segunda-feira, 30 de junho de 2008

AURORA


AURORA

Rogel Samuel


Releio com assombro e delícia o poema “Aurora” de Adolfo Casais Monteiro de 1954:


“A poesia não é voz — é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
voo sem pássaro dentro.”


(Adolfo Casais Monteiro in “Voo sem Pássaro Dentro”, 1954). Publicado por Maria Azenha, um marco na poesia da contemporaneidade, em:
http://opodaescrita.blogspot.com/2008/06/aurora.html"A poesia não é voz — é uma inflexão", ou seja, um tom de voz, uma modalidade do dizer da voz. A poesia é uma modulação na voz. Quem diz é a prosa, no verso nada se diz, “nada se acrescenta a nada, somente / um jeito impalpável dá figura / ao sonho de cada um, expectativa / das formas por achar”. Depois, no poema, ele diz: “No verso nasce / à palavra uma verdade que não acha / entre os escombros da prosa o seu caminho”. Como vêem é pura estética, é teoria literária, no mais alto grau. Termina o seu poema reconhecendo o implacável: O homem não tem alma, não tem conteúdo, não tem destino, sentido e rumo – “E aos homens um sentido que não há nos gestos nem nas coisas: / vôo sem pássaro dentro.”
Adolfo Casais Monteiro sabia do que falava, pois ele era um excelente crítico literário. Em “Clareza e Mistério da Crítica”, de 1961, ele ataca o pedestal do maior crítico brasileiro, Afrânio Coutinho, razão por que foi odiado entre nós. Mas ele era um crítico independente e altivo! Foi perseguido por Salazar, refugia-se no Brasil, onde leciona Literatura Portuguesa. Em 1962, é professor titular em Araraquara. Mas morreu com 64 anos. Ele recebeu aquela famosa carta de Fernando Pessoa que hoje pode ser lida em:
http://www.pessoa.art.br/?p=24
Professor visitante na Universidade de Wisconsin, em Madison, (1968/69), e na Universidade Vanderbilt (Nashville, Tennessee, 1969). Dele, disse Jorge de Sena: Homem de duas pátrias, soube, da maneira mais devotada e sensível, ser inteiramente fiel a ambas, para lá de todas as falácias do nacionalismo. Porque ele foi, acima de tudo e dos condicionalismos da vida, um cidadão do mundo em língua portuguesa, que é uma maneira de esse mundo não saber que possui tal cidadão, e de a língua, que o possui, presa aos seus provincialismos, não apreciar a grandeza que por ela se afirma e realiza. (Jorge de Sena).

sábado, 28 de junho de 2008

O professor era um deus


Rogel Samuel

Naquele tempo o professor era um deus. Estava acima do bem e do mal. Lembro-me de um catedrático, cujo nome não revelo, que nos ministrou uma única aula, por sinal magnífica, em que passou a bibliografia e a pesquisa e se foi para Paris, onde era professor visitante na Sorbonne. Não voltou. No fim do semestre, a assistente nos procurou para recolher os trabalhos, que foram corrigidos por ela. Hoje isso seria inadmissível. A bibliografia toda em línguas estrangeiras e os livros ou revistas tinham de ser consultados na Biblioteca Nacional. Eles eram deuses. Só me lembro de um aluno que, depois de receber a nota, desacatou a professora: e foi expulso da faculdade! Professores absolutos, autocráticos, por isso o ensino era tão bom, tinha o grau de excelência. Para ingressar no magistério universitário não havia concurso (exceto o catedrático), mas indicação. Um colega nosso, já falecido, o Ítalo, foi convidado por dois catedráticos. Ela era bem mais velho do que nós e era mulato. Usava umas grossas lentes de óculos, quase cego. Falava várias línguas, tocava piano, um gênio. Conhecimento musical imenso. Lembro-me dele falando sobre a “Paixão segundo São Mateus” de Bach. Tínhamos colegas e contemporâneos extraordinários. Alguns ficaram famosos, como José Guilherme Merquior, dois anos mais velho, que fazia Filosofia e Direito. Merquior parecia um menino quando proferia aulas e conferências sobre estética. Era uma época de deuses, mas a maioria se dissipou e sucumbiu no magistério mal-remunerado, alguns presos, outros mortos ou torturados. A decadência de nossa geração se deve à decadência do magistério e ao rebaixamento da autoridade do professor.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

No centenário de Guimarães Rosa



Rogel Samuel



Hoje João Guimarães Rosa completaria 100 anos.
Sua obra máxima, “Grande sertão: veredas”, narra a relação real/irreal (Riobaldo/Diadorim) como possibilidade. Diadorim - o objeto, abrangente, cujo sentido escapa sempre, que busca o inconcebível, o que não teve raízes, a misteriosa obscuridade. Desconsolida a condição humana, deixada a descoberto. Um não-ser, uma existência dissolvida, separada dos sistemas do racionalismo, desprotegida. Diadorim - a vitória da emoção dos dramas particulares e anti-heróicos que fizeram o triunfo do romantismo. Como personagem, não se insere num contacto social sistemático, num sistema amplo, num modelo.
“Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa”, “já não tiro sombra dos buracos” — hoje o sertão desencantado, lentamente se aburguesa, moderniza-se, banaliza-se. Outra a lógica do sertão, o oposto da evidência, lugar de herói trágico.
Agora o sertão ganha nova figura, desaparece. No interior estão instalados aparelhos da TV, porque o sertão era um perigo para a ordem estabelecida, e agora se desencanta, desperta do misticismo. O sertão era místico, mi¬tico e crítico. Lugar das rezas, de Antônios Conselheiros, de Padres Cíceros. O sertão, império da moral, da virgindade. Mas também da guerra. Sertão sagrado. O mundo no seu estado subjetivo. Até bem pouco tempo, eu o vi, não conhecia nem os ecos da primeira revolução industrial. Estava na fase semi-medieval do estado comercial. Havia “reis”, no sertão subjetivo.
Agora é passado, e sempre esteve no passado, nunca projetou-se no futuro. Lírico, subjetivo. A grande maioria dos escritores brasileiros passaram a infância nas casas grandes da subjetividade passada. O sertão do passado tem a pátina da magia dos primitivos desígnios do homem, das primeiras experiências, da emoção dos que sonhavam nas varandas. Por isso, faz com a infância sua subjetividade literária. O heróis nunca serão adultos, velhos, morrem antes, não amadureceram, jovens nos caminhos da guerra. Todo sertão tem de ser assim, visto pelos olhos do sonho, algo perdido, perdido no tempo, longínquo, remotíssimo.
Veredas.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Dos sonhos

Dos sonhos

Rogel Samuel

Todos nós temos alguns sonhos, que alimentamos com cuidado e que residem no mais secreto de nossas consciências. Avançamos na velhice alimentando sonhos. Quando deixamos de sonhar, entramos em processo de morte. Dessa forma, a morte é, pois, invenção da vida. A morte também é um dos nossos sonhos. Inventamos a morte, criamos nela o céu, o inferno e tudo o mais. Mas, além da morte, temos outras realizações no domínio dos sonhos.
Somos responsáveis pelo que sonhamos. Cuidado com eles, que facilmente viram realidade. Não pense que eles são “apenas sonhos”. Podem ser tão verdadeiros quanto a realidade, ou podem morar nas regiões mais distantes, e nunca aparecer.
Que são os sonhos? Não os menospreze. Seremos o que sonhamos. Concretizamos as obras que com elas sonhamos antes.
A matéria, diz Aristóteles, é o ser em possibilidade, como a cera é a possibilidade para o sinete, diz Bloch.
“Há muitos graus de realidade. A realidade não traz a justiça em si mesma. Está aberta sobre o porvir, escreveu Ernst BIoch, em “O Homem Como Possibilidade”.
O sonho pode agir criadoramente de maneira concreta. As coisas ainda não estão decididas, acabadas, concluída. Falta o quê? Falta o futuro, o Futuro.
O futuro está no espaço mágico dos sonhos, na sinfonia das nossas esperanças e aspirações, lá, lá onde tudo é possível. É lá que está aquele laranjal florido, aquela casa, aquela montanha, você a conhece?

“Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimária procura entre névoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha donde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem!”
(Goethe. “A canção de Mignon”, Trad. de João Ribeiro)

O Professor


Rogel Samuel

Recebi da Professora e Escritora Bernardina Oliveira o seguinte email sobre o Mestre Alceu: “Presente! Também estive presente às aulas do Alceu de Amoroso Lima. De alguma forma há certa similaridade na formação da nossa turma da Fnfi. Marcas num discurso de pedra. Alceu, Cleonice, Celso, Afrânio, Gladstone e outros. A linguagem gestual de Alceu! Lembra-se de que, às vezes, esculpia no espaço do texto oral figuras em espiral ou retilíneas? A linguagem dos gestos, intensificada pelo momento político, com certeza! Houve um natural distanciamento entre os componentes da nossa turma. Mas quando se fala em Alceu... Presente!”
Ela faz referência a Gladstone Chaves de Mello, de quem nunca se pode esquecer, depois de ter sido seu aluno. Nasceu em 1917, em Minas Gerais, Campanha, de família modesta. Quando jovem era amigo de Augusto Magne. Pobre e órfão veio para Belo Horizonte, onde iniciou o estudo de Direito, depois para o Rio de Janeiro, onde concluiu o curso e reencontrou o Padre Augusto Magne, Catedrático de Filologia Românica, na nossa Universidade do Brasil. Por indicação de Magne, indicado a assistente de Língua Portuguesa para Sousa da Silveira, o Catedrático. Trabalhou em comunidades pobres, escreveu 20 livros, artigos nos jornais. Livre docente, doutor, político, diplomata. Lutou contra a ditadura Vargas. Vereador e deputado estadual. Em 1962 voltou para a FNFi, como nosso professor. Depois, Adido Cultural do Brasil em Lisboa, com o embaixador Negrão de Lima. Volta ao magistério depois do golpe de 64. Católico praticante, condecorado pelo Papa. Membro do Conselho Federal de Educação (1970) e do Conselho Federal de Cultura. Adido Cultural em Lisboa em 1972-1974. Faleceu em 2001.

Como professor, Gladstone era terrível: reprovava sempre e muito. Nem dizia por quê. Era capaz de dar zero a um trabalho sem justificativa. Suas aulas eram brilhantes, orais, falava como um parlamentar. Era um tribuno falando, não um professor. Seu misterioso método de avaliação consistia de um trabalho de pesquisa escrito em casa. Mas era implacável! Lembro-me de ter ele dito para nós, em sala de aula, que aquela classe era muito grande - ia reprovar a metade da turma! Como custou a entregar as notas, foi um grupo de alunos bater na porta de sua casa, aflitos.

Milagrosamente me salvei.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

O anel de brilhante


Rogel Samuel

Ela ganhou um anel de brilhante. Quando ficou noiva. Era um anel com um solitário. Aquele anel acompanhou-a a vida inteira. Quando ficou velha, passou o anel para sua neta mais velha, no dia do casamento desta. – “Entregue para sua neta, no dia do casamento dela”, recomendou. Amélia, a neta, recebeu o anel somente quando sua avó estava para morrer. – “Deixe-o para sua neta”, disse-lhe a avó. Maria Antônia, neta de Amélia, deixou por herança o anel para sua neta, que o deixou para sua neta, e depois o anel foi passando, de neta em neta, por um longo período de tempo. Todas morreram, umas bem velhas, outras nem tanto. Mas o anel permaneceu vivo, inteiro e brilhante. O anel é eterno. Ficará até o final dos tempos, e ninguém saberá das vidas que ele acompanhou.
A cadeia foi quebrada por um naufrágio.
Hoje o anel repousa no fundo do mar.
Dizem que olhando, com uma boa lupa, é possível ver o rosto de todas as mulheres que o usaram.

