreveu sonetos parnasianos e até poemas românticos, de uma sonoridade antiquada, desusada. Por isso os pseudo-crtíticos de sua terra o desprezam, ainda que seja valorizada a sua ficção, que é inferior. Leiamos este "Veio dágua", onde se ouve o líquido puro entre recantos escondidos no coração da selva escura, a alma da terra. E ao toque é água fria, sonoras águas. Só quem conheceu esses veios dágua dentro da floresta amazônica pode avaliar a maravilhosa saudade daqueles tempos.



VEIO D'AGUA



Gosto de ouvir-te, veio de agua pura,
recortando os recantos escondidos
de soluços, de vozes, de arruidos,
entre hinos de alegria e de amargura ...
Choras no coração da selva escura
a saudade dos trilhos percorridos,
e ao teu pranto, lembrando os tempos idos,
a verde alma da terra se mistura ...
És calmo e frio em fases diferentes,
ora na rude angustia das vazantes,
ora no desespero das enchentes ...
E, corda de harpa rebentando em festas,
ergues ao ceu, em notas delirantes,
a epopeia convulsa das florestas ...

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Promessas de carnaval




Promessas de carnaval


Rogel Samuel



O meu poema de carnaval é de certa forma muito popular. Agradou, anda na net, circula em sites e blogs neste carnaval que se aproxima. Gosto de carnaval, ou melhor, gostei mais quando tinha menos gente, menos calor, menos idade. Estou velho, já não subo nas mesas a cantar, a sambar, a rir e a gritar na alegria das serpentinhas e nos brilhos das alegorias. Nem mais bebo do cálice das belezas cariocas com aquelas exuberâncias da década de 60. Mas a culpa não é só minha. O mundo mudou, não só eu. O carnaval de inocente tornou-se agreste e comercial. Mas ainda belo, rico, quente.


Nesse carnaval entôo em surdina
breve texto esta canção
desenvolvendo a paisagem cristalina
tinta azul, papel na mão
espuma do ar mantida em vestes finas
toldo de amor que aparelha e envolve
e te molesta a alegria matutina
passando o pente o tema a minha senha
e ergues a tricotar a estrela fescenina
brincando de tua passarela
e sonhada é férrea a tua serpentina
borboleta de papel de seda
que me despeço de tua face de menina
teu aço besuntado de abelha.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

A morte nada respeita




A morte nada respeita


Rogel Samuel


Morreu uma pessoa muito querida para mim. Eu a via muito pouco, mas em minha mente ela era permanente lembrança. Eu a via muito bem, pois ela era uma das minhas mais antigas recordações de infância.
Morreu na véspera de completar 100 anos. Mas como era cheia de vida!
Lembro-me do dia em que um ladrão entrou em sua casa. Ela morava sozinha, em Manaus.
Como ela tinha um piano na sala, o ladrão exigiu que ela tocasse enquando ele ia atrás dos valores pela casa afora.
Nunca me esqueço de como ela nos contou o fato às gargalhadas, apesar de ter sido roubada.
Não perdia nunca o bom humor.
Ela era minha madrinha de crisma, e do casal eu recebi uma caneta, presente que guardo e uso até hoje.
Deve ter sido por isso que virei escritor.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Aniversário do Padre Antonio Vieira










Aniversário do Padre Antonio Vieira

Rogel Samuel

Neste dia 6 de fevereiro, há 401 anos, nascia o maior orador, o mais possante prosador, o "imperador da língua portuguesa", o Padre Antonio Vieira. Fui alertado do seu aniversário pelo blog de minha amiga Amelia Paes, "ao longe os barcos de flores":
http://barcosflores.blogspot.com/


Toda vez que leio o noticiário me lembro do que ele escreveu:

“É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”.

(“Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia”, II).

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

A voz-poesia de Azenha em CD




A voz-poesia de Azenha em CD

Rogel Samuel


Ouço a voz entre as guitarras. A palavra, a poesia na capa de som, como uma espécie de escultura sonora.
A voz de Azenha é muito apropriado suporte de seu texto, ainda que sua poesia não seja oral, mas intelectual e simbólica. As guitarras portuguesas nunca estiveram tão prestes a dizer poesia como neste CD "o mar atinge-nos". Portugal é o mar. A poesia aqui se define como poesia-guitarra portuguesa. O mar é português, o mar azul. Portugal deixou seu sangue e seu passado no mar, no mar a conquistar, no mar a avançar, a buscar naquela ânsia de infinito que o levou às Índias e talvez o pôs a perder-se de si, como D. Sebastião.
Azenha faz a voz das mulheres viúvas desse Portugal que na praia depuseram seus mantos pretos sobre os ombros e construíram a pátria sozinhas. O mar atinge estas mulheres que ocupam os lugares dos muros e se cercam de águas.
O passado de Portugal é uma mulher enlutada, adornada de algumas pérolas e que "nasce a chorar".