O caminho da floresta

O caminho da floresta

Rogel Samuel

O filósofo Martin Heidegger, em Holzweg, escreveu: “Na floresta há certos caminhos que freqüentemente se perdem, recobertos de ervas, no não-traçado. A gente os chama de Holzwege”. “Cada um segue seu próprio caminho, - continuou ele - mas na mesma floresta. Freqüentemente, parece que um assemelha-se a outro. Mas isto é apenas a aparência. Lenhadores e guardas conhecem os caminhos. Eles sabem o que estou dizendo: se empenhar num Holzwege”.
Segundo o velho filósofo, descrente, retirado do mundo na Floresta Negra, todos vão dar em nenhum lugar... Hoje se costuma acusá-lo de nazista. Bobagem. Cheguei a ver a “Floresta Negra”, de longe. É um aglomerado de altos pinheiros na montanha, um lugar de fantasmas.
Talvez ali esteja o sítio apropriado para pensar. Pensar, para Heidegger, é pensar a origem do ser: “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada? Eis a questão.” – escreveu ele na “Introdução à metafísica”. Tradução de Carneiro Leão. “Todos são atingidos uma vez ou outra pela força secreta (da pergunta) sem saberem ao certo o que lhes acontece. Assim num grande desespero, quando todo peso parece desaparecer das coisas e se obscurece todo sentido, surge a questão”. Essa é a questão fundamental da metafísica. Fundamental significa algo sobre o qual uma coisa tem fundamento, tem solo. A pergunta é: Por existe o que existe, e não antes o Nada? Às vezes, creio que temos esses pensamentos essenciais enquanto caminhamos pela floresta. Solitariamente. A floresta é o lugar ideal para o questionamento de tal profundidade. Como disse o poeta: a montanha é alta, mas só o vale é profundo. Eis o caminho que não leva a nenhum lugar. O Holzweg.

domingo, 22 de junho de 2008

HEIDEGGER

 

 

 

 

 

 

 

A QUESTÃO FUNDAMENTAL DA METAFÍSICA

Trad. Emmanuel Carneiro Leão

Por que há simplesmente o ente (1) e não antes o Nada? Eis a questão. Certamente não se trata de uma questão qualquer. “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” - essa é evidentemente a primeira de todas as questões. A primeira, sem dúvida, não na ordem da seqüência cronológica das questões. Em sua caminhada histórica através do tempo o homem e os povos investigam muito. Pesquisam e procuram e examinam muitas coisas antes de se depararem com a questão, “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” Muitos nunca a encontram, não no sentido de a lerem e ouvirem formulada, mas no sentido de investigarem a questão, i.e, de a levantarem, de a colocarem, de se porem no estado da questão.
E não obstante todos são atingidos uma vez ou outra, talvez mesmo de quando em vez, por sua fôrça secreta, sem saberem ao certo, o que lhes acontece. Assim num grande desespero, quando todo peso parece desaparecer das coisas e se obscurece todo sentido, surge a questão. Talvez apenas insinuada, como uma badalada surda, que ecoa na existência (2) e aos poucos de novo se esboroa. Assim num júbilo da alma, quando as coisas se transfiguram e nos parecem rodear pela primeira vez, como se antes nos fosse possível perceber-lhes a ausência do que a presença e essência. Assim numa monotonia, quando igualmente distamos de júbilo e desespero e a banalidade do ente estende um vazio, onde se nos afigura indiferente, se há o ente ou se não há, o que faz ecoar de forma especial a questão: Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?
Em todo caso, quer seja mesmo investigada ou quer, ignorada como questão, perpasse pela existência como um hálito tênue, quer nos pressione mais duramente ou quer se veja preterida e recalcada por qualquer pretexto, de fato nunca é a questão que na ordem cronológica investigamos por primeiro.
Mas é a primeira questão em outro sentido - a saber quanto à dignidade. O que se explica de três modos. A questão, “por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?”, se constitui para nós na primeira em dignidade antes de tudo por ser a mais vasta, depois por ser a mais profunda e afinal por ser a mais originária das questões.
A questão cobre o máximo de envergadura. Não se detém em nenhum ente de qualquer espécie. Abrange todo ente, i. e, não só o ente atual no sentido mais amplo, como também o ente, que já foi e o que ainda será. O arco da questão encontra seus limites apenas no que absolutamente nunca pode ser, no Nada. Tudo, que não for nada, cai sob seu alcance, no fim até mesmo o próprio Nada. Não certamente por ser alguma coisa, um ente, de vez que dele falamos, mas por “ser” o Nada. É tão vasto o âmbito da questão, que nunca o poderemos ultrapassar. Não investigamos esse ou aquele nem mesmo, percorrendo um por um, todos os entes, mas antecipadamente o ente todo, ou como dizemos, por razões a serem discutidas ainda, o ente como tal na totalidade.
Com ser assim a mais vasta, a questão é ainda a mais profunda: “Por que há simplesmente o ente...? “ “Por que” significa, qual é o fundo? De que fundo provém o ente? Em que fundo descansa o ente? A questão não investiga isso ou aquilo no ente, o que ele é cada vez, aqui ou ali, como é constituído, pelo que pode ser modificado, para que serve etc... Ela procura o fundo do ente enquanto ente. Procurar o fundo, isso é aprofundar. O que se põe em questão, entra assim numa referência com o fundo. sendo, porém, uma questão, fica aberto, se o fundo (Grund) é um fundamento originário (Ur-grund), verdadeiramente fundante, que produz fundação; ou se ele nega qualquer fundação e é assim um abismo (Ab-grund); ou se o fundo não é nem uma nem outra coisa, mas dá simplesmente uma aparência, talvez necessária, de fundação, tornando-se destarte um simulacro de fundamento (Un-grund). Como quer que seja, procura-se decidir a questão no fundo, que dá fundamento para o ente ser, como tal, o ente que é. Essa questão do “por quê” não procura causas de igual espécie e do mesmo plano que o ente. Não se move em nenhuma fácie ou superfície. Afunda-se nas regiões profundas e vai até os últimos limites dos fundos. É avessa a toda superfície e planura, voltada para as profundezas. A mais vasta, é igualmente a mais profunda das questões profundas.
Por ser a mais vasta e profunda das questões, é também a mais originária. O que se deve entender por isso? Ao refletirmos sobre todo o âmbito do que se põe em questão, o ente como tal no seu todo, depara-se-nos fàcilmente o seguinte: Afastamo-nos inteiramente de qualquer ente particular, enquanto este ou aquele. Intencionamos sim o ente em seu todo mas sem qualquer preferência. Apenas um dentre eles sempre de novo se insinua estranhamente: o homem, que investiga a questão. Não obstante, não está em questão nenhum ente particular. No sentido de seu raio ilimitado de ação Lodos os entes se equivalem. Um elefante numa floresta virgem da Índia é tão bem um ente, quanto um fenômeno de combustão química no planeta Marte ou qualquer coisa outra.
Para satisfazermos, portanto, a questão, “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?”, no sentido correto de sua investigação, devemos eliminar a preferência de qualquer ente em particular, inclusive a referência ao homem. Pois o que é esse ente! Imaginemos a terra na imensidão obscura do espaço no universo. Proporcionalmente não passa de um minúsculo grão de areia com um quilômetro de extensão, e o resto é o vácuo Em sua superfície vive rastejando em profusão um punhado entorpecido de animais pretensamente astutos, que por um instante descobriram o conhecimento (Cfr. Nietzsche, Sobre a Verdade e a Mentira no sentido extra-moral, 1873 inédito). E o que significa o espaço de tempo de uma vida humana no curso de milhões de anos? Mal uma pulsação do ponteiro de segundos, um sopro de respiração. Dentro da totalidade do ente não há razão para se privilegiar este ente, que se chama homem e ao qual pertencemos por acaso.
Mas tão logo o ente em seu todo cai no campo de força da questão, investe-o a investigação, com a qual entra numa relação sui generis, porque única. Pois somente nela o ente em seu todo se revela como tal, se abre na direção de seu possível fundamento e assim se mantém em questão. Para ele a investigação não é um fenômeno qualquer dentro do real, como p . e. a queda dos pingos de chuva. A questão do “por quê” defronta-se por assim dizer, com o ente no seu todo. Dele como que se desliga, embora não de todo. E é justamente o que lhe confere uma distinção. Ao defrontar-se com o ente no seu todo, sem, todavia, se lhe poder escapar de todo, repercute o que na questão se investiga, sobre a própria investigação. Por que o por quê? Em que se funda a questão do por quê, que pretende pôr o ente no todo em seu próprio fundo. Será ainda esse “por que” uma questão sobre o fundo entendido, como superfície, de sorte que sempre se procura um ente para fundamento? Não é essa “primeira” questão a primeira em dignidade, considerada segundo o valor intrínseco da questão do Ser (3) e suas modalidades.
Sem dúvida alguma — quer se ponha a questão, “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?”, quer não, em nada se altera o ente em si mesmo. Também sem ela os planetas continuam a percorrer as suas órbitas. Também sem ela o elã da vida continua a pulsar através dos animais e das plantas.
Se, porem, for posta de maneira devida, dar-se-á necessariamente uma repercussão, do que se investiga, sobre a própria investigação. Por isso não se investiga, sobre a própria investigação. Por isso não se trata de um fenômeno qualquer mas de um evento especial, que chamamos um acontecimento.
Como todas as demais questões nela diretamente radica das, nas quais se desenvolve, a questão do “por quê” é irredutível a qualquer outra. Impele ã procura de seu próprio por quê. A primeira vista e considerada de um ponto externo, a questão “por que o por quê? assemelha-se a uma repetição jocosa, que se poderia repetir até ao infinito, da mesma partícula interrogativa. Parece mesmo uma especulação vazia e desvairada sobre significações verbais sem conteúdo. Certamente assim o parece. Trata-se apenas de saber, se nos deixaremos enganar por essa aparência demasiado fácil, dando logo tudo por resolvido, ou se ainda seremos capazes de experimentar na repercussão da questão do “por quê” sobre si mesma um acontecimento provocante.
No caso, porém, de não sermos vitimas de uma ilusão de ótica, havemos de ver, que a questão do “por quê” na qualidade de questão sobre o ente como tal no seu todo, nada tem a ver com qualquer jogo de palavras. Suposto, ainda possuirmos tanta fôrça de espírito para realizarmos verdadeiramente a repercussão sobre seu próprio por quê. Pois tal repercussão não se fará certamente por si mesma. Então faremos a experiência de fundar-se essa questão eminente num salto. No salto, em que se deixa para trás (4) toda e qualquer segurança da existência seja verdadeira ou presumida. Sua investigação ou se concretiza no salto e como salto ou não se realiza nunca. O que significa aqui “salto”, esclarecer-se-á mais adiante. A questão não é o salto. Nele se deve transformar. Ela ainda se acha inocentemente ‘defronte do ente. Por ora basta saber, que o salto dá origem (er-springt) ao próprio fundamento da investigação. Saltando, ela origina para si o fundo, em que se funda. Um tal salto, que origina para si seu próprio fundamento, denominamos, de acordo com a significação verdadeira da palavra, um salto originário. (5) Ora, uma vez que a questão, “por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” dá origem ao fundamento de toda questão verdadeira e lhe é, nesse sentido, originária, deve-se reconhecê-la, como a mais originária das questões.
Assim, com o ser a mais vasta e profunda questão, é também a mais originária e vice-versa.
[Introdução à metafísica. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969.]

Paisagem sobre a lagoa

Paisagem sobre a lagoa

Rogel Samuel

Como ler-se pode este estranho poema de Holderlin, “Metade da vida”? A tradução de Manuel Bandeira. A princípio vemos uma “paisagem sobre a lagoa”, feita de trepadeiras amarelas e rosas silvestres. Sobre a lagoa talvez signifique que haja um muro, onde sobem as heras e ao redor de que se encontram as rosas silvestres, que também são trepadeiras, cujo perfume só chega na hora da morte. Como escreveu Clarice Lispector “As rosas silvestres têm um mistério dos mais estranhos e delicados: à medida que vão envelhecendo vão perfumando mais. Quando estão à morte, já amarelando, o perfume fica forte e adocicado, e lembra as perfumadas noites de lua de Recife. Quando finalmente morrem, quando estão mortas, mortas - aí então, como uma flor renascida no berço da terra, é que o perfume que se exala delas nos embriaga. Então mortas, feias, de brancas ficam amarronadas. Mas como jogá-las fora, se mortas, elas têm a alma viva?”
Os primeiros cristãos identificavam as cinco pétalas da rosa silvestre com as cinco chagas de Cristo. Por isso na lagoa os cisnes estão bêbados e mergulham as cabeças naquela água santa.
De repente, diz o poema: “Ai de mim, aonde, se / É inverno agora, achar as / Flores? e aonde / O calor do sol / E a sombra da terra? / Os muros avultam / Mudos e frios; ao vento / Tatalam bandeiras.”
Ou seja, nada daquilo parece existir, nem flores nem calor do sol, só os muros mudos, frios e as bandeiras congeladas. Mas como escreveu Clarice Lispector: “Era assim que eu queria morrer: perfumando de amor. Morta e exalando a alma viva.”
O poema é:

Heras amarelas
E rosas silvestres
Da paisagem sobre a
Lagoa.

Ó cisnes graciosos,
Bêbedos de beijos,
Enfiando a cabeça
Na água santa e sóbria!

Ai de mim, aonde, se
É inverno agora, achar as
Flores? e aonde
O calor do sol
E a sombra da terra?
Os muros avultam
Mudos e frios; ao vento
Tatalam bandeiras.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Receita de soneto


Rogel Samuel

Em "Para fazer um soneto" descreve Carlos Pena Filho como se deve escrever um poema.
Mas a receita é difícil de seguir.
Pois o primeiro passo diz: "Tome um pouco de azul, se a tarde é clara". Sorver o azul da tarde, tarefa complicada de realizar à risca. Mas é aí que aparece a "palavra inicial" (dada por Deus). Depois, segure bem esta palavra (divina) com uma "atitude avara", ou seja: a partir daí passe a usar apenas o sol que bate na sua cara! Claro, o poeta é de Recife, terra do sol.
Com esta palavra primeira, com o sol e com um pedaço do quintal o poema se constrói.
Mas se não der certo, há uma solução de emergência.
Em vez da luz clara e azul, passe a trabalhar com o tom cinzento e meio obscuro e vago, com o pó que ainda resta em nossas vidas, com os resíduos da memória, a combustão, a borralha de certas substâncias da nossa memória.
Ali está o aniquilamento da nossa infância, o luto da lembrança, a destruição, a humilhação, a dor cinza dessa coisa vaga que são as lembranças da infância.
Não, não se apresse. O curso do rio da voz vai levá-lo ao cerne do poema, àquela escuridão onde se tece a certeza.
Aí sim. Aí o poema começa. Eis:

“Tome um pouco de azul, se a tarde é clara
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.”

O Amazonas é um rio sem história



Rogel Samuel


“O Amazonas é um rio sem história”, disse Raimundo Morais. Mas em Pebas, 186 milhas acima de Tabatinga, James Orton descobriu uma fileira de conchas marinhas em 1867 e elaborou a “teoria do período glacial”, dizendo que a Amazônia tinha sido mar.
Talvez agora, com o desgelo dos pólos, volte a ser. Já se disse que um dia o sertão vai virar mar. Agora o que se diz é que a Amazônia se transforme num deserto, vire sertão, pois parte dela perdeu a capacidade de se defender do fogo, com pequenas queimadas que podem transformar-se em incêndios gigantescos. Isso foi visto em 1997 por Daniel Nepstad, do Woods Hole Research Center, de Massachusetts, depois de uma pesquisa de sete anos.
Para comprovar esta tese catastrofista, em 96 alguns pesquisadores cavaram poços com dez metros de profundidade em cinco áreas diferentes, nas partes devastadas da floresta amazônica. Anos atrás, ao realizar o mesmo exame, haviam encontrado água. Depois não acharam mais nada”.
Eles borrifaram querosene em várias áreas da floresta e acenderam fósforos: os incêndios foram imediatos. Se as árvores ainda contassem com depósitos de água no subsolo, isso não teria acontecido.
Antes a floresta era bem mais úmida, pois as árvores sugam a água do subsolo através de suas raízes e bombeiam vapor através das folhas. É isso que satura a atmosfera e deflagra as chuvas - disse Nepstad.
As reservas subterrâneas de água estariam secando?
A questão amazônica é de extrema complexidade. Será que a queda da Ministra Marina revela que é impossível conciliar progresso e defesa do meio ambiente?

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O MARIDO DAS VIÚVAS



Rogel Samuel


Couto de Magalhães escreveu que certa tribo da Amazônia mantinha uma estranha tradição, a de escolher um índio para ser o "marido das viúvas". O índio devia possuir certas qualidades como virilidade e força para dar conta da sua tarefa social, e tinha de ser era jovem, bem apessoado, etc. O escolhido não trabalhava e era tratado com toda deferência e cuidado pelo seu harém e respeitado pela tribo.
Quem relata e cita é Raymundo Moraes, um homem sério, não ia inventar. Era introvertido, andava por Manaus sem falar com quase ninguém. Vivia para seus livros.
Couto de Magalhães assim escreveu: “Entre os quatro mil arcos guerreiros das oitenta aldeias de chambioás, carijós, curujaús e pavões, que havia em cada uma dessas malocas um indivíduo robusto, bem apessoado, jovem, que não caçava, não pescava, não remava, não pelejava, não trabalhava, enfim.
Isso levou-o a indagar de um dos chefes, o motivo de tão alto favor no meio dum povo laborioso e enérgico, em cujo seio floresciam as roças, abundavam a pescarias, constatavam-se as lutas com o inimigo. O tuxaua respondeu-lhe, então, que esse indivíduo era apenas e unicamente o marido das viúvas daquela tribo. Não tinha outro mister. E que a paz fruída pela família selvagem desse núcleo, provinha exclusivamente daquele companheiro, alçado ao cargo por uma lei imemorial, instituída entre eles. Nessas tabas, aparentemente ermas de qualquer regimento disciplinador, de qualquer estatuto social, a moralidade se mantinha rígida; e não é só isso, todos gozavam de profunda tranqüilidade. Os zelos, os mexericos, as intrigas, os ciúmes, que as viúvas poderiam, com ou sem motivos, despertar nas casadas, não existiam ali. (Morais, Raimundo. “O país das pedras verdes”. Manaus, Imprensa pública, sd, p.289-299).
Eu o cito da Internet, já que não encontrei meu exemplar.
Morais nasceu em Belém, em 1872, e faleceu em 1941. Já aos 13 anos "prático", ou piloto, no Rio Madeira, junto com seu pai. Autodidata, estudava a bordo, nas horas vagas. Vítima de perseguição política, transferiu-se para o Amazonas. Publicou 15 livros e foi o autor do primeiro "best-seller" da Amazônia, "Na planície amazônica" (Prêmio da Academia Brasileira de Letras), do qual saíram várias edições e é lido até hoje. Eu tive a primeira edição.
Como era “adversário” de Péricles Moraes, nunca entrou para a Academia Amazonense de Letras. Em compensação ostentava título de organismo internacional - a "Societé des americanistes de Paris".
Dizem que o sucesso de "Na planície amazônica" começou quando ele conseguiu fazer chegar às mãos de Getúlio Vargas um exemplar. Getúlio leu, gostou e divulgou.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

LOS ANGELES

Rogel Samuel

Minha amiga Ira tem insistido a visitá-la outra vez em LA. Ela para mim ainda assina "Baby", como éramos quando crianças. Seu convite é tentador, pois gosto muito dela. E amo LA.
Quando lá estive por algumas semanas fui a Malibu, Pasadena, Hollywood, Long Beach, etc. Fiz compras, mergulhei naquela sociedade de consumo barato: livros usados, roupas recicladas, CDs e cartazes. Andar por aquelas calçadas é o melhor programa de LA. Muito verde, muita gente descontraída, bonita. Sim, mas é possível viver em Los Angeles desde que você tenha um carro. Poucos lugares dependem tanto de automóvel. Minha amiga morava muito bem, naquela época. Beverly Hills ficava na esquina. Na sua sala, uma enorme TV exibia as novelas da Globo, da Band. A maior novela era o 11 de setembro, pois estávamos ainda em 2001. Ela vivia numa casa confortável, ampla sala, dois quartos, cozinha e até um pequeno quintal. E um músico brasileiro um pouco nervoso, ciumento, seu namorado na época, no carro de quem rodamos as infindáveis estradas.
Em LA muita coisa para ver, desfrutar, sentir. Apesar de ser uma cidade grande, não é opressiva. Impressionei-me com os museus, jardins, praias. As pessoas em LA tendem ao cinematográfico. É possível ver garota de programa dirigindo Mercedes conversível.

terça-feira, 17 de junho de 2008

A SIMETRIA DA VIDA HUMANA

A SIMETRIA DA VIDA HUMANA

Luís Serrano


O último livro de Maria Azenha,


"A Chuva nos Espelhos", veio a público, já este ano, através da editora Alma Azul e vem complementado com um prefácio de Henrique Dória.

A inclusão no título da palavra "espelhos" alerta-nos imediatamente para a simetria que é toda a vida humana, reflexão no sentido óptico, metáfora do "outro" que reflectimos e nos reflecte. Apesar da complexidade da vida somos confrontados com uma tendência para a expressão dessa complexidade num sistema de base 2, a base utilizada pelos computadores: vida/morte, amor/ódio, eu/tu, bonito/feio, real/virtual, etc, etc., ou seja o que o espelho mostra e o que o espelho esconde.
Há uma pergunta que me parece plena de significado no poema "Um biombo de açucenas para os espelhos" e que é esta (p.23) "porque nascemos entre mil espelhos?" Nem M. Azenha tem resposta nem eu, mas porventura, estes mil espelhos repetem à saciedade uma imagem que é a nossa e que nos repetimos nos outros. Ou seja, qualquer outro é sempre um "alter-ego" daquele que empresta a sua realidade. Ou ainda, os mil espelhos funcionam como "pontos de vista" que correspondem aos vários narradores do romance polifónico.
Eu diria que há nesta obra dois objectivos principais. O primeiro aparece-nos logo no 1º poema (p.7) e é, de algum modo explicitado nos dois últimos versos

"transportar o sonho de um lado para o outro
abrir com toda a força um buraco nos espelhos"

Abrir um buraco nos espelhos para quê? Para saber o que está por trás deles. Será Deus? Que demiurgo manipula as marionetas que, se calhar, nós somos? Em qualquer dos casos, abrir um buraco nos espelhos corresponde ainda a um desejo de conhecimento.
O segundo objectivo parece estar contido no último poema, "explicação dos espelhos" (p. 43), logo no 1º verso, "e multipliquem os espelhos que cantam" pois quanto maior for o seu número maior será o número daqueles que constituirão outros tantos alter-ego da autora.
Ambos os projectos se integram em "um projecto de água" (p.7) que se abre em "lugares novos espantados" (p.7). A água assume, como se sabe, carácter matricial e é um símbolo de pureza. Não é por acaso que esta palavra é das mais frequentes na obra, quer sob esta forma, quer escondida em "mar" e em "chuva".
A linguagem de Maria Azenha é uma linguagem simples com muitas pausas deixando, pois, que o silêncio adquira uma grande importância nesta poesia. Sem pausas não há música e é aqui que eu acho que Maria Azenha devia investir mais em próximo livro.
Algumas imagens são tão belas que vale a pena citá-las. Por exemplo: "é inverno frio // neva uma rosa" (p.15).
No poema da p. 16 há três versos que nos fazem lembrar uma frase célebre de Picasso: "eu não procuro, eu encontro". Os três versos são estes:

"todos os poemas que escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao ofício das trevas
de os revelar em pedaços de argila"

Isto é, ao poeta cabe desvelar a realidade sem qualquer preocupação de explicar. Que há, de facto, uma preocupação de enfatizar a imagem em detrimento do som (visão contra audição) pode deduzir-se, por exemplo da associação de "espelhos" com "olhos", como se pode ver no poema da p.21: "os teus olhos / são ainda / mil / espelhos/.
Trata-se de uma poesia cujo lirismo, ora nos empurra para a memória da infância (há alusões discretas a esse paraíso perdido), ora acorda em nós o tom melancólico mais próprio da maturidade.
Permita-se-me que, a concluir transcreva o poema "sobre a metamorfose das casas" (p.33), seguramente um dos mais belos deste livro:







abrem portadas em Março
ao primeiro calor das árvores.
umas
em flor
outras rendilhadas de andorinhas

derramam
nos
passeios

algumas pétalas de linho.

aves de silêncio e água limpa

segunda-feira, 16 de junho de 2008

O RAPTO DAS MENINAS


O RAPTO DAS MENINAS

Rogel Samuel

Recentemente duas adolescentes paulistas saíram de casa e ganharam a estrada em longa viagem de carona pelo Sul. Foram capturadas.
Devem ter-se divertido muito!
Infelizmente hoje o mundo está violento e perigoso. Não permite que os jovens agora façam
suas aventuras.
Na década de 60 era diferente. Meu primo e amigo B. - ainda menor de idade - saiu de casa e viveu mais de um ano em casa de desconhecidos em São Paulo. Ninguém sabia dele.
Meu amigo X (hoje pai de três filhos homens) fez uma maravilhosa viagem do Rio a Belém e
de lá desceu o litoral do Nordeste de volta, parando de cidade em cidade. Meses!
No Rio havia um Mosteiro Budista em Santa Teresa capaz de abrigar qualquer mochileiro desconhecido que chegasse. De qualquer nacionalidade. Dizem que lá esteve até o Raul Seixas. Eu mesmo morei lá. O mosteiro ainda está no mesmo lugar. Mas já não pode abrigar ninguém.
Com 18 anos de idade saí de Manaus (com apoio dos pais) e vim estudar no Rio. Nunca mais
voltei. Passei necessidades e aflições, morei em república de estudante, almoçava no Calabouço (palco de episódios políticos memoráveis). Mas foi a minha grande aventura.
A década de 60 era uma maravilha! Acampei em praias desertas durante dias! Acampei na Ilha Grande em plena ditadura, quando ainda havia o presídio. Um companheiro era militar conseguiu nossa permissão. Lá vi “Madame Satã”, já velho.
E acampei no meio de floresta. Fiz caminhadas, às vezes sozinho. Subi montanhas. Até o Pão de Açúcar pela parte mais fácil. Havia praias desertas: o ambiente daquele filme "A praia" estava ao alcance de qualquer jovem nos arredores do Rio de Janeiro.
Hoje só tenho saudades. Também falta-me energia.
Só na imaginação.

O RIO É O CAMPEÃO (DE HOMICÍDIOS)


Rogel Samuel


Há 30 anos atrás se publicou matéria dizendo que o Rio de Janeiro tinha 100 mil bandidos “fichados”. - “É um exército, disse-me uma amiga”. Agora sai nota do IBGE dizendo que o Rio tem número de homicídios maior que a média nacional.
O IBGE diz que a região Sudeste apresentou em 2004 a maior taxa de mortes por homicídios do país, com 32,3 mortes por 100 mil habitantes, mais elevada que a média brasileira (26,9 por 100 mil).
“O trabalho busca revelar em que ponto o Brasil está e para onde sua trajetória aponta no caminho rumo à sustentabilidade ambiental e da qualidade de vida dos brasileiros. O Rio de Janeiro se destaca como o estado com maior índices de homicídios do país. Vêm em seguida neste ranking de mortes os estados de Pernambuco e Espírito Santo”.
O importante seria pensar na causa, ou causas.
Em matéria de planejamento urbano o Brasil tem sido nulo. As grandes cidades cresceram desordenadamente, e transformaram-se em favelas.
Lembro-me do caso de uma gráfica em Frankfurt no ano que estive lá pela primeira vez que precisava comprar uma impressora que não cabia na sala. Pediu licença da Prefeitura para aumentar a sala. A prefeitura disse “não”. A solução foi construir um espaço subterrâneo.

sábado, 14 de junho de 2008

O DNA do passado

O DNA do passado

Rogel Samuel

Augusto dos Anjos escreveu um soneto chamado “Debaixo do Tamarindo”que aqui transcrevo:
“No tempo de meu Pai, sob estes galhos, / Como uma vela fúnebre de cera, / Chorei bilhões de vezes com a canseira / De inexorabilíssimos trabalhos! / Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos, / Guarda, como uma caixa derradeira, / O passado da Flora Brasileira / E a paleontologia dos Carvalhos! / Quando pararem todos os relógios / De minha vida e a voz dos necrológios / Gritar nos noticiários que eu morri, Voltando à pátria da homogeneidade, / Abraçada com a própria Eternidade / A minha sombra há de ficar aqui!”
As pessoas sempre se esquecem de que o poeta era muito novo quando escreveu. Morreu com 29 anos! E o último verso: “a minha sombra há de ficar aqui!” marca que não será senão uma sombra “abraçada com a própria Eternidade” daquela “pátria da homogeneidade” de que ele fala.
A noção de “Eternidade” reside não só na árvore (genealógica?), mas na sombra da árvore. É um DNA do passado que ele vê ali naquela relíquia da flora brasileira.
Outro dia, minha amiga C. de São Paulo mandou-me por email um texto da escritura budista tradicional que diz, na minha tradução:
“O que nasce vai morrer, O que se reuniu será dispersado, O que foi acumulado se gastará, O que foi construído se destruirá, E o que é elevado será rebaixado.”
Eu já tinha lido isto em outro lugar. Parece que pertence ao “Dhamapada” na versão chinesa. Trata da não permanência de todas as coisas. É uma temática também recorrente no classicismo. Onde estão os amigos de infância? Eda adolescência, quando havia uma turma animada e agressiva? Onde estão? Os amigos de faculdade se separaram. Até os casais se separam. Novas reuniões se fazem, sim, é certo. Mas onde está aquilo que faz com que tudo passe, tudo morra, tudo se gaste e se destrua? Está no tempo? Que é o tempo?
Hannah Arendt certa vez disse que depois da destruição do império romano, nada pode ser considerado eteno.
É por isso que o Poeta escreveu que sob aquela sombra esteve “com a canseira De inexorabilíssimos trabalhos!”
A Eternidade cansa!

sexta-feira, 13 de junho de 2008

ANIVERSÁRIO DE PESSOA


ANIVERSÁRIO DE PESSOA

Rogel Samuel

Ontem comemorei os 120 anos de nascimento de Fernando Pessoa. No dia 13 de junho de 1888 ele nascia. Portugal devia comemorar esta data como sua data maior, o dia da fala portuguesa, do discurso português.
O prestígio de Pessoa no mundo é incomparável. Todos os que de alguma coisa sabem de poesia o consideram como no cimo da montanha da glória.
Em vida o poeta era quase um desconhecido para a nação portuguesa. Os jornais não se referiam a ele, o ignoraram por completo. O maior jornal de sua época nunca lhe deu uma linha, exceto no caso do desaparecimento de um mágico seu amigo. Ou seja, a única vez que o Poeta apareceu no jornal foi na página policial.
Mas ele era esquivo. Contam que Cecília Meireles tentou encontrar-se com ele e ele faltou ao encontro. Mandou-lhe um livro e um bilhete dizendo que "consultara os astros e, segundo seu horóscopo, “os dois não eram para se encontrar”. Realmente, não se encontraram, nem houve mais muita oportunidade para isso, já que no ano seguinte Fernando Pessoa faleceu".
Na realidade, Pessoa como que se suicidou. Dizem que ele bebia muito, escondido, em seu quarto. E que pagava um menino para comprar bebida para ele e deixar no peitoril da janela. Parece que ele tivera cirrose hepática e continuou bebendo, solitariamente.
Pessoa morreu de solidão. Solteiro, prova que um gênio não conhece um par. Ele estava além da condição ordinária do ser humano. Sua mente pairava no mar do universo de sua imensidão, e seu coração era “um pórtico partido / Dando excessivamente sobre o mar.”

quinta-feira, 12 de junho de 2008

A luz de fogo do primeiro lamento


A luz de fogo do primeiro lamento

Rogel Samuel

Eu me lembro nesses dias para os namorados que Casimiro de Abreu escreveu os mais belos e ingênuos versos sobre o amor. A sua lira adolescente, cantante, musical, na pureza de seu coração infante, de jovem que cresceu no campo, é algo raro na nossa literatura romântica. Alcançou níveis nunca antes realizados nem depois superados. Casimiro é o grande romântico de nossa terra. Seu verso é perfeito e clássico.
Mas somente os amantes mais jovens podem entendê-lo na sua intimidade, na sua musicalidade lírica.
Casimiro de Abreu morreu jovem e se tornou imortal com poucos poemas. Como jovem brincou de ser a sua genialidade.

Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! Bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
" - Meu Deus! Que gelo, que frieza aquela!"

O amado teme perder-se na matéria de fogo da amada, na sua luz de atração, no brilho do seu amor. E os dois se amam e se atraem e temem como duas estrelas naquela noite de paixão forte.

Outro poema tem uma epígrafe de Lamartine, que diz “Mon coeur est plein — je veux pleurer! “, ou seja: “Meu coração é pleno – quero chorar!” que se encontra no final do poema “Le premier regret”, das “Harmonies poétiques et religieuses” de Lamartine:

Remontez, remontez à ces heures passées !
Vos tristes souvenirs m'aident à soupirer !
Allez où va mon âme ! Allez, ô mes pensées,
Mon coeur est plein, je veux pleurer !

Enquanto houver apaixonados jovens haverá leitores de Lamartine e de Casimiro de Abreu: Toda namorada, todo namorado, mesmo psicologicamente, internamente, se presta representar o sentimento da estrofe final de “Le premier reget”, de Lamartine, que livremente traduzo assim:

Volte, volte àquelas horas passadas
Suas tristes lembranças ajudam-me a sofrer!
Vá aonde vai minha alma! Ó meus pesares!
Meu coração é pleno, quero chorar!

O poema é longo e um dia ainda eu volto a este “Primeiro lamento” de Lamartine, possivelmente escrito em Sorente, na Itália, num hotel que ainda hoje lá existe, em cima de um penhasco, e que hospedou também Goethe, Byron, Scott, Shelley, Musset, Keats, Leopardi e Ibsen.
O hotel pode ser “visitado” on line em para uma lua de mel da imaginação amante:
http://www.hros.net/hotel/it/imperialhoteltramontano.pt.html

CASIMIRO DE ABREU


Amor e Medo


Quando eu te vejo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
- "Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!"
Como te enganas! meu amor, é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela - eu moço; tens amor, eu - medo...
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores
A luz da aurora me enternece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes,
Eu me estremece de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea - ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia:
Diz: - que seria da plantinha humilde,
Que à sombra dela tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho
E a pobre nunca reviver pudera.
Chovesse embora paternal orvalho!
Ai! se te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas! ...
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos - palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: - que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
Tu te queimaras, a pisar descalça,
Criança louca - sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos pauis da terra.
Depois... desperta no febril delírio,
- Olhos pisados - como um vão lamento,
Tu perguntaras: que é da minha coroa?...
Eu te diria: desfolhou-a o vento!...
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito!
És bela - eu moço; tens amor, eu - medo!...

O MORRO DO ADEUS

O morro do Adeus

Rogel Samuel

Esta é a mais bela cidade. Hoje o sol abriu, o céu está limpo, azul. As montanhas resplandecem, no horizonte, o mar mergulha em sua maravilha. Este é o Rio de Janeiro. O Rio que amo. Não sei morar em outro lugar. Sento-me ao sol. Sol fraco, quase inverno. Sol bom. Leio jornais, as operações policiais no Morro do Adeus. Como alguém pôde dar um nome desse a um lugar? Por isso, o azar. Hoje 120 policiais subiram o morro. Do Adeus. Que fica não muito longe da Igreja da Penha. Os fiéis da Igreja devem ter ouvido o tiroteio. Os santos no altar devem ter estremecido.
Sim, é a guerra, como disse o maior escritor de língua portuguesa, o Padre Vieira: “É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta”.
No Morro do adeus, “é a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras”.
“É a guerra – como a do Morro do Adeus - aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos templos e nos sacrários não está seguro”.
Isto está dito pelo Padre Vieira, no “Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia”.
No Morro do Adeus há uma guerra.
Há muitos anos. A culpa é do nome: do Adeus.
Não quero morar no Morro do Adeus, da Partida.
Mas no da Chegada, da Vida.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

ANTOLOGIA DE LITERATURA PORTUGUESA

D. Dinis

Ai flores, ai flores do verde pinho
se sabedes novas do meu amigo,
ai deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquele que mentiu do que pôs comigo,
ai deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,
aquele que mentiu do que me há jurado
ai deus, e u é?


CANTIGAS DE AMIGO

Ondas do mar de Vigo,
se vistes meu amigo!
E ai Deus, se verrá cedo!


Ondas do mar levado,
se vistes meu amado!
E ai Deus, se verrá cedo!


Se vistes meu amigo,
o por que eu sospiro!
E ai Deus, se verrá cedo!


Se vistes meu amado,
por que hei gran cuidado!
E ai Deus, se verrá cedo!


Martin Codax, CV 884, CBN 1227


Pois nossas madres van a San Simon
de Val de Prados candeas queimar,
nós, as meninhas, punhemos de andar
con nossas madres, e elas enton
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.


Nossos amigos todos lá irán
por nos veer, e andaremos nós
bailando ante eles, fremosas en cós,
e nossas madres, pois que alá van,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.


Nossos amigos irán por cousir
como bailamos, e podem veer
bailar moças de bon parecer,
e nossas madres pois lá queren ir,
queimen candeas por nós e por si
e nós, meninhas, bailaremos i.


Pero de Viviãez, CV 336, CBN 698

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CANTIGAS DE AMOR

Quer'eu em maneira de proençal
fazer agora un cantar d'amor,
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que todas las do mundo val.


Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est'é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh'outra foss'igual.


Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit', e por esto non sei oj'eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al.


El-Rei D. Dinis, CV 123, CBN 485


Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m'eu por mha senhor vejo levar.


Pero que troban e saben loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor
que os que troban quand'a frol sazon
á, e non ante, se Deus mi perdon,
non an tal coita qual eu ei sen par.


Ca os que troban e que s'alegrar
van eno tempo que ten a color
a frol consigu', e, tanto que se for
aquel tempo, logu'en trobar razon
non an, non viven [en] qual perdiçon
oj'eu vivo, que pois m'á-de matar.


El-Rei D. Dinis, CV 127, CBN 489

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CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MALDIZER

Foi um dia Lopo jograr
a casa duü infançon cantar,
e mandou-lhe ele por don dar
três couces na garganta,
e foi-lhe escasso, a meu cuidar,
segundo como el canta


Escasso foi o infançon
en seus couces partir' enton,
ca non deu a Lopo enton
mais de três na garganta,
e mais merece o jograron,
segundo como el canta.


Martin Soarez, CV 974

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Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louv'en [o] meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
en que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar:
dona fea, velha e sandia!


Dona fea, se Deus me perdon,
pois avedes [a] tan gran coraçon
que vos eu loe, en esta razon
vos quero já loar toda via;
e vedes qual será a loaçon:
dona fea, velha e sandia!


Dona fea, nunca vos eu loei
en meu trobar, pero muito trobei;
mais ora já un bon cantar farei,
en que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia!


Joan Garcia de Guilhade, CV 1097, CBN 1486

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Roi Queimado morreu con amor
en seus cantares, par Sancta Maria,
por Da dona que gran ben queria:
e, por se meter por mais trobador,
porque lhe ela non quis ben fazer,
feze-s'el en seus cantares morrer,
mais resurgiu depois ao tercer dia!


Esto fez el por üa sa senhor
que quer gran ben, e mais vos en diria:
por que cuida que faz i maestria,
enos cantares que faz, á sabor
de morrer i e des i d'ar viver;
esto faz el que x'o pode fazer,
mais outr'omem per ren' nono faria.


E non á já de sa morte pavor,
senon sa morte mais la temeria,
mais sabe ben, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for,
e faz-[s'] en seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria.


E, se mi Deus a mim desse poder
qual oj'el á, pois morrer, de viver,
já mais morte nunca temeria.


Pero Garcia Burgalês, CV 988, CBN 1380


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João Zorro

Em Lixboa sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar,
ay mia senhor velida!

Em Lisboa sobre lo lez
barcas novas mandei fazer,
ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar
e no mar as mandei deitar,
ay mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter,
ay mia senhor velida!




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CRONISTAS

Fernão Lopes
(1380-1460)


Porque escrevendo o homem do que não é certo, ou contará mais curto do que foi, ou falará mais largo do que deve; mas mentira em este volume, é muito afastada da nossa vontade. Ó! Com quanto cuidado e diligência vimos grandes volumes de livros, de desvairadas linguagens e terras; e isso mesmo públicas escrituras de muitos cartórios e outros lugares, nas quais depois de longas vigílias e grandes trabalhos, mais certidom haver não podemos da conteúda em esta obra.

Crónica de D. João I, Prólogo



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António Ferreira (1528-1569)

TRAGÉDIA CASTRO

(extractos)

ACTO IV

INÊS E O REI

CASTRO:
Meu Senhor,
Esta he a mãy de teus netos. Estes são
Filhos daquelle filho, que tanto amas.
Esta he aquella coitada molher fraca,
Contra quem vens armado de crueza.
Aqui me tens. Bastava teu mandado
Pera eu segura, e livre t'esperar,
Em ti, e em minh'innocencia confiada.
Escusarás, Senhor, todo este estrondo
D'armas, e Cavaleiros; que não foge.
Nem se teme a innocencia, da justiça.
E quando meus peccados me accusaram.
A ti fora buscar: a ti tomara
Por vida em minha morte: agora vejo
Que tu me vens buscar. Beijo estas mãos
Reaes tam piedosas: pois quiseste
Por ti vir-te informar de minhas culpas.
Conhece-mas, Senhor, como bom Rey,
Como clemente, e justo, e como pay
De teus vassallos todos, a que nunca
Negaste piedade com justiça.
Que vês em mim, Senhor? Que vês em quem
Em tuas mãos se mete tam segura?
Que furia, que ira esta he, com que me buscas?
Mais contra imigos vens, que cruelmente
T'andassem tuas terras destruindo
A ferro, e fogo. Eu tremo, senhor, tremo
De me ver ante ti, como me vejo:
Molher, moça, innocente, serva tua,
Tam só, sem por mim ter quem me defenda.
Que a lingua não s'atreve, o sprito treme
Ante tua presença, porém possam
Estes moços, teus netos, defender-me.
Elles falem por mim, elles sós ouve:
Mas não te falaram, Senhor, com lingua,
Que inda não podem: falam-te co as almas,
Com suas idades tenras, com seu sangue,
Que he teu, faláram: seu desemparo
T'está pedindo vida: não lha negues
Teus netos são, que nunca téqui viste:
E vê-los em tal tempo, que lhes tolhes
A glória, e o prazer, qu'em seus spritos
Lhe está Deos revelando de te verem.

REY:
Tristes foram teus fados, Dona Ines,
Triste ventura a tua.

CASTRO:
Antes ditosa,
Senhor, pois que me vejo ante teus olhos
Em tempo tam estreito: poem-nos hora,
Como nos outros soes, nesta coitada.
Enche-os de piedade com justiça.
Vens-me, senhor, matar? porque me matas?

REY:
Teus pecados te matam: cuida nelles.

(...)

REY:
Ó molher forte!
Venceste-me abrandaste-me. Eu te deixo,
Vive, em quanto Deos quer.

CASTRO:
Rey piadoso,
Vive tu, pois perdoas: moura aquelle,
Que sua dura tenção leva adiante.


PACHECO, REY, COELHO

Oh Senhor, que nos matas! que fraqueza
Essa he indigna de ti? de hum real peito?
Vence-te húa molher, e estranhas tanto
Vencer assi teu filho? que já agora
Terá desculpa honesta: não te esqueças
Da tenção tam fundada, que te trouxe.

REY:
Não pode o meu sprito consentir
Em crueza tamanha.

PACHECO:
Mór crueza
Fazes agora ao Reyno – agora fazes
O que faz a pouca agora em grande fogo.
Agora mais s'acende, arderá mais
O fogo do teu filho. A que vieste?
A pôr em mór perigo teu estado?

(...)

REY:
Não vejo culpa, que mereça pena.

PACHECO:
Inda hoje a viste, quem ta esconde agora?

REY:
Mais quero perdoar, que ser injusto.

COELHO:
Injusto he quem perdoa a pena justa.

REY:
Peque antes ness estremo, que em crueza.

COELHO:
Não se consente o Rey peccar em nada.

REY:
Sou homem.


COELHO:
Porém Rey.


REY:
O Rey perdoa.

PACHECO:
Nem sempre perdoar he piedade.

REY:
Eu vejo húa innocente, mãy de hús filhos
De meu filho, que mato juntamente.

COELHO:
Mas dás vida a teu filho, salvas-lh'alma,
Pacificas teu Reyno: a ti seguras.
Restitues-nos honra, paz, descanso.
Destrues a traydores; cortas quanto
Sobre ti, e teu neto se tecia.
Offensas, senhor, publicas não querem
Perdão, mas rigor grande. Daqui pende
Ou remedio d'hum reyno. ou quéda certa.
Abre os olhos às causas necessarias,
Que te monstramos sempre, e que tu vias.
Cuida no que emprendeste, e no que deixas.
O odio de teu filho contra ti,
Contra nós tal será, como qual fora,
Fazendo-se, o que deixas por fazer.
A ti ficam seus filhos, ama-os, honra-os.
Assi lh'amansarás grã parte da ira.
Senhor, por teu estado te pedimos:
Polo amor do teu povo, com que t'ama,
Polo com que sabemos que nos amas:
Mais estas razões fortes, que essa mágoa
Injusta, que depois chorarás mais,
Perdendo esta occasião, que Deos te mostra.

REY:
Eu não mando, nem vedo. Deos o julgue.
Vós outros o fazei, se vos parece
Justiça, assi matar quem não tem culpa.

COELHO:
Essa licenca basta: a tenção nossa
Nos salvará cos homens, e com Deos.

CHORO:
Em fim venceo a ira, cruel imiga
De todo bom conselho. Ah quanto podem
Palavras, e razões em peito brando!
Eu vejo teu sprito combatido
De mil ondas, ó Rey. Bom he teu zelo:
O conselho leal: cruel a obra.


Para o texto integral, clique aqui


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POEMAS LUSITANOS

António Ferreira (1528-1569)

SONETOS

1

Livro, se luz desejas, mal te enganas.
Quanto melhor será dentro em teu muro
Quieto, e humilde estar, inda que escuro,
Onde ninguém t'impece, a ninguém danas!

Sujeitas sempre ao tempo obras humanas
Coa novidade aprazem; logo em duro
Ódio e desprezo ficam: ama o seguro
Silêncio, fuge o povo, e mãos profanas.

Ah! não te posso ter! deixa ir comprindo
Primeiro tua idade; quem te move
Te defenda do tempo, e de seus danos.

Dirás que a pesar meu fostes fugindo,
Reinando Sebastião, Rei de quatro anos:
Ano cinquenta e sete: eu vinte e nove.


2

Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:

Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um esprito peregrino
Se acendeu em mim o fogo, de que indino
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco üa aima só, pouco üa vida,
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente a alma dos olhos água lança
Pelo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.

3

S'erra minh'alma, em contemplar-vos tanto,
E estes meus olhos tristes, em vos ver,
S'erra meu amor grande, em não querer
Crer que outra cousa há ai de mor espanto,

S'erra meu esprito, em levantar seu canto
Em vós, e em vosso nome só escrever,
S'erra minha vida, em assi viver
Por vós continuamente em dor, e pranto,

S'erra minha esperança, em se enganar
Já tantas vezes, e assi enganada
Tornar-se a seus enganos conhecidos,

S'erra meu bom desejo, em confiar
Que algu'hora serão meus males cridos,
Vós em meus erros só sereis culpada.

4

Quando entoar começo com voz branda
Vosso nome de amor. doce, e suave,
A terra, o mar, vento, água, flor, folha, ave
Ao brando som se alegra, move, e abranda.

Nem nuvem cobre o céu, nem na gente anda
Trabalhoso cuidado, ou peso grave,
Nova cor toma o Sul, ou se erga, ou lave
No claro Tejo, e nova luz nos manda.

Tudo se ri, se alegra, e reverdece.
Todo mundo parece que renova.
Nem há triste planeta, ou dura sorte.

A minh'alma só chora, e se entristece,
Maravilha de Amor cruel, e nova!
O que a todos traz vida, a mim traz morte.

5

Se meu desejo só é sempre ver-vos,
Que causará, senhora, que em vos vendo
Assi me encolho logo, e arrependo,
Que folgaria então poder esquecer-vos?

Se minha glória só é sempre ter-vos
No pensamento meu, porque em querendo
Cuidar em vós, se vai entristecendo?
Nem ousa meu esprito em si deter-vos?

Se por vós só a vida estimo, e quero,
Como por vós a morte só desejo?
Quem achará em tais contrários meio?

Não sei entender o que em mim mesmo vejo.
Mas que tudo é amor, entendo, e creio,
E no que entendo, e creio, nisso espero.


6

(À morte da esposa)

Ó alma pura enquanto cá vivias,
Alma, lá onde vives, já mais pura,
Porque me desprezaste? Quem tão dura
Te tornou ao amor que me devias?

Isto era o que mil vezes prometias,
Em que minha alma estava tão segura?
Que ambos juntos Da hora desta escura
Noute nos subiria aos claros dias?

Como em tão triste cárcer' me deixaste?
Como pude eu sem mi deixar partir-te?
Como vive este corpo sem sua alma?

Ah! que o caminho tu bem mo mostraste,
Porque correste à gloriosa palma!
Triste de quem não mereceu seguir-te!



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Bernardim Ribeiro
MENINA E MOÇA

1. Monólogo da Menina

Menina e moça me levaram de casa de minha mãi para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era ainda piquena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que despois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, cuitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.

Escolhi para meu contentamento (se em tristezas e cuidados há i algum) vir-me viver a este monte onde o lugar e a míngoa da conversação da gente fosse como já pera meu cuidado cumpria, porque grande erro fora, depois de tantos nojos quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que ele não deu a ninguém. Estando eu assi só, tão longe de toda a gente e de mim ainda mais longe, donde não vejo senão serras que se não mudam, de um cabo, nunca, e do outro ágoas do mar que nunca estão que das, onde cuidava eu já que esquecia à desaventura por que ela e depois eu, a todo poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada em que pudesse achar lugar nova mágoa; antes tudo havia muito tempo, como há, que é povoado de tristezas, e com rezão. Mas parece que das desaventuras há mudança para outras desaventuras, que do bem não a havia para outro bem. E foi assi que, por caso estranho, fui levada em parte onde me foram diante meus olhos apresentadas em coisas alheas todas as minhas angústias, e o meu sentido de ouvir não ficou sem sua parte de dor.

Ali vi então, na piedade que houve de outrem, camanha a devera de ter de mim, se não fora demasiadamente mais amiga de minha dor do que parece que foi de mim quem me é a causa dela. Mas tamanha é a razão por que são triste, que nunca me veo mal nenhum que eu já não andasse em busca dele. Daqui me veo a mim parecer que esta mudança em que me eu agora vejo, já a eu então começava a buscar, quando me esta terra, onde me ela aconteceo. aprouve mais que outra nenhüa para vir nela acabar os poucos dias de vida, que eu cuidei me sobejavam. Mas em isto como em as outras cousas também me enganei, que agora já há dous anos que estou aqui, e não sei ainda tão-somente determinar pera quando me aguarda a derradeira hora. Não pode já vir longe.

Isto me pôs em dúvida de começar a escrever as cousas que vi e ouvi. Mas despois, cuidando comigo, disse eu que arrecear de não acabar de escrever o que vi, não era causa e para o deixar de fazer, pois não havia de escrever pera ninguém senão pera mim só, ante quem cousas não acabadas não havia de ser novo. Que quando vi eu prazer acabado ou mal que tivesse fim? Antes me pareceo que este tempo que hei-de estar assi em este ermo, como ao meu mal aprouve, não o podia empregar em cousa que mais de minha vontade fosse. Pois Deus quis, assi minha vontade seja.

Se em algum tempo se achar este livro de pessoas alegres, não o leam. Que, por aventura, parecendo-lhe que seus casos serão mudáveis como os aqui contados, o seu prazer lhes será menos prazer. Isto, onde eu estivesse, me doeria, porque assaz abastava nacer eu pera minhas mágoas, senão ainda para as doutrem. Os tristes o poderão ler, mas aí não os houve mais homens, depois que nas mulheres houve piedade. Nas mulheres, sim, por que sempre nos homens houve desamor. Mas para elas não o faço eu, que, pois que o seu mal é tamanho que se não pode confortar com outro nenhum, é para as mais entristecer. Sem-razão seria querer eu que o lessem elas, mas antes lhes peço muito que fujam dele e de todalas cousas de tristeza. Que ainda com isto poucos serão os dias que hão-de poder ser ledas, porque assi está ordenado pela desventura com que elas nascem. Para üa só pessoa podia ele ser, mas desta não soube eu mais parte, depois que suas desditas e minhas o levaram para longes terras e estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possue a terra sem prazer nenhum.

Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tão longe? Que vós comigo e eu convosco, sós soíamos passar nossos nojos grandes, e tão pequenos para os de despois! A vós contava eu tudo. Como vós vos fostes, tudo se tornou tristeza, nem parece ainda senão que estava espreitando já que vos fôsseis. E porque tudo ainda mais me magoasse tão-somente não me foi deixado em vossa partida o conforto de saber para que parte de terra íeis, que descansaram meus olhos em levarem para lá a vista. Tudo me foi tirado, no meu mal nem remédio nem conforto houve aí. Para morrer asinha, me pudera isto aproveitar, mas para isto não me aproveitou. Inda convosco usou desaventura algum modo de piedade em vos alongar desta terra, pois que pera não sentirdes mágoas não havia remédio, para as não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou falando e não vejo ora eu que leva o vento as minhas palavras, e 'e que me não pode ouvir a quem falo!

Bem sei que não era eu para isto a que me quero ora pôr, porque escrever algüa cousa pede alto repouso, e a mim as minhas mágoas oras me levam para um cabo, oras para outro, e trazem-me assi, que me é forçado tomar as palavras que me elas dão, porque não são tão constrangida servir ao engenho como à minha dor. Destas culpas me acharão muitas neste livrinho, mas da minha ventura foram elas. Ainda que, quem me manda a mim olhar por culpar nem desculpas, que o livro há-de ser do que vai escrito nele! Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem elas, e também por outra parte não me dá nada não o lea ninguém, que eu não o faço senão para um só, ou para nenhum, pois dele, como disse, não sei parte tanto há. Mas se ainda está para me ser em algum tempo outorgado que este pequeno penhor de meus longos sospiros vá ante os seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz.

Neste monte mais alto de todos que eu vim buscar pela soidade deferente dos outros que nele achei, passava eu minha vida como soía, ora em me ir pelos fundos destes vales que o cingem ao derredor, ora em me pôr do mais alto dele a olhar a terra como ia acabar ao mar, e depois o mar como se estendia logo após ela, para se ir acabar onde o ninguém visse. Mas quando vinha a noute, aceita a meus pensamentos, que via as aves buscar os pousos, üas chamarem as outras, parecendo que queria assossegar a terra mesma, então eu triste, com os cuida dos dobrados dos com que amanhecera, me recolhia para minha pobre casa, onde só Deus me é boa testemunha de como as noutes dormia.

Assi passava eu o tempo, quando, üa das passadas, pouco haveria, alevantado-me eu, vi a manhã como se erguia fermosa, estender-se graciosamente por entre os vales e deixar indo os altos. que já o Sol, alevantado até os peitos, vinha tomando posse nos outeiros, como quem se queria senhorear da terra. As doces aves, batendo as asas, andavam buscando üas as outras. Os pastores, tangendo as suas frautas e rodeados dos seus gados, começavam d'assomar já pelas cumiadas. Para todos parecia que vinha aquele dia assi ledo. Os meus cuidados sós, vendo como vinha o seu contrário, ao parecer, poderoso, recolheram-se a mim, pondo-me ante os olhos pera quanto prazer pudera aquele dia vir, se não fora tudo tão mudado, por onde o que fazia alegre todas as cousas, a mim só teve causa de fazer triste. E como os meus cuidados, para o que tinha a ventura já ordenado, me começassem d'entrar pola lembrança de algum tempo que foi, e que nunca fora, ensenhorearam-se assi de mim, que me não podia já sofrer a par da minha casa, e desejava ir-me por lugares sós onde desabafasse em sospirar. E ainda bem não foi alto dia, quando eu (parece que o senti) determinei ir-me pera o pé deste monte que de arvoredos grandes e verdes ervas e deleitosas sombras cheo é, por onde corre um pequeno ribeiro de ágoa de todo ano, que nas noutes caladas o rogido dele faz no mais alto deste monte um saudoso tom que mui tas vezes me tolheo o sono a mim, onde eu vou muitas vezes deixar as minhas lágrimas, onde também muitas infindas as torno a beber.

Começava então de querer cair a calma e no caminho, com a pressa que eu levava por fugir a ela, ou pola desaventura que me levava, três ou quatro vezes caí, mas eu, que depois de triste cuidei que não tinha mais que temer, não olhei nada por aquilo em que parece que Deus me queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando à borda, olhei pera onde via maiores sombras e pareceram-me as que estavam além do rio. Disse eu então entre mim que naquilo se enxergava que era mais desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver, porque não se podia ir além sem se passar a ágoa que corria ali mais mansa e mais alta que noutra parte. Mas eu, que sempre folguei de buscar meu dano, passei além e fui-me assentar de sob a espessa sombra de um verde freixo que para baixo um pouco estava e alguas das ramas estendia por cima da ágoa que ali fazia tamalavez de corrente e, empedida de um penedo que no meo dela estava, se partia para um e outro cabo, murmurando. Eu que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar como nas cousas que não tinham entendimento havia também fazerem-se üas às outras nojo, e estava ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal, que assi aquele penedo estava ali anojando aquela ágoa que queria ir seu caminho, como as minhas desaventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria, que agora já não quero nada. E crecia-me daquilo um pesar, porque a cabo do penedo tomava a ágoa a juntar-se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte, e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, imigo de seu curso natural que, como por força, ali estava.

Não tardou muito que, estando eu assi cuidando, sobre um verde ramo que por cima da ágoa se estendia se veo apousentar um roussinol, e começou tão doce mente cantar que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crecia mais em seus queixumes, cada hora parecia que como cansado queria acabar, senão quando tornava como que começava então. A triste da avezinha que, estando-se assi queixando, não sei como, caío morta sobre a ágoa, e caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela! E pareceo aquilo sinal de pesar àquele arvoredo seu caso tão desestrado. Levava-a após si a ágoa e as folhas após ela. Quisera-a eu tomar, mas por a corrente que ali fazia grande, e por o mato que dali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente se me alongou da vista. Mas o coração me doeu tanto então em ver tão asinha morto quem antes, tão pouco havia, que vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.

Certo que por cousa deste mundo, depois que eu perdi outra cousa, não me pareceo a mim que chorasse assi de vontade. Mas em parte este meu cuidado não foi em vão porque, ainda que por a desaventura daquela avezinha fossem causadas minhas lágrimas, lá ao sair delas foram juntas outras minhas lembranças tristes. Grande pedaço de tempo estive assi, embargados meus olhos antre os cuidados que muito tempo havia que me tinham já então, e inda terão, té quando venha o tempo que algüa pessoa estranha, de dó de mim, com as suas mãos cerre estes meus olhos que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas. Estando assi olhando para donde corria a ágoa, senti bolir o arvoredo. Cuidando que fosse outra cousa, tomou-me medo, mas olhando para lá, vi que vinha üa molher e, pondo nela bem os olhos, vi que era de corpo alto, desposição boa, o rosto de senhora, dona do tempo antigo. Vestida toda de preto, no seu manso andar e seguros meneos do corpo e do rosto e olhar, parecia d'acatamento. Vinha só, na semelhança tão cuidosa, que não apartava os ramos de si, senão quando lhe empediam o caminho ou lhe feriam o rosto. Os seus pés trazia per antre as frescas ervas, e parte do vestido estendido por elas. E antre uns vagarosos passos que ela dava, de quando em quando colhia um cansado fôlego, como que lhe queria falecer a alma. Sendo junto de mim, que me vio, ajuntando as mãos à maneira de medo de molher, um pouco ficou como que vira cousa desacostumada, e eu que também assi estava, não de medo, que a sua boa sombra logo mo não consentio, mas da novidade daquilo que ainda ali não vira, havendo muito que por meu mal tinha continuado aquele lugar e toda aquela ribeira.


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DIOGO BERNARDES

Diogo Bernardes (1520-1605)

ALGUNS POEMAS


As plantas rindo estão, estão vestidas
De verde variado de mil cores;
Cantam tarde e manhã os seus amores
As aves, que d'Amor andam vencidas.

As neves, já nos montes derretidas,
Regam nos baixos vales novas flores;
Alegram as cantigas dos pastores
As Ninfas pelos bosques escondidas.

O tempo, que nas cousas pode tanto,
A graça, que por ele a terra perde,
Lhe torna com mais graça e fermosura.

Só pera mim nem flor nem erva verde,
Nem água clara tem, nem doce canto,
Que tudo falta a quem falta ventura.




Onde porei meus oihos que não veja
A causa, donde nasce meu tormento?
A que parte irei co pensamento
Que pera descansar parte me seja?

já sei como s'engana quem deseja,
Em vão amor firme contentamento,
De que, nos gostos seus, que são de vento,
Sempre falta seu bem, seu mal sobeja.

Mas inda, sobre claro desengano,
Assim me traz est'alma sogigada,
Que dele está pendendo o meu desejo;

E vou de dia em dia, de ano em ano,
Após um não sei quê, após um nada,
Que, quanto mais me chego, menos vejo.




Meu pátrio Lima, saudoso e brando,
Como não sentirá quem Amor sente,
Que partes deste vale descontente,
Donde também me parte suspirando?

Se tu, que livre vás, vás murmurando,
Que farei eu, cativo, estando ausente?
Onde descansarei de dor presente,
Que tu descansarás no mar entrando?

Se te não queres consolar comigo,
Ou pede ao Céu que nossa dor nos cure,
Ou que trespasse em mim tua tristeza:

Eu só por ambos chore, eu só murmure,
Que d'um fado cruel o curso sigo,
Não tu, que segues tua natureza.




Águas do claro Lima, que corria
Pera mim, noutro tempo, claro e puro,
Que correr vejo agora turvo, escuro,
Quem afogou em vós minh'alegria?

Cuidei que com vos ver descansaria
Do mal do cativeiro, triste e duro;
Mas mais sem gosto aqui, menos seguro
Me vejo, do que me vi em Berberia.

Mudança vejo aqui em arvoredos:
Creceram muitos, muitos acabaram,
Fez seu ofício em tudo a natureza;

Duas cousas, porém, não se mudaram:
Lugar e duro ser destes penedos,
De vossos naturais teima a dureza.




ALHEIO

Que vistes meus olhos
Neste bem, que vistes
Que vos vejo tristes?

VOLTAS

As vossas lembranças
Não vos dão tormentos,
Nem levam os ventos
Vossas esperanças.
Não sei que mudanças
Vós de novo vistes,
Que vos vejo tristes.
Que dor ou que medos
Causam vossa dor?
Lágrimas d'amor
Descobrem segredos.
Eu vos via ledos;
Vós não sei que vistes,
Que vos vejo tristes.

Escapei de cem mil Mouros,
e nesta serra Somata
Üa só Moura me mata.

VOLTAS

Vede quem dará certeza
A sucessos da ventura!
Pois faz em mim a brandura
O que não fez a crueza:
É tal sua gentileza
Que, nesta serra Somata,
Ela é a que só mata.

Quem haverá que não moura
Por esta Moura que mouro,
Se nos seus cabelos d'ouro
O Sol se prende e se doura?
É rosada, alva, e loura.
Não sei se lhe chame ingrata,
Pois um seu cativo mata.

Certo que, se livre fora
Do cativeiro em que vivo,
A me querer por cativo,
Não quisera outra senhora.
Com me matar me namora,
E quando melhor me trata,
Então de todo me mata.


CONTINUAÇÃO

ANTOLOGIA DE LITERATURA PORTUGUESA, 2

Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559)
HISTÓRIA DO DESCOBRIMENTO E CONQUISTA DA ÍNDIA PELOS PORTUGUESES

(extracto)



Concertadas as naus de todo o necessário, Vasco da Gama tornou a seu descobrimento e partiu-se um sábado, vinte e quatro de Fevereiro, e aquele dia foi na volta do mar, e assi a noute seguinte, por se afastar da costa, que toda era mui graciosa. E uma quinta-feira à tarde, que foi o primeiro de Março, viu quatro ilhas, duas perto da costa e duas ao mar, e por não ir de noute dar nelas se fez na volta do mar, porque determinava de ir por entre elas, como foi, mandando diante Nicolau Coelho, por ser o seu navio mais pequeno que os outros. E, indo ele à sexta-feira por dentro de uma angra que se fazia entre a terra e hüa das ilhas, errou o canal e achou baixo, o que foi causa de virar atrás para os outros navios que iam após ele; e, em virando, viu que saíam daquela ilha sete ou oito barcos à vela.

A gente que vinha dentro eram homem baços e de bons corpos, vestidos de panos de algodão listrados e de muitas cores, uns cingidos até o giolho e outros sobraçados como capas, e nas cabeças fotas com vivos de seda lavrados de fio de ouro, e traziam terçados mouriscos e adagas. Estes homens, como chegaram aos navios, entraram dentro mui seguramente, como que conheceram os portugueses, e assi conversaram logo com es, e falavam aravia, no que se conheceu que eram mouros. Vasco da Gama lhe mandou dar de comer, e eles comeram e beberam; e, perguntados por um Fernão Martins, que sabia aravia, que terra era aquela, disseram que era hüa ilha do senhorio dum grande rei que estava adiante, e chamava-se a ilha Moçambique, povoada de mercadores que tratavam com mouros da Índia, que e trazia m prata, cravo, pimenta, gengibre, anéis de prata, com muitas pérolas, aljôfar, e rubis, e que doutra terra, que ficava atrás, lhe traziam ouro; e que, se ele quisesse entrar pera dentro do porto, que eles o meteriam, e lá veria mais largamente o que diziam. Ouvido isto por Vasco da Gama, houve conselho com os outros capitães que seria bom que entrassem, assi pera verem se era verdade o que aqueles mouros diziam, como pera tomarem pilotos que os guiassem dali por diante, pois os não tinham, e que Nicolau Coelho fosse sondar a barra: e assi se fez.

A povoação é de casas palhaças, povoada de mouros, que tratavam dali pera Sofala em grandes naus e sem coberta nem pregadura, cosidas com cairo, e as velas de esteiras de palma, e algüas traziam agulhas genoíscas, porque se regiam por quadrantes e cartas de marear. Com estes mouros vinham tratar mouros da Índia e do Mar Roxo, por amor do ouro que ali achavam. E, quando eles viram os nossos, cuidaram que eram turcos por a notícia que tinha de Turquia pelos mouros do Mar Roxo. E aqueles que foram primeiro à nossa frota o foram dizer ao Sultão, que assim chamavam ao governador do lugar que o governava por el-rei de Quíloa, de cujo senhorio era esta ilha.



Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, Livro I, Cap. V.



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Fernão Mendes Pinto (1510?-1583)

PEREGRINAÇÃO



CAP. I – Do que passei em minha mocidade neste reino até que me embarquei para a Índia



Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e melhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da ventura que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas as me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar de todos os males passados, quanta tenho de lhe dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escrevê-la para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que Passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Ìndia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos comfins da Ásia, a que os escritores chins, siameses, guéus, léquios, chamam em suas geografias a pestana do mundo, como ao adiante espero tratar muito particular e muito amplamente. Daqui por um lado tomem os homens motivo de não desanimarem com os trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino, e por outro me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar de todos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram, e dela as forças e o ânimo para os poder passar e escapar deles com vida. E tomando para princípio desta minha peregrinação o que passei neste Reino, digo que depois de ter vivido até à idade de dez ou doze anos na miséria e estreiteza da pobre casa de meu pai na vila de Montemor-o-Velho, um tio meu, parece que desejoso de me encaminhar para melhor fortuna, me trouxe para a cidade de Lisboa e me pôs ao serviço de uma senhora de geração assaz nobre e de parentes assaz ilustres, parecendo-lhe que pela valia tanto dela como deles poderia haver efeito o que ele pretendia para mim. Isto era no tempo em que na mesma cidade de Lisboa se quebraram os escudos pela morte de E1-Rei D. Manuel, de gloriosa memória, que foi em dia de Santa Luzia, aos treze dias do mês de Dezembro do ano de 1521, de que eu estou bem lembrado, e de outra coisa mais antiga deste reino me não lembro. A intenção deste meu tio não teve o sucesso que ele imaginava, antes o teve muito diferente, porque havendo ano e meio, pouco mais ou menos, que eu estava ao serviço desta senhora, me sucedeu um caso que me pôs a vida em tanto risco que para a poder salvar me vi forçado a sair naquela mesma hora de casa, fugindo com a maior pressa que pude. E indo eu assim tão desatinado com o grande medo que levava, que não sabia por onde ia, como quem vira a morte diante dos olhos e a cada passo cuidava que a tinha comigo, fui ter ao cais da pedra onde achei uma caravela de Alfama que ia com cavalos e fato de um fidalgo para Setúbal, onde naquele tempo estava E1-Rei D. João III, que santa glória haja com toda a corte, por causa da peste que então havia em muitos lugares do Reino: nesta caravela me embarquei eu, e ela partiu logo. Ao outro dia pela manhã, estando nós em frente de Sesimbra, nos atacou um corsário francês, o qual abalroando connosco, nos lançou dentro quinze ou vinte homens, os quais sem resistência ou reacção dos nossos, se assenhorearam do navio, e depois de o terem despojado de tudo quanto acharam nele, que valia mais de seis mil cruzados, o meteram no fundo; e a dezassete que escapámos com vida, atados de pés e mãos, nos meteram no seu navio com a intenção de nos venderem em Larache, para onde se dizia que iam carregados de armas que para negociar levavam aos mouros. E, trazendo-nos com esta determinação mais treze dias, banqueteados cada hora de muitos açoites, quis a sua boa fortuna que ao cabo deles, ao pôr do Sol, vissem um barco e seguindo-o aquela noite, guiados pela sua esteira, como velhos oficiais práticos naquela arte, a alcançaram antes de ser rendido o quarto da modorra, e dando-lhe três descargas de artilharia a abalroaram muito esforçadamente: e ainda q na defesa tivesse havido da parte dos nossos alguma resistência, isso não bastou para que os inimigos deixassem de entrar nela, com morte de seis portugueses e dez ou doze escravos.

Era este navio uma formosa nau de um mercador de Vila do Conde, que se chamava Silvestre Godinho, que outros mercadores de Lisboa traziam fretada de S. Tomé, com grande carregamento de açúcares e escravaria, a qual os pobres roubados, que lamentavam sua desventura, calculavam que valesse quarenta mil cruzados. Logo que estes corsários se viram com presa tão rica, mudando o propósito que antes traziam, se fizeram a caminho de França e levaram consigo alguns dos nossos para serviço da mareação da nau que tinham tomado. E aos outros mandaram uma noite lançar na praia de Melides, nus e descalços e alguns com muitas chagas dos açoites que tinham levado, os quais desta maneira foram ao outro dia ter a Santiago de Cacém, no qual lugar todos foram muito bem providos do necessário pela gente da terra, e principalmente por uma senhora que aí estava, de nome D. Brites, filha do conde de Vilanova, mulher de Alonso Perez Pantoja, comendador e alcaide-mor da mesma vila.

Depois que os feridos e os doentes foram convalescidos, cada um se foi para onde lhe pareceu que teria o remédio mais certo da vida, e o pobre de mim com outros seis ou sete tão desamparados como eu, fomos ter a Setúbal, onde me caiu em sorte mão de mim um fidalgo do Mestre de Santiago, de nome Francisco de Faria, o qual servi quatro anos, em satisfação dos quais me deu ao mesmo Mestre de Santiago, como seu moço de câmara, a quem servi um ano e meio. Mas porque o que então era costume dar-se nas casas dos príncipes me não bastasse para minha sustentação, determinei embarcar-me para a Índia, ainda que com poucas ilusões, já disposto a toda a ventura, ou má ou boa, que me sucedesse.




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Francisco de Sá de Miranda (1481-1558)

SONETOS

1


O sol é grande: caem coa calma as aves,
Do tempo em tal sazão, que sói ser fria.
Esta água que de alto cai acordar-me-ia,
Do sono não, mas de cuidados graves.


Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
Qual é tal coração que em vós confia?
Passam os tempos, vai dia trás dia,
Incertos muito mais que ao vento as naves.


Eu vira já aqui sombras, vira flores,
Vi tantas águas, vi tanta verdura,
As aves todas cantavam de amores.


Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!


2


Aquela fé tão clara e verdadeira,
A vontade tão limpa e tão sem mágoa,
Tantas vezes provada em viva frágua
De fogo, i apurada, e sempre inteira;


Aquela confiança, de maneira
Que encheu de fogo o peito, os olhos de água,
Por que eu ledo passei por tanta mágoa,
Culpa primeira minha e derradeira,


De que me aproveitou? Não de al por certo
Que dum só nome tão leve e tão vão,
Custoso ao rosto, tão custoso à vida.


Dei de mim que falar ao longe e ao perto;
E já assi se consola a alma perdida,
Se não achar piedade, ache perdão.



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GARCIA DE RESENDE

O Cancioneiro Geral, publicado por Garcia de Resende em 1516,

PRÓLOGO DO CANCIONEIRO GERAL




Muito alto e muito poderoso Príncipe Nosso Senhor

Porque a natural condiçam dos Portugueses é nunca escreverem cousa que façam, endo dinas de grande memória, muitos e mui grandes feitos de guerra; paz e vertudes, de ciência, manhas e gentilezas sam esquecidos. Que, se os escritores se quisessem acupar a verdadeiramente escrever nos feitos de Roma, Tróia e todas outras antigas crónicas e estórias, nam achariam mores façanhas nem mais notáveis feitos que os que dos nossos naturais se podiam escrever, assi dos tempos passados como d'agora: tantos reinos e senhorios, cidades, vilas, castelos, per mar e per terra tantas mil légoas, per força d'armas tomados, sendo tanta a multidão de gente dos contrairos e tam pouca a dos nossos, sostidos com tantos trabalhos, guerras, fomes e cercos, tão longe d'esperança de ser socorridos, senhoreando per força d'armas tanta parte de África, tendo tantas cidades, vilas e fortalezas tomadas e continuamente em guerra sem nunca cessar, e assi Guiné, sendo muitos reis grandes e grandes senhores seus vassalos e trebutários e muita parte de Etiópia, Arábia, Pérsia e Índias, onde tantos reis mouros e gentios e grandes senhores sam per força feitos seus súditos e servidores, pagando-lhe grandes páreas e tributos e muitos destes pelejando por nós, debaixo da bandeira de Cristos com os nossos capitães, contra os seus naturais, conquistando quatro mil légoas por mar que nenhúas armadas do Soldam nem outro nenhum gram rei nem senhor nom ousam navegar com medo das nossas, perdendo seus tratos, rendas e vidas, tornando tantos reinos e senhorios com inumerável gente à fé de Jesu Cristo, recebendo água do santo bautismo, e outras notáveis cousas que se não podem em pouco escrever.

Todos estes feitos e outros muitos doutras sustâncas nam sam devulgados como foram, se gente doutra naçam os fizera. E causa isto serem tam confiados de si, que não querem confessar que nenhuns feitos sam maiores que os que cada um faz e faria, se o nisso metessem. E por esta mesma causa, muito alto e poderoso Príncepe, muitas cousas de folgar e gentilezas sam perdidas, sem haver delas notícia, no qual conto entra a arte de trovar que em todo tempo foi mui estimadada e com ela Nosso Senhor louvado, como nos hinos e cânticos que na Santa Igreja se cantam se verá.

E assi muitos emperadores, reis e pessoas de memória, polos rimances e trovas sabemos suas estórias e nas cortes dos grandes Príncepes é mui necessária na gentileza, amores, justas e momos e também para os que maus trajos e envenções fazem, per trovas sam castigados e lhe dam suas emendas, como no livro ao adiante se verá. E se as que sam perdidas dos nossos passados se puderam haver e dos presentes se escreveram, creo que esses grandes Poetas que per tantas partes sam espalhados não teveram tanta fama como tem.

E porque, Senhor, as outras cousas sam em si tam grandes que por sua grandeza e meu fraco entender nam devo de tocar nelas, nesta que é a somenos, por em algúa parte satisfazer ao desejo que sempre tive de fazer algúa cousa em que Vossa Alteza fosse servido e tomasse desenfadamento, determinei ajuntar algúas obras que pude haver dalguns passados e presentes e ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quais foram e sam, mas para os que mais sabem s'espertarem a folgar d'escrever e trazer à memória os outros grandes feitos, nos quais nam sam dino de meter a mão.




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GIL VICENTE

AUTO DA BARCA DO INFERNO

(extractos)


Barqueiro mano, meus olhos,
prancha a Brísida Vaz.
ANJO: Eu não sei quem te cá traz...
BRI.: Peço-vo-lo de giolhos!
Cuidais que trago piolhos,
anjo de Deos, minha rosa?
Eu sô aquela preciosa
que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas
pera os cónegos da Sé...
Passai-me, por vossa fé,
meu amor, minhas boninas,
olho de perlinhas finas!
E eu som apostolada,
angelada e martelada,
e fiz cousas mui divinas.

(...)

DIA.: E as peitas dos judeus
que a vossa mulher levava?
COR.: Isso eu não o tomava
eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus,
peccavit uxore mea.

DIA.: Et vobis quoque cum ea,
não temuistis Deus.

A largo modo adquiristis
sanguinis laboratorum
ignorantis peccatorum.
Ut quid eos non audistis?
COR.: Vós, arrais, nonne legistis
que o dar quebra os pinedos?
Os direitos estão quedos,
sed aliquid tradidistis...

(...)

JUD.: Porque nom irá o judeu
onde vai Brísida Vaz?
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho, irei eu?
DIA.: E o fidalgo, quem lhe deu...
JUD.: O mando, dizês, do batel?
Corregedor, coronel,
castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,
lodo, chanto, fogo, lenha,
caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda!
Par el Deu, que te sacuda
coa beca nos focinhos!
Fazes burla dos meirinhos?

CAV.: À barca, à barca segura,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais
pola vida transitória,
memória, por Deos, memória
deste temeroso cais!
À barca, à barca, mortais,
barca bem guarnecida,
à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores,
que, despois da sepultura,
neste rio está a ventura
de prazeres ou dolores!
À barca, à barca, senhores,
barca mui nobrecida,
à barca, à barca da vida!

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Gil Vicente

Fala do Lavrador:

Sempre é morto quem do arado
há-de viver.
Nós somos vida das gentes
e morte de nossas vidas;
a tiranos, pacientes,
que a unhas e a dentes
nos tem as almas roídas.
Para que é parouvelar?
Que queira ser pecador
o lavrador;
não tem tempo nem lugar
nem somente d'alimpar
as gotas do seu suor.

Auto da Barca do Purgatório




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João de Barros (1496?-1570?)


DÉCADAS DA ÁSIA



VOLUME I



CAPÍTULO I


Como el-rei dom Manuel, no segundo ano do seu reinado, mandou Vasco da Gama com quatro velas ao descobrimento da Índia.

Falecido el-rei dom João, sem legítimo filho que o sucedesse no reino, foi alevantado por rei (segundo ele deixará o seu testamento) o duque de Beja, dom Manuel, seu primo co-irmão, filho do infante dom Fernando, irmão de el-rei dom Afonso; a quem por legítima sucessão era devida esta real herança, da qual recebeu posse pelo cetro dela, que lhe foi entregue em Alcácer do Sal, a vinte e sete dias de Outubro do ano de nossa redenção de mil quatro centos e noventa e cinco; sendo em idade de vinte e seis anos, quatro meses e vinte e cinco dias (como mui particularmente escrevemos em outra nossa parte intitulada Europa, e ali em sua própria crónica).

E porque, com estes reinos e senhorios, também herdava o prosseguimento de tão alta empresa como seus antecessores tinham tomado, que era o descobrimento do oriente por esse nosso mar oceano, que tanta indústria, tanto trabalho, e despesa, por discurso de setenta e cinco anos tinha custado, quis logo, no primeiro ano de seu reinado, mostrar quanto desejo tinha de acrescentar á coroa deste reino novos títulos sobre o senhorio de Guiné, que, por razão deste descobrimento, el-rei dom Joam, seu primo, tomou, como posse da esperança de outros maiores estados que por esta via estavam por descobrir. Sobre o qual caso, no ano seguinte de noventa e seis, estando em Montemor-o-Novo, teve alguns gerais conselhos: em que houve muitos e diferentes votos, os mais foram que a Índia não se devia descobrir. Por que, além de trazer consigo muitas obrigações por ser estado mui remoto para poder conquistar e conservar, debilitaria tanto as forças do reino que ficaria ele sem as necessárias para sua conservação. Quando mais que sendo descoberta, podia cobrar este reino novos competidores, do qual caso já tinham experiência, no que se moveu entre el-rei dom Joam e el-rei dom Fernando de Castella, sobre o descobrimento das Antilhas, chegando a tanto, que vieram repartir o mundo em duas partes iguais para o poder descobrir e conquistar. E pois desejo de estados não sabidos, movia já esta repartição, não tendo mais ante os olhos que esperança deles e algumas amostras do que se tirava do bárbaro Guiné, que seria vindo a este reino quanto se dizia daquelas partes orientais.

Porém, a estas razões houve outras em contrário, que, por serem conformes ao desejo de el-rei, lhe foram mais aceites. E as principais que o moveram, foram herdar esta obrigação com a herança do reino, e o infante dom Fernando, seu pai ter trabalhado neste descobrimento, quando por seu mandado se descobriram as ilhas de Cabo Verde, e mais por singular afeição que tinha á memória das cousas do infante dom Anrique, seu tio, que fora o autor do novo título do senhorio de Guiné que este reino houve, sendo propriedade mui proveitosa sem custo de armas e outras despesas que têm muito menores estados do que ele era. Dando por razão final, aqueles que punham os inconvenientes a se a Índia descobrir, que Deus, em cujas mãos ele punha este caso, daria os meios que convinham a bem do estado do reino.

Finalmente el-rei assentou de prosseguir neste descobrimento, e depois, estando em Estremoz, declarou a Vasco da Gama, fidalgo de sua casa, por capitão mor das velas que havia de mandar a ele, assim pela confiança que tinha de sua pessoa como por ter acção nesta ida, cá, segundo se dizia, estavam da Gama, seu pai já defunto, estava ordenado para fazer esta viagem em vida de el-rei dom Joam. O qual, depois que Bartolomeu Dias veio do descobrimento do cabo da Boa Esperança, tinha mandado cortar a madeira para os navios desta viagem, por a qual razão el-rei dom Manuel mandou ao mesmo Bartholomeu Dias que tivesse cuidado de os mandar acabar segundo ele sabia que convinha, para sofrer a fúria dos mares daquele grão cabo de Boa Esperança, que na opinião dos mareantes começava criar outra fábula de perigos, como antigamente fora a do cábo Bojador, de que no princípio falamos. E assim, pelo trabalho de Bartholomeu Dias levou ao apercebimento destes navios como para ir acompanhado Vasco da Gama até o por na paragem que lhe era necessária á sua derrota, el-rei lhe deu a capitania de um dos navios que ordinariamente iam á cidade de São Jorge da Mina.

E sendo já no ano de quatrocentos noventa e sete, em que a frota para esta viagem estava de todo prestes, mandou el-rei, estando em Montemor-o-Novo, chamar Vasco da Gama e aos outros capitães que haviam de ir em sua companhia, os quais eram Paulo da Gama, seu irmão, e Nicolau Coelho, ambos pessoas de quem el-rei confiava este cargo. E posto que por algumas vezes lhe tivesse dito sua tenção acerca desta viagem, e disso lhe tinha mandado fazer sua instrução, pela novidade da empresa que levava, quis usar com ele da solenidade que convém a taes casos, fazendo esta fala pública, a ele e aos outros capitães, perante algumas pessoas notáveis que eram presentes, e para isso chamadas:

«Depois que aprouve a Nosso Senhor que eu recebesse o cetro desta real herança de Portugal, mediante a sua graça, assi por aver a benção de meus avós de quem a eu herdei, os quais com gloriosos feitos e victórias que houveram de seus imigos a tem acrescentado por ajuda de tão leais vassalos e cavaleiros como foram aqueles donde vós vindes, como por causa de agalardoar a natural lealdade e amor com que todos me servis, a mais principal cousa que trago na memória, depois do cuidado de vos reger e governa em paz e justiça, é como poderei acrescentar o património deste meu reino, para que mais liberalmente possa distribuir por cada hum o galardão de seus serviços. E considerando eu por muitas vezes qual seria a mais proveitosa e honrada empresa e digna de maior gloria que podia tomar para conseguir esta minha tenção, pois, louvado Deus, destas partes da Europa em as de África a poder de ferro, temos lançado os mouros, e lá tomando os principais lugares dos portos do reino de Fez que é da nossa conquista, achei que nenhuma outra é mais conveniente a este meu reino (como algumas vezes com vosco tenho consultado) que o descobrimento da Índia e daquelas terras orientais. Em as quais partes, peró que sejam mui remotas da igreja Romana, espero na piedade de eos que não somente a fé de nosso Senhor Jesu Cristo seu filho seja por nossa administração publicada e recebida, com que ganharemos galardão antele, fama e louvor acerca dos homens, mas ainda reinos e novos estados com muitas riquezas vendicadas por armas das mãos dos bárbaros, dos quais meus avós com a ajuda, e serviço dos vossos e vosso, tem conquistado este meu reino de Portugal, e acrescentado a coroa dele. Porque, se da costa da Etiópia, que quase de caminho é descoberta, este meu reino tem adquirido novos títulos, novos proveitos e renda, que se pode esperar indo mais adiante com este descobrimento, se não podermos conseguir aquelas orientais riquezas tão celebradas dos antigos escritores, parte das quais por comércio têm feito tamanhas pofencias como são Veneza, Génova, Florença e outras mui grandes comunidades de Itália. Assi que, consideradas todas estas cousas de que temos experiência, e também como era ingratidão a Deus enjeitar o que nos tão favoravelmente oferece, e injuria àqueles príncipes de louvada memória de quem eu herdei este descobrimento, e ofensa a vós outros que nisso fostes, descuidar-me eu dele por muito tempo; mandei armar quatro velas que (como sabeis) em Lisboa estão de todos prestes para servir esta viagem de boa esperança. E tendo eu na memória como Vasco da Gama, que está presente, em todas cousas que lhe de meu serviço foram entregues e encomendadas, deu boa conta de si, eu o tenho escolhido para esta ida como leal vassalo e esforçado cavaleiro, merecedor de tão honrada empresa. A qual espero que lhe Nosso Senhor deixará acabar, e nela a ele e a mim faça tais serviços com que o seu galardão fique por memória nele e naqueles que o ajudarem nos trabalhos desta viagem, porque, com esta confiança, pela experiência que tenho de todos, eu os escolhi por seus ajudadores para em todo o que tocar a meu serviço lhe obedecerem. E eu, Vasco da Gama, volos encomendo, e a eles a vós, e juntamente a todos a paz e concórdia: a qual é tão poderosa que vence e passa todos perigos e trabalhos e os maiores da vida faz leves de sofrer, quanto mais os deste caminho que espero em Deus serem menores que os passados, e que por vós este meu reino consiga o fruto deles.»

Acabando el-rei de propor estas palavras, Vasco da Gama e todas as notáveis pessoas lhe beijaram a mão: assi pela mercê que fazia a ele como ao reino, em mandar a este descobrimento continuado por tantos anos que já era feito herança dele. Tornada a casa ao silêncio que tinha antes deste acto de gratificação, assentou-se Vasco da Gama em giolhos ante el-rei, e foi trazida uma bandeira de seda com uma cruz no meio das da ordem da cavalaria de Cristo, de que el-rei era governador e perpétuo administrador, a qual, estendendo o escrivão da puridade entre os braços em modo de menagem, disse Vasco da Gama em alta voz estas palavras:

«Eu Vaco da Gama, que ora por mandado de vós, mui alto e muito poderoso rei, meu senhor, vou descobrir os mares e terra do oriente da Índia, juro em o sinal desta cruz, em que ponho as mãos que por serviço de Deus e vosso, eu a ponha asteada e não dobrada, ante a vista de mouros, gentios, e de todo género de povo onde eu for, e que por todos os perigos de água, fogo, e ferro, sempre a guarde e defenda até à morte. E assi juro que na execução e obra deste descobrimento que vós, meu rei e senhor, me mandais fazer, com toda fé, lealdade, vigia, e diligência eu vos sirva guardando e cumprindo vossos regimentos que para isso me forem dados, até tornar onde ora estou ante a presença de vossa real alteza, mediante a graça de Deus em cujo serviço me enviais».

Feita esta menagem, foi-lhe entregue a mesma bandeira, e um rendimento em que se continha o que havia de fazer na viagem, e algumas cartas para os príncipes e reis a que propriamente era enviado, assi como ao Preste João das Índias, tão nomeado neste reino e a el-rei de Calecut, com as mais informações e avisos que el-rei dom João tinha havido daquelas partes segundo já dissemos. Recebidas as quais cousas el-rei o espediu; e ele se veio a Lisboa com outros capitães.



João de Barros, Décadas, I, Livro IV