olhou o pão na mesa e deixou cair
as mãos como sementes
para que tudo crescesse a partir
do chão

olhou o mar

e viu as lágrimas
das trevas
iluminadas pelo firmamento
....
as mães têm as mãos grandes

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

A poesia de Álvaro Maia



A poesia de Álvaro Maia

Rogel Samuel

Está cada vez mais raro o livro de poemas de Álvaro Maia “Buzina dos paranás”. O meu exemplar já está em pedaços. Poucos são os leitores hoje do “príncipe os poetas amazonenses”, título que ganhou no concurso promovido, em 1925, pela revista “Redenção”, dirigida por Clovis Barbosa, com 21 votos, tendo como concorrentes Jonas da Silva (7 votos), Raimundo Monteiro (6 votos), Francisco Pereira, Genésio Cavalcante e Heitor Veridiano (1 voto cada).
Álvaro Maia (1893-1969) é o mais amazônico dos poetas de sua terra. Seu tema é a floresta, o meio ambiente. Ele nasceu num seringal no rio Madeira, foi Interventor do Amazonas – de 1930 a 1933, Deputado Federal – de 1933 a 1935, Governador do Amazonas – de 1935 a 1937, Interventor - de 1937 a 1945, Senador - de 1946 a 1951, Governador do Amazonas - de 1951 a 1954, e Senador - de 1967 a 1969. Foi casado com D. Amazilis, teve duas filhas: Terezinha (já falecida) e Alviles, casada com Leopoldo Péres Sobrinho (irmão do falecido senador Jefferson Péres), segundo uma pessoa de sua amizade. Era um grande intelectual, muito culto, falava várias línguas, e foi catedrático de língua portuguesa com a tese: “O Português-Lusitano e o Português-Brasileiro léxica e sintaticamente considerados”. Ensinou até 1930. Quando era governador, tentou continuar dando aulas, mas desistiu por falta de tempo. Era um político sério e honesto. Eu o vi uma única vez na vida. Ele descia a pé a Rua Barroso. Morava em frente ao famoso Teatro Amazonas. “Genesino Braga relacionou mais de 45 trabalhos editados, incluindo romances, discursos, artigos, poemas”, escreveu Erasmo Alfaia, que assistiu à sua morte.


VEIO D'AGUA

Gosto de ouvir-te, veio de água pura,
recortando os recantos escondidos
de soluços, de vozes, de arruídos,
entre hinos de alegria e de amargura ...
Choras no coração da selva escura
a saudade dos trilhos percorridos,
e ao teu pranto, lembrando os tempos idos,
a verde alma da terra se mistura ...
És calmo e frio em fases diferentes,
ora na rude angustia das vazantes,
ora no desespero das enchentes ...
E, corda de harpa rebentando em festas,
ergues ao céu, em notas delirantes,
a epopéia convulsa das florestas ...

http://historiadosamantes.blogspot.com/2009/01/alvaro-maia.html

domingo, 1 de fevereiro de 2009

O poeta como um clown




O poeta como um clown

Rogel Samuel



Russell S. King, da University of Nottingham, escreveu um texto muito elucidativo para a compreensão de “Aparição do clown”: “The poet as clown: Variations on a theme in nineteenth-century French poetry” (Orbis Litterarum - International review of Literary Studies, Volume 33 Issue 3, Pages 238 – 252 Published Online: 1 Jun 2007).

O auto-retrato do artista com um clown foi um tema generalizado pelos pintores do Século Vinte, e este modo de se ver partiu dos poetas franceses do Século Dezenove.

Houve uma espécie de metonímica fusão do Pierrô com o Arlequim, o bobo da corte, o showman vagante, o palhaço de circo e o violista cigano.

Segundo o pesquisador, foi Théodore de Banville o primeiro que identificou o clown com o poeta, nas suas "Odes funambulesques", de 1857, na aspiração de idealizar a realidade, como um acrobata na corda bamba.

Depois vieram Baudelaire, Mallarmé, Laforgue, e mesmo o português Fernando Pessoa.

Marlarmé se via como um ator decadente, uma vítima. O clown de Verlaine expressava a ambiguidade e plasticidade da estética literária. Mallarmé, o "Le Pitre châtié". Laforgue via no clown o diletante frívolo, uma espécie de Hamlet que era também um dandy que fazia o papel de simplório. Pessoa, como se sabe, disse que "o poeta é um fingidor", isto é, um clown.

Todos esses poetas faziam da simbologia do clown a imagem do escritor como um fingidor, um ator que cinicamente enganava seu leitor e a sociedade de seu tempo, numa manifestação contra o realismo da realidade de seu tempo